O fim do Direito: hipóteses acerca da morte de um princípio formal do Ocidente

Por Franz Schandl, via Krisis, traduzido por Caio Luis Prata e Armando de Vitta Santos

As páginas a seguir apresentam a tradução do texto “Finale des Rechts: Hypothesen über das Absterben eines abendländischen Formprinzips”, de Franz Schandl, publicado originalmente em 31/12/1994, na revista Streifzüge, e republicado na edição de número 26 da revista “Krisis”, organizada pelo coletivo alemão de mesmo nome, em 2003. Trata-se da segunda tradução para o português do texto, tendo sido feita, a primeira, em dezembro de 2001, por José Paulo Vaz.


I

Atualmente, o capitalismo estabelece um ritmo que os seus princípios formais já não conseguem acompanhar, uma vez que não foram concebidos para sustentar tal velocidade. O desenvolvimento das forças produtivas e a formação social estão colidindo, ou melhor: estão colapsando. Basta olhar para o soçobramento das economias à nível global, como se observa na África, na América Latina e na Europa Oriental. O que realmente importa não é a generalização da Democracia e do Direito, mas, sim, a sua restrição. O lado outrora vitorioso perde cada vez mais o seu terreno, tornando-se, progressivamente, o lado perdedor. Também, o crescimento desenfreado do populismo de direita no centro do capitalismo democrático, o colapso das forças democráticas tradicionais (atualmente na Itália, amanhã na França, depois de amanhã, noutros lugares), mostra claramente os sinais de fadiga das democracias ocidentais e seus princípios formais burgueses.

II

O Direito (sob a forma de legislação e de aplicação de leis) não consegue acompanhar este ritmo de desenvolvimento social. Ele, inclusive, não é apenas incapaz (a princípio, sempre foi) de conformar a realidade, como se torna crescentemente incapaz de administrá-la. Embora ele tivesse, até agora, sido capaz de mover-se através do turbilhão, ele foi, com a supracitada mudança de velocidade, literalmente abandonado. Leis úteis – ou seja, aquelas que consagram um consenso social relativamente não problemático e que podem, assim, regular a sociedade, firmando-se como bases a partir das quais os indivíduos podem agir – tornaram-se muito difíceis de se elaborar e executar. As leis, no próprio momento da sua entrada em vigor, estão cada vez mais antiquadas, imprestáveis e demandam alterações. Os grandes projetos, portanto, estão condenados ao fracasso, mas os pequenos passos também o estão.

III

O capitalismo precisa – como já enfatizou Max Weber – de “[…] um direito previsível como o funcionamento de uma máquina […]1”, o que está se tornando cada vez mais difícil de garantir. O fracasso da lei já está, muitas vezes, pré-programado, e é simplesmente inevitável. O confronto entre advogados é que molda o debate jurídico contemporâneo. Um público atônito defronta-se com um assunto que nem mesmo os hermeneutas mais qualificados são capazes de compreender, dada sua complexidade. O resultado de tudo isso não é a segurança jurídica, mas, sim, o acaso jurídico. As leis têm cada vez mais dificuldade em serem levadas à prática. O que é válido não o é incondicionalmente. O Direito perde o seu caráter de garantia e, com isso, perde-se a si próprio. Afirmações como as de que “a codificação binária do sistema jurídico cria a garantia de que quando o indivíduo está em seu direito, ele não perde sua razão; pelo contrário, é legitimado por ela”23, devem ser vistas, hoje, portanto, como expressão de uma ignorância ingênua.

IV

O brocardo latino “Maxima caritas lex4, tornou-se obsoleto. Hoje ninguém se atreve a afirmar – com sinceridade – algo que, até há algum tempo, era uma crença partilhada tanto pela burguesia quanto pelo movimento proletário (apesar de todas as suas diferenças). Mais Direito, não cria mais direitos; menos também não5. Não existem soluções jurídicas à vista para este dilema. A crise do direito não é apenas uma crise relativa a ele próprio, enquanto uma mera disciplina (ou seja, uma crise interna), é, antes, um fenômeno social. Por isso, também não pode ser resolvida através de instrumentos jurídicos. O Estado de Direito não é destruído por quaisquer inimigos externos, mas, sim, pela sua própria lógica, e nós, enquanto sociedade, já não podemos abandonar o Direito: somos abandonados por ele.

V

O Direito não está, portanto, sendo distorcido em termos de classe, mas está, essencialmente, em um franco processo de decomposição. O slogan “Direitos iguais para todos” não é apenas socialmente condicionado, mas também é, cada vez mais, estruturalmente irrealizável. Não é a arbitrariedade intencional que domina – qualquer pessoa que grite, nos dias de hoje, por “Justiça de classe” ou condene a burocracia, compreendeu apenas aspectos subsidiários do problema –, mas, sim, a completa incapacidade de manejo de qualquer assunto. O direito, como um todo, está posto em xeque.

VI

O Direito também não se pode tornar mais próximo das pessoas, convertendo-se cada vez mais a assunto de Advogados e transformando-se em uma ciência oculta de acadêmicos herméticos, de operadores, de procuradores e de trapaceiros jurídicos. As sugestões de reformas, sejam elas oriundas da imprensa sensacionalista, do próprio aparato burocrático, de pesquisas científicas ou de políticos, são pouco valorativas. O direito deixa de ser um guia normativo para tornar-se um labirinto, ou até mesmo uma selva de pleitos e demandas contraditórias, que sempre encontram sua expressão em uma ampla gama de leis e regulamentos. As anomias do Direito são simplesmente inevitáveis.

VII

O próprio crescimento exponencial da produção normativa permite concluir por um amargo fim do Direito, que, embora obstruído, omite suas falhas. Nesta dinâmica cega de crescimento, todos os fatos cotidianos são regulamentados e desregulamentados novamente, reabrindo a desgastada discussão acerca de uma possível e mais adequada maior intervenção estatal ou maior ação do mercado, o que é decidido a depender da situação econômica do momento. O jogo entre regulamentação e desregulamentação parece cada vez mais esgotado. De qualquer maneira, nada disso muda a direção tomada pelo desenvolvimento social, já que tanto o Direito quanto a política, mesmo em seus melhores momentos, seriam incapazes de tanto. “Regulamentação”, como a palavra pode sugerir, não deve confundir-se, jamais, com “planejamento social”.

VIII

O Direito é, em sua imediatidade, propriedade”67, escreveu Hegel. Contudo, é precisamente isso que está se dissolvendo, na medida em que o capitalismo avança, ocorrendo das mais variadas formas: seja por meio da coletivização negativa das consequências sociais da produção, através da socialização dos indivíduos por meio do dinheiro e da troca, pela formação contínua de monopólios, pela natureza cada vez mais efêmera das mercadorias, pela crise do valor de troca nas áreas de microeletrônica, etc. A propriedade é constituída, simultaneamente, pela disponibilidade e pela exclusão. Ambas dimensões, estão se tornando cada vez mais impossíveis e inúteis. O que estamos vivenciando é uma socialização sem socialismo. Aqui, nenhuma lei pode chegar perto de restaurar os antigos direitos.

IX

A normalidade e a legalidade estão em desintegração progressiva, tornando cada vez mais difícil alcançar algum grau de coerência entre ambas. A realidade – enquanto “Ser” – não apenas se desvia daquilo que deveria ser, como tende a ir, absolutamente, para além dele. “Ser” e “Dever-Ser”, no Estado de Direito burguês, coexistiam, até agora, a partir de discrepâncias reais, guiadas, porém, por identidades ideais fictícias. Ambos pertenciam inseparavelmente um ao outro. Mesmo que suas expressões nem sempre pudessem se corresponder entre si, eram frequentemente trazidas à congruência por meio do Direito, enquanto categoria responsável por uni-las. É justamente esta capacidade clássica de dar cumprimento ao Direito que, hoje, encontra-se fragilizada.

X

O “Ser” é repelido pelo “Dever-Ser”, sem que a atração necessária possa ser promovida pela via do Direito, que tem cada vez menos condições de promover a união que lhes é constitutiva. O elo entre o “Ser” e o “Dever-Ser” – outrora estreito – está se rompendo. O “Ser”, ou melhor, a realidade, “requer” um “Dever-Ser” diferente, razão pela qual a lei se constrange constantemente na criação hodierna das identidades, onde e por que elas também evaporam.

XI

Questione-se tão somente sobre quem (ou o quê) substituirá o Direito. Nada foi ganho com o fim declarado dos princípios formais do Ocidente; pelo contrário: sem alternativas positivas, a abolição da lei é apenas idêntica ao seu completo extermínio, à ilegalidade. Vista desta forma, uma conquista civilizacional não se transformaria em algo novo, mas seria reduzida ao seu âmago, e a forma mais pura de lei ainda é a violência. Neste extremo, isto significa que as condições são hoje mais parecidas com as da Sicília, da Colômbia ou da Rússia. Em suma: mais bárbaras do que antes. Nestes contextos, o que é lei é determinado pelas formas organizacionais de comunicação social da máfia.

XII

O Direito foi uma das muitas muletas que a humanidade utilizou no processo de sua Humanização. Sob este olhar, ele é, por um lado, expressão de um elevado desenvolvimento histórico, mas por outro, a súmula de uma carência civilizacional. Não poderá haver nenhum direito, em ordens postas além da coerção. Os direitos subjetivos só precisam existir quando não parecem ser objetivamente evidentes. “Um ‘direito’ à vida, à alimentação, à habitação, etc., é absurdo em si. Todos eles, só fazem sentido num sistema de referência social que tende a não considerar todos estes fundamentos elementares da reprodução humana como garantidos, mas, pelo contrário, questiona-os constantemente de forma objetiva”8.

XIII

Estamos caminhando para uma sociedade sem Direito. Nossa própria ação está nos levando até este destino. O Direito intui, pela primeira vez, o seu caráter histórico limitado, sentindo o seu fim crepuscular. O que vem a seguir, e quais possam ser os princípios normativos pós-jurídicos, estão, no momento, para além do nosso horizonte de conhecimento. Todavia, de qualquer modo, não poderá ser apreendido com os conceitos de Estado e de Democracia, Lei e Direito. Não temos neste momento termos positivos, nem sequer conceitos auxiliares, para o descrever e o concretizar. Eles só se deixarão revelar a partir dos movimentos sociais. Em qualquer caso, o que é necessário não é uma legalidade diferente e uma lei diferente, mas, sim, alternativas à lei e à ordem, as quais serão, não apenas antijurídicas, mas pós-jurídicas.

XIV

A caricatura histórica pode ser formulada da seguinte maneira: qualquer pessoa que quiser salvar o grau de civilização, as conquistas do Ocidente – e há, aqui, muito a ser preservado, no melhor sentido da palavra – deve se esforçar para superar os princípios formais ocidentais. As coisas não podem continuar sendo como eram antes. Este é, precisamente, o ponto que precisa ser compreendido, se não se pretender deixar a “resolução” da crise para a direita moderna, de Berlusconi a Haider. Eles reconheceram instintivamente a crise da Democracia e do Parlamentarismo, do Estado de Bem-Estar e do Estado de Direito, e estão cada vez mais dispostos a explorá-la para fins ditatoriais. A rejeição de Haider em relação à democracia representativa e seu argumento acerca dos direitos civis, sinaliza nesta direção. Mas aqueles que, com modéstia republicana, apenas respondem a tudo isto de forma defensiva, protegendo e até mesmo exaltando os princípios da democracia liberal são estúpidos. 1918 acabou e não há possibilidade de uma segunda vitória. A sociedade está clamando por algo novo, e se não quer acabar com algo completamente velho, então, não deveria se esconder por trás de princípios democrático-burgueses — irão estes, sem dúvida alguma, ralo abaixo.

XV

P.S.: Todo tempo presente vê a si mesmo com o fim dos tempos. Anders, certa vez, chamou muito precisamente a essa reivindicação tão obrigatória de eternidade de o “Platonismo dos idiotas”. Sobre a metafísica do advogado profissional, ele escreveu o seguinte: “Em última análise, ele fica profundamente ofendido pelo fato de que há mudanças no mundo, de que ele está mudando. Ele é o inimigo mortal da história, ele detesta o tempo. Exige, então, que o mundo seja como era e que permaneça como está, assim, suspenso, para que corresponda à validade rígida das leis jurídicas e à validade do ‘pacta servanda’ por elas sancionada”9.


1  WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriß der verstehenden Soziologie (1922), Tübingen, 5. Aufl. 1972, S. 817 [WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da Sociologia Compreensiva. v. 2. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 520.]

2 LUHMANN, Niklas. Ökologische Kommunikation: Kann die moderne Gesellschaft sich auf ökologische Gefährdungen einstellen? 4. ed. Eiwsbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2004, p. 126.

3 Nota dos tradutores: No corpo da obra citada no texto original, em alemão, a sentença se encontra construída da seguinte maneira: “Durch die zweiwertige Codierung des Rechtssystems wird die Sicherheit erzeugt, daß man, wenn man im Recht ist, im Recht ist und nicht im Unrecht”. A expressão “[…]wenn man im Recht ist, im Recht ist und nicht im Unrecht” foi traduzida, para o inglês, como “[…] if a person is in the right, then the force of the law is behind him or her” [In: LUHMANN, Niklas. Ecological Communication. Trad. John Bednarz Jr. Chicago: The University of Chicago Press, 1989, p. 64], o que pode ser passado ao Português como “[…] se uma pessoa está em seu direito, então a força da lei está por trás dele ou dela”. A obra de Luhmman não possui tradução à língua portuguesa, o que justifica termos consultado a edição anglófona, em cotejo com a qual buscamos estabelecer a tradução mais adequada.

4 Nota dos tradutores: “A lei é a maior forma de caridade”, em tradução livre.

5 Nota dos tradutores: A expressão “Mehr Recht schafft nicht mehr Rechte. Aber weniger Recht auch nicht” foi traduzida como “Mais Direito, não cria mais direitos; menos também não”. A opção se justifica na medida em que “Recht”, tanto na primeira quanto na segunda sentença, estão no singular e marcados pelos intensificadores “Mehr” e “Weniger“. Nesse sentido, torna-se mais coerente a sua tradução por “Direito”. Já a palavra “Rechte”, no plural, poderia ser traduzida como “leis” ou “direitos“; num sentido mais lúdico, a segunda opção seria válida

6 HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenchaft im Grundrisse: mit Hegels eigenhändigen Notizen und den mündlichen Zusätzen. Vol. 7. Frankfurt:  Suhrkamp Verlag, 1986, p. 85.

7 Nota dos tradutores: A expressão utilizada no texto – “Recht in seiner Unmittelbarkeit ist Eigentum” – aparece em uma nota de rodapé acerca do § 32 da edição alemã de 1986 da obra “Princípios da Filosofia do Direito”, de Hegel. Na Edição em Português [HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997] não encontramos o trecho traduzido, razão pela qual mantivemos a referência original.

8 KURZ, Robert. Der Letzte macht das Licht aus: Zur Krise von Demokratie und Marktwirtschaft. Berlim: Tiamat, 1993, p. 33.

9 ANDERS, Günther. Die Augenbinde der Justitia: Fünf philosophische Überlegungen anläßlich des Prozesses gegen Robert Jungk. Taz Archiv. [S.l.]. 16 abr. 1988. Disponível em: https://taz.de/Die-Augenbinde-der-Justitia/!1850352/. Acesso em 23 jun 2024.

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