MC Poze do Rodo, o mais novo bode expiatório das nossas mazelas

Por Gabriel Miranda

No livro Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, o sociólogo francês Loïc Wacquant pontua, logo nas páginas iniciais da obra, que “a segurança é concebida e executada não tanto por ela mesma, mas sim com a finalidade expressa de ser exibida e vista, examinada e espionada: a prioridade absoluta é fazer dela um espetáculo, no sentido próprio do termo” (Wacquant, 2007, p. 9). Ao ver as imagens do MC Poze do Rodo sendo conduzido até a delegacia no dia 29/05 não pude não me recordar da referida obra e, em específico, da citação acima. Afinal, o que foi aquilo senão um espetáculo? Uma peça teatral apresentada ao longo de séculos e que, agora, teve como um de seus protagonistas o MC Poze.

Assim como todo espetáculo, a prisão do Poze possui várias camadas e podemos analisá-la por distintos prismas. Não quer este texto negar a realidade. São vários os registros de shows do MC Poze nos quais ele faz menção ao Comando Vermelho em suas músicas. Contudo, ao contrário do que pode parecer, tal fato não esgota o debate e tampouco me parece o mais importante. Pois, se toda prática delituosa fosse responsabilizada e o Direito aplicado a todos de maneira equânime, Jair Messias Bolsonaro teria sido preso logo após votar a favor da abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff em 17 de abril de 2016, ocasião em que, no plenário da Câmara dos Deputados, dedicou seu voto à “memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.” [1]

Ou seja, o mesmo crime que teria cometido o MC, também haveria cometido o então parlamentar. Enquanto um teria feito apologia ao crime de tráfico de drogas por mencionar o nome de uma facção em seus shows, o outro cometeu o crime de apologia à tortura ao reverenciar a memória de um reconhecido torturador da ditadura civil-militar. Inclusive, essa não foi a única apologia ao crime que Bolsonaro teria cometido e saído impune. Em 2018, durante a campanha eleitoral, o representante da extrema direita bradou, em alto e bom som, “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”, contribuindo para aumentar ainda mais o cenário de violência política que marcou aquela disputa eleitoral. Diante desses fatos, adivinhem quem foi preso e quem se tornou Presidente da República. Aqui está, portanto, o primeiro ponto: para a justiça burguesa, mais importante do que o crime é aquele que o comete.

Mas a análise de nossa trama não se encerra aí. Há outro elemento que me parece incontornável. De acordo com matéria veiculada no site de notícias Metrópoles, é atribuído ao delegado Felipe Curi, Secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, o seguinte comentário: “Temos que separar quem é artista e quem é integrante de facção criminosa, elemento travestido de artista. Essa ideologia, às vezes, é muito mais lesivo (sic) que um tiro de fuzil na favela”. [2] É importante notar que, no discurso do delegado, há uma tentativa, tipicamente ideológica, de produzir uma inversão do real.

Ora, quando o sistema de justiça, representando o Estado brasileiro, elege o MC Poze como bode expiatório das mazelas sociais, assume a posição cômoda de não enfrentar os reais problemas da nação, aqueles que alimentam o desejo de jovens a se vincular a facções criminosas: a desigualdade crônica e a ausência do poder estatal na garantia de direitos sociais, sobretudo nos territórios periféricos. Considerando que nenhum espaço é deixado vago, a ausência do Estado é o que garante a possibilidade de as facções exercerem o papel de protagonistas nesses territórios esquecidos senão pela polícia.

Ou seja, não são as canções do MC Poze aquilo que fortalece o Comando Vermelho. O que fortalece o Comando Vermelho é o próprio Estado em sua ausência ou em sua estapafúrdia ação deliberada de negar uma política efetiva de combate às organizações criminosas e centrar-se em ações exibicionistas, cuja efetividade se resume a chamar a atenção e movimentar as redes sociais. Sendo assim, é imperativo que se implemente uma política de segurança que encare o tema das facções sem cinismo e enfrente a questão como ela merece ser tratada, com inteligência e respeito aos Direitos Humanos. Assim, poderemos deixar os espetáculos para os artistas — e não para o sistema de justiça.

Antes de ser transferido para a Penitenciária Serrano Neves, conhecida por Bangu 3, tem início o segundo ato de nossa farsa, quando o suposto prontuário de ingresso do MC Poze no sistema penitenciário foi vazado. Nele, em uma seção intitulada “Ideologia declarada”, o funkeiro carioca teria indicado “CV”, rejeitando outras opções como “A.D.A”, “T.C.P”, “LGBTQIA+”, “milícia” e “neutro”. A suposta indicação do Poze com o CV seria, para alguns, a prova cabal de sua vinculação com a referida facção.

Na sequência, foram publicadas massivamente matérias em blogs e jornais informando a “ligação” ou o “vínculo” do MC Poze com o Comando Vermelho. Tais inferências objetivavam levar o leitor a crer que isso provaria a existência de alguma participação efetiva do funkeiro com a estrutura do crime. Contudo, concretamente, possuir um vínculo com alguma facção criminosa pode significar apenas ter nascido em um bairro em que aquela facção exerce o monopólio do comércio de drogas ilícitas.

Foi isso que analisei no livro Juventude, crime e polícia: vida e morte na periferia urbana (2019) e, posteriormente, no artigo Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e facções criminosas (2023), ambos publicados em conjunto com a Dra. Ilana Paiva. Em territórios dominados por facções, a ideia de vinculação é algo que não informa muito. Absolutamente qualquer um pode ser “vinculado”. Em primeiro lugar, porque pesa sobre os moradores desses territórios o estigma de pertencer à facção que ali atua. Trata-se, nesses casos, de uma vinculação compulsória. E, além disso, em um contexto de privação de liberdade, escolher ser alojado no espaço destinado à facção que atua em seu território de origem funciona como um mecanismo de autoproteção. Afinal, nesses contextos, cair em um pavilhão errado pode custar a própria vida.

No caso do MC Poze, soma-se a isso o fato de que as letras de algumas de suas músicas fazem menção ao Comando Vermelho, indicando uma simpatia do cantor com a facção. Contudo, essa simpatia, a qual é compartilhada por outros jovens que carregam dados biográficos semelhantes aos do Poze, não surge ao acaso. E compreendê-la implica um acerto de contas do Estado brasileiro consigo mesmo.

Se há jovens que entoam essas canções e se há outros que fazem uma defesa ou mesmo admitem vínculos com facções sem sequer pertencer a elas, conforme analisado em Miranda e Paiva (2023), é preciso identificar as razões pela qual isso ocorre e enfrentá-las para que esse tipo de organização não se torne um elemento fundamental na constituição de subjetividades juvenis periféricas. Se o objetivo da repressão aos artistas que acolhem essa demanda for o de silenciá-las, acredito que o tiro sairá pela culatra.

Existem músicas sobre facções porque existem facções. Não o contrário. Atacar os artistas e suas produções não fará desaparecer as facções ou o desejo de jovens em se vincular a esses grupos criminosos armados. O que pode efetivamente contribuir com isso é a consolidação de um Estado que garanta direitos e assegure uma sociabilidade em que ser parte de uma facção não atraia tantos sujeitos que veem sabotados seus projetos de vida. Mas essa é uma tarefa difícil, é mais fácil prender o Marlon Brandon Coelho. É mais fácil assumir que o problema é, mais uma vez, um jovem negro da periferia.

Referências:

Miranda, G. & Paiva, I. L. (2023). Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação e facções criminosas. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 16, p. 193-218.

Miranda, G. & Paiva, I. L. (2019). Juventude, crime e polícia: vida e morte na periferia urbana. Curitiba: CRV.

Wacquant, L. (2007). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva] (3ª ed.). Rio de Janeiro: Revan.


Gabriel Miranda é cientista social e professor do Instituto Federal do Pará (IFPA). Por meio da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), obteve os títulos de doutor em Psicologia (2022), mestre em Psicologia (2018), licenciado em Ciências Sociais (2019) e bacharel em Gestão de Políticas Públicas (2015). Durante o ano acadêmico 2019-2020, foi estudante livre de doutorado na École des hautes études en sciences sociales (EHESS, Paris, França) e, ao longo do primeiro quadrimestre do ano acadêmico 2022-2023, foi investigador visitante no Departamento de Derecho del Trabajo y Trabajo Social da Universidad de Salamanca (USAL, Salamanca, Espanha). Além disso, entre agosto de 2022 e julho de 2023, realizou Pós-Doutorado no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Publicou, pela LavraPalavra Editorial, os livros “Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam” (2021) e “Em defesa da dialética: ensaios sobre o Brasil” (2023).

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

Deixe um comentário