Imagem do seriado do Netflix

Bebê Rena: uma história de vergonha masculina

Por Sérgio Prudente  

Bebê Rena é uma série baseada na peça de Richard Gadd lançada em 2019 no Edinburgh Festival Fringe. Ela estreou no catálogo da Netflix em 11 de abril de 2024 e virou um sucesso. Ela conta a história de Donny Dunn, um barman que aspira à carreira de comediante e que sofre a perseguição da stalker Martha, uma mulher vulnerável que vive em uma espécie de lugar intervalar entre fabulações e a realidade. Em quatro anos, Donny recebeu 41.071 e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 46 mensagens de Facebook, 106 páginas de cartas e incontáveis presentes. O encontro dos dois dá origem a uma história de obsessão sufocante, retocada pela textura abafada da imagem e pelo pesadume nos rostos dos personagens.

Demorei um pouco para escrever sobre Bebê Rena. Talvez para evitar aquela sensação de que, como psicanalista, emergi em um parque de diversão de interpretações psicanalíticas. Sempre me chama a atenção como alguns filmes ou séries tem a capacidade de causar efeitos em um grande público, gerando a necessidade de suturar o estranhamento e o incomodo pelo sentido. Freudianamente, poderia seguir a pista do sentimento de infamiliaridade, o que seria um ótimo caminho. No entanto, mesmo sem sair do campo da infamiliariadade, algo em Bebê Rena chamou a atenção, a angústia atravessada pela vergonha.

A relação entre Donny e Martha evoca a célebre questão que Sartre coloca no livro Entre quatro paredes (1944): “o inferno são os outros”. Trata-se de um adágio para situações onde reconhecimento e alteridade são incomodas por estarem sempre atravessadas por segredos e pecados refletidos nos olhares. O olhar do outro é o espelho sobre o qual se reflete questões que trazem a tona falhas, ciúmes e tensões. Do reflexo de si no olhar do outro, podemos concluir que o “inferno são os outros.”

O inferno que nos aprisiona é o próprio laço com o outro? Com a psicanálise, podemos dizer que esse inferno não são só os outros, pois aquilo que nos identifica surge de uma relação entre esse outro e aquilo a partir do qual posso ser para o outro, a linguagem. Não é uma consciência, mas de uma lógica inconsciente que nos aliena a uma imago.

A frase “Eu é um outro”, escrita por Rimbaud em carta datada de 13 de maio de 1871, à Georges Izambard, sintetiza como essa relação com o outro é sempre confusa, uma concordância/ discordância fundamental. Nos misturamos como o outro a ponto de, na gênese do Eu, uma imagem exterior (especular) ser o ideal para projeção dos próprios esquemas mentais. Nesse interim ressoa Rimbaud com a destreza poética que contem em si a discordância concordante: Eu é um outro, com seu erro de concordância verbal predica a qualidade do sujeito com seu próprio especulo, na ação transitiva do verbo…

Mas o que isso tem a ver com Bebê Rena?

Sugiro começarmos pelo final. Só nos momentos finais da série, revelou-se o motivo pelo qual Martha chama Donny assim. Bebê Rena era um bicho de pelúcia da infância de Martha. Informação incontornável para entendermos a relação que se estabelece entre eles, fazendo com que Donny ocupe esse lugar do “bicho de pelúcia” de Martha.

O bichinho de pelúcia é um ótimo exemplo do que o psicanalista Donald Winnicott chamou de objeto transicional. Trata-se de um objeto que sucede as estimulações eróticas com o próprio corpo. Por exemplo, a criança que usa os dedos ou a mão para estimular zonas erógenas.

Elas passam a se apegar a objetos que a mãe permite a eles brincarem. É um objeto que permite ao bebê se engajar na dialética em que, a partir de um não-eu, ele se localizará nessa diferença entre si mesmo e outro. Lacan, chega a afirmar que o objeto transicional “o pequeno pedaço de pano ou de lençol, pedaço sujo ao qual a criança se aferra” – e o “primeiro objeto de gozo que não é, absolutamente, o seio da mãe, que nunca está ali permanentemente, mas aquele que está sempre ao alcance, o polegar da mão da criança” (Sem 15, Lacan, 1967-1968 [lição de 6 de dezembro de 1967]). Esta relação é central na medida que ela é constituída e constituinte das posições que o humano toma em seu desejo.

Entre Donny e Martha a alternância de posições colocada em cena nos encontros que, no acontecimento do primeiro olhar, podem atuá-las em cumplicidade libidinal. Um e outro intercalam-se entre sujeito e objeto na fantasia, tendo o Bebê Rena como a metáfora que sutura a demanda de um com o desejo do outro. A relação que acontece entre Martha e Donny é própria da relação com o Bebê Rena transicional. Como um objeto que marca o início da separação, o objeto transicional não é, necessariamente, a separação consolidada. É uma separação, mas sob a sombra do drama do desmame em que a angústia de separação e ressentimento constituem um drama da mãe. Isso pode implicar um certo olhar para a criança que está se descolando, um olhar demandante que pode marcar a criança como interpelação de uma resposta de ser como algo insuficiente. Sob o peso desse olhar que transmite o inconsolável da separação, a criança é reduzida a um objeto que, ao se separar, arranca algo.

O olhar é um dos objetos causa do desejo. Ele é especular, pois há algo no olhar que nos faz experimentar a presença do Outro, uma presença fixa no pensamento de Donny e Martha desde o primeiro encontro. Mas como a captura que Donny sofre pelo olhar de Martha o reduz a condição de objeto – bebê Rena – fazendo-o entrar em uma espiral angustiante? A um certa altura da trama, Donny afirma que não consegue parar de pensar no que Martha vê nele. É um fascínio estranho, mas irredutível. Donny vive uma sucessão de situações constrangedoras de fracasso em sua carreira de comediante, em um dar-se a ver falhando até ser encontrado pelo som de um olhar – o sorriso de Martha. O júbilo do encontro com esse olhar/voz visto na mudança de semblante de Donny, que tem como ante-sala a iminência do encontro, que é o momento da vergonha de ser reduzido a nada, ao fracasso, um abjeto para o público, por não conseguir ser engraçado.

O olhar, encontrado no mundo, é presença do desejo. Ele é um dos objetos causa do desejo, para a psicanálise. O que nos fascina no olhar de alguém que desejamos é a esperança de sermos reencontrados nesse olhar, nos desejando/amando. Por isso, o olhar simboliza uma decisiva impossibilidade do desejo, por estar sempre perdido, mas que em sua ausência produz efeitos que circula e captura no mundo o próprio sujeito.

Bebê Rena, envergonhado

Donny não entende o que Martha vê nele e isso o toma completamente. O desejo de Donny é desejo pelo que o olhar de Martha vê nele, mas nem ele mesmo sabe o que é isso. Donny está fascinado com um olhar que o deseja no momento de seu fracasso, em sua vergonha de existir. Dessubjetivado, Donny se encontra como objeto na fantasia, na condição que o reduz a um rebotalho à mercê do outro. Como objeto, Donny se implica em um movimento apático na direção de um objeto sexual para um perverso, em um abuso sexual que sofre e não entende o motivo pelo qual retorna àquela cena. É uma experiencia brutal e cruel consigo mesmo, em um enquadre de uma espetacularização de seu fracasso como comediante que é acolhido pelo olhar desses que lhe oferecem atenção e cuidado. Reduzido ao estatuto de objeto de gozo, Donny sente o peso da vergonha.

A vergonha revela e repete essa condição radical de insuficiência e terror diante de uma falha ou falta de resposta a uma questão esmagadora. A vergonha repete o efeito e a marca do simbólico sobre o corpo. Algo tão bem descrito por Kafka em sua Carta ao Pai, onde podemos acompanhar a vergonha do menino Kafka que desdobrava-se aos olhares vizinhos.

Não era só Kafka se olhando em completa passividade diante do pai, mas o pai potente mostrando-o barrado para os demais, apontando-o e intensificando um veredicto que ata olhar e voz a algo vergonhoso, inscrito na carne, como experiência do corpo ― pequeno esqueleto, inseguro, descalço ― que marca o sujeito. Um julgamento que expõe uma marca ao olhar que vê, a marca que o situa como sujeito para outro significante.

Ao que parece, para Donny, conhecer a vergonha é experimentá-la em sua condição de objeto de gozo. Por isso, a vergonha pode se repetir, como um fardo herdado ou algo como uma falha. A vergonha atravessa sua relação com o desejo e seu objeto. Um desejo que se inicia como um desejo do Outro, da alteridade que nos olha, para que desejemos. Mas na experiencia humana, o ser olhado vem sempre acompanhado do ser falado. Ser nomeado a partir dos indicadores de afetos como o nome, o apelido, as onomatopeias balbuciantes entre o bebê e a função materna. Esse olhar e voz sonorizam um imaginário de qualidade eminentemente narcísica, marcando uma distinção que nos faz um Eu desejável para o outro, na suposição do que é desejável, como ideal, para esse outro.

Se Lacan considera os objetos transicionais imaginários é porque eles dependem de uma certa identidade, uma imagem corporal que faz com que a criança questione se eles estão dentro ou fora dela, se são produções fantasísticas ou se existem na realidade.

Uma realidade em que se imiscui a questão confusa sobre o motivo pelo qual ele não denuncia Martha. Donny sabe o que é para se fazer, mas não o faz. Ele protege Martha, a acompanha preocupado, admirando sua decadência e humanizando aquela mulher frágil, mas potencialmente destrutiva. Há uma transitividade entre Donny e Martha, em que ele se reconhece nesse lugar abjeto dela. Uma fantasia que o engole a realidade tal como o grande exemplo da fantasia da “criança espancada”, do texto freudiano: Uma criança é espancada. Como sentimentos de prazer podem vir de situações sofríveis? A vergonha de uma fantasia, para Freud, é muito mais difícil de se falar do que feitos e lembranças do início da vida sexual. Na fantasia de espancamento, a criança toma como signo de amor o gesto do pai que bate em uma criança que o filho odeia. Trata-se de um transitivismo, na fantasia, em uma fase primitiva da infância.

Donny, de certa forma, está próximo do que Martha sente e acolhe a si mesmo na vergonha de existir dela. Desse lugar, ele olha e é olhado em suas intensas excitações. É um lugar do Outro que retorna a Donny como interpretação do seu próprio desejo como algo falho e vergonhoso. Algo que ele se esforça encobrindo com os pudores de uma identificação de homem viril, que entra em profunda crise por não responder a própria sexualidade.

O medo de Donny em relação a descoberta de sua sexualidade por um Outro que está no olhar da família, das pessoas no mundo; é o medo que descubram esse ponto de satisfação que o objeto passa a ocupar na curiosidade sexual e na ordem do saber. É o que podemos ver na cena em que Donny, no metrô, recua do beijo em Teri, ao olhar sendo olhado pelas pessoas ao redor. Uma castração via pulsão escópica pelo “saber” comum identificado ao machismo tosco que o empurra a submissão vergonhosa de um objeto. Donny renuncia a Teri, inclusive sexualmente, por olhar para si mesmo, através do olhar da cultura “heteronormativa/haternormativa.”

É nesse espaço no qual Donny, como objeto, se interpõe e marca uma divisão que ele ocupa, como objeto para o Outro. Uma divisão que produz o mal-estar e embaraça a voz de sua enunciação, produzindo um avatar caricato de homem diante dos seus colegas de Pub. É o mesmo lugar ocupado pelo seu pai, machista performático que, vítima de estupro, passou a exagerar uma masculinidade para esconder sua falha vergonhosa que o impediu de amar seu filho de maneira mais livre. Uma herança vergonhosa de uma forma de amar, que passa a Donny como uma confusão em relação a como seus pais queriam que ele fosse. Uma culpa por não ser como ele supunha que seus pais queriam. Uma vergonha de existir, repetida como uma falha de não conseguir ser nada além de um alguém com um miasma no desejo.

Donny experimenta existir sendo uma falha na resposta ao desejo do seus pais, mesmo que ele não saiba que desejo é esse, exatamente. É uma incomensurabilidade, pois há algo do desejo, ao qual o Outro não lhe dá acesso e cuja medida é impossível de saber, mas ele sente que deveria saber. Essa distância marcada na falta de acesso é um afastamento que segundo Octave Mannoni, produz angústia e vergonha: “a angústia pode levar à vergonha, não à culpa. Quando a angústia não evoca a ideia de um punidor, mas de afastamento, é a vergonha que surge.”[1]

Então, a incomensurabilidade do desejo do Outro vem como angústia e também como vergonha. Não há um dicionário para ler o desejo do Outro e resolver esse enigma. É por isso que Donny se guia pelo que Martha encarna e te apresenta como traços. Ela não resolve o segredo, mas sinaliza com a sustentação da possibilidade, na forma de um sintoma que os une em suas angústias. Martha e Donny se encontram no desespero de não ter, na linguagem, algo que se possa saber sobre o que os fazem desejosos para o Outro. Na ausência da palavra, o que ambos fazem é pactuar um acting-out reforçando um Eu absolutamente instável, mas cheio de pudores. Com o pudor, é possível retornar à linguagem em uma condição menos mortífera no momento em que se encontra no lugar do obsceno.

O que as palavras não conseguem sintetizar pode ser experimentado como excesso, como o gozo de ter ido longe demais: fui longe demais, onde estava com a minha cabeça, voltar ao meu abusador! Ou seja, o indizível da singularidade de um gozo, que, na vergonha, destaca o sujeito de sua própria imagem, olhado, o reduzindo: “ao estado cedível, sob a forma de fotografias, ou mesmo de desenhos: conota o choque, a repugnância ou o horror provocados na sensibilidade pelo surgimento totalmente repentino desse objeto.”[2] De ser objeto do gozo do Outro.

O horror de reencontrar a própria imagem, como uma foto, reduzida a um gozo que se experimenta como vergonhoso ao ser revelado como algo singular, um horror ao prazer todo seu do qual ele mesmo não estava ciente[3]. Portanto, na vergonha, Donny é reduzido a uma resposta sempre insuficiente ao desejo do Outro, encarnado por Martha. Subitamente forçado e enlaçado na inconsistência do Outro, Donny sustenta o mistério de uma resposta definitiva, prometida na fantasia, à qual ele faz apelo e se esforça para manter, mesmo que custe sua ausência, como objetificado. A vergonha é, assim, o afeto da queda que revela a inconsistência do Outro, que revela o buraco ao qual o sujeito se interpõe e goza como objeto do gozo Outro, por ser este seu gozo singular.

A vergonha, dói!

O não saber o que está fazendo, sensação que Donny recorrentemente enfrenta, marca um nonsense cuja ambiguidade cria um paradoxo sem realidade factual, pois podemos imputar o “não sabe” tanto ao seu inconsciente quanto à sua consciência.

É na ignorância do que não se sabe que se experimenta como, dor da existência, isso que “subsiste no limite, nesse estado em que mais nada é ainda apreendido, o fato do caráter inextinguível dessa mesma existência e a dor fundamental que acompanha quando todo desejo se apaga nela, quando todo desejo se desvaneceu.”[4] Ponto crítico que coloca Donny diante do desafio, na angústia, entre o retorno à condição abjeta e o enfrentamento de sua vergonha, quando ele a passa ao mundo, no concurso de comediantes.

Este estado limite da dor de existir é o ponto de divisão onde a honra do herói trágico se mostra. O me phynai proferido por Édipo, o “verdadeiro ser-para-morte”, onde figura, na tragédia, a negação idêntica à entrada do sujeito, na linguagem. A dor presente na dimensão trágica ultrapassa o serviço dos bens, tanto que Donny se livra de suas obrigações do que deveria fazer, como comediante, para agradar o público, nas respostas que deveria dar. No momento em que confessa o estupro que sofreu e a relação abusiva com Martha, para o público, ele passa o que lhe é mais singular ao mundo, sua vergonha.

No entanto, por mais que essa existência seja justificada por um saber formulado a serviço do “não sei”, ou seja, um saber como ignorância da própria dor, a causa do desejo estará sempre sob suspeita por sempre haver um a mais, que nunca se encontra realmente, encarnado na pessoas que buscamos isso. Tal suspeita está no bojo das expectativas que temos, enquanto sujeitos, em relação à pessoa amada, aos nossos pais, ao analista, etc. A partir desse lugar que temos um jogo de semblantes nos discursos em que esperamos uma resposta do Outro a questão do “que queres de mim?”, como uma espécie de adoção que nos situa em um laço de onde podemos ser sujeitos. na medida em que somos adotados por um desejo pelo qual vivemos para responder.

O buraco existente entre o que se é, narrativa egoica de si mesmo alimentada pelo saber como semblante, e a causa de sua existência como desejo do Outro, será assumido como uma medida sempre imprecisa e indeterminada. A dor de existir participa deste sentimento, que, no sujeito, é experimentado como impostura de ser ora como algo faltante/desqualificado, ora como excesso/ desmesura, no ponto onde a ilusão egoica vacila em suas identificações imaginárias, se reencontrado com o que ele é – a saber, um efeito da linguagem, um aborto desse objeto bebê Rena.

Donny, na falta-a-ser que torna dolorida a sua existência, é afetado pelo nonsense, do quão frágil são as garantias simbólicas da existência. A dor de existir, dessa forma, faz signo da divisão lembrando-o dela no limiar do seu efeito dessubjetivante. Partindo do pressuposto lacaniano de que o signo é o que representa algo para alguém, entendemos que a dor de existir constitui um signo de ser para o sujeito. O signo da dor de existir, assim, representa e marca a mortificação recebida do simbólico, a condição de ser falante que faz do Donny um ser dividido que desaparece sob os significantes que o representam.

É desta forma que a vergonha como um signo da dor de existir para o sujeito, na medida em que, a vertigem e a catástrofe identificatória evidenciam o sentimento de nada, o nonsense da existência que, subitamente, é devolvida ao sujeito através do olhar do Outro. Por isso, nessa vergonha que é signo da dor de existir, se experimenta estar nu, desprovido de suas identificações egoicas e reduzido à falha.

Quem sou eu? O Bebê Rena

Isto coloca uma “questão de existência”, que, segundo Lacan, não vem tanto pela angústia, suscitada no nível do eu, mas como uma questão articulada: “quem sou eu nisso?”[5]

Imaginemos Donny fazendo a si mesmo esta pergunta: quem sou eu nesse quadro em que me dou a perseguir? Porque persigo o olhar de minha perseguidora? Responder a esta questão tem sempre a ver com implicar uma imagem que conserva um investimento da pulsão escópica, posicionando o olhar como objeto causa do desejo. Para Lacan “o fantasma faz o prazer próprio ao desejo” (LACAN, 1966, p. 774). Desejo este desprovido de qualquer origem natural em sua relação com os objetos, um desejo que é desejo de nada que possa ser nomeado.

Assim, é a fantasia que produz o objeto capaz de satisfazer o desejo ou, como gostaria Lacan, de produzir o prazer próprio ao desejo. Isso significa que é a fantasia que produz, para o sujeito, uma realidade possível a experiência de um desejo, até então negativo. Nesse sentido, a fantasia é a via possível para objetificar e sustentar o seu desejo: “A função fantasia é dar ao desejo do sujeitos nível de acomodação, de situação.”[6]

A fantasia produz o objeto de desejo, positivando a falta-a-ser que determina a consistência desse desejo. A realidade/ficção produzida pela fantasia tem, para Lacan, a mesma estrutura da angústia.

Aqui bebê Rena encontra Thomas o obscuro, de Maurice Blanchot, ambos entre a fantasia e a angústia. Lacan chama Blanchot de “o poeta de nossas letras”. É alguém que foi mais longe do que qualquer um, na realização da fantasia e em quem ele encontrou a confirmação do que falou à respeito da segunda morte. Thomas o obscuro é o paradigma desse encontro com o horror. Alguma coisa se encontra nele que encarna a imagem desse objeto assim como o “bebê rena” o faz.

O encontro com o horror de ser submetido à tortura, assim como a que causa encanto a Ernst Lanzer ao falar da tortura infligida por um capitão cruel que introduzia ratos no ânus das vítimas. Para Freud, é o horror de um gozo por ele ignorado. Uma estranha colusão entre prazer e sofrimento cuja fantasia que também chamara a atenção de Bataille, ao escrever o ensaio História de Ratos, onde deixa claro que o erotismo participa deste mesmo excesso, ao aquiescer ao outro na transgressão dos limites.

Thomas o obscuro, estava próximo da situação onde se encontra o macho, quando o louva-a-deus vai devorá-lo [7]. A figura da louva-deus fêmea, conhecido recurso usado por Lacan para falar sobre a angústia, traz a iminência do macho a ser devorado pela fêmea. Inseto conhecido, em francês como mante religieuse, denomina, também, uma ideia de mulher cruel com os homens, já que a fêmea do louva-a-deus é desproporcionalmente maior que o macho: “Eu me miro, miro minha imagem assim fantasiada dentro do olho facetado do louva-a-deus fêmea. Será que a angústia é isso? É muito perto disso.”

Nesse encontro, está a apreensão pura do desejo do Outro. Um desejo do desejo do Outro, um desejo desconhecido. O que sou para o Outro? O que o Outro olha em mim? Questão do fascínio de Donny pelo olhar de Martha que situa uma angústia.

Se a angústia é sem objeto, esta falta de objeto está no próprio sujeito. Logo, como um afeto que não engana, a angústia é efeito da falta de objeto, no campo da realidade, mas não por uma falta de realidade. Nesse sentido, é insuportável para Martha se separar do bebê Rena, seu objeto transicional. Ela o conserva metonimicamente nas pessoas stalkeadas. E quanto a Donny?

Lembremos do drama de separação da mãe interpelando o bebê. Ser objeto da falta do outro é aplacar a angústia dessa separação em uma relação em que se abandona a si mesmo. Ser bebê Rena para Martha é reencontrar o júbilo de ser esse objeto que cura a angústia, que transforma o olhar do drama para o sorriso.

Logo, o olhar é o enquadre que dá contornos a esse desejo informe da voz, via sorriso. Mas a angústia persiste, pois o objeto não tem uma identidade natural e essencial com o desejo. Por isso, para Donny, não se saber mais objeto do desejo do Outro que está a sua frente, é reencontrar a opressão indizível dessa alteridade que se supõe uma demanda irrespondível. Lidar com o desejo do Outro é ser atirado na angústia, entre desejo e gozo. É neste ponto que podemos aproximar Bebê Rena e Thomas o obscuro.

Ambos estão diante da Louva-deus mortal, olhando-a. Ela os olha de volta, mas enquanto Thomas penetrava por esses corredores dos quais se aproximava sem defesa, até o instante em que foi descoberto pelo íntimo da palavra; Donny é descoberto sem elas, no súbito encontro da vergonha de ser objeto para o Outro.

Enquanto Thomas se via com um prazer insuportável, nesse olho obscuro e sem cumplicidade, Donny, não suporta ser tragado por esse olho absoluto. A angústia, na vergonha, o faz recuar para o desespero do terror de não ser. O desespero chamado por Kierkegaard, de doença mortal. Um suplício contraditório, uma enfermidade do eu que passa a – eternamente morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte. Porque morrer a morte significa viver sua morte; e vivê-la um só instante, e vivê-la eternamente.

A vergonha implícita na experiência de bebê Rena, revela o assombro, um furo da fantasia de ser devorado pela fêmea, que revela o pudor que esconde a vergonha masculina da impotência. Um pudor que serve de véu sobre sua insuficiência. Mas o pudor é, como diria Lacan, ambiceptivo da conjuntura do ser: entre dois, o despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro.”[8]

Por isso, o despudor da perseguição de Martha, viola o pudor masculino que mantinha Donny confortável em relação à sua vergonha de viver.

Referências bibliográficas

1 LACAN, J. Seminário Nomes-do-pai. (1963). p. 48.

2 LACAN, J. O Seminário. Livro X. A angústia.(1962/1963). p. 343.

3 FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909). p. 171.

4 LACAN, J. O Seminário. Livro VI. O desejo e sua Interpretação. (1958/1959/s.d.). Aula de 07/01/1959.

5 LACAN, J. (1955/1956) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. p. 555.

6 LACAN, J. O Seminário. Livro VI. O desejo e sua Interpretação. (1958/1959/s.d.). Jorge Zahar Editor. p. 28.

7 LACAN, J. O Seminário. Livro IX. A identificação. (1961/1962/s.d.). Inédito, p. 431

8 LACAN, J. 1966/1998. Kant com Sade p. 783.

Sérgio Prudente é psicanalista, tem pós-doutorado em psicologia clínica pelo IP-USP, é professor da UFRN lotado em Brasília, no MDHC.

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