Por Coletivo Lenin, íntegra no site
A FORMAÇÃO SOCIAL ESCRAVISTA COLONIAL
Não adianta somente criticar a tese do semifeudalismo ou a do capitalismo mercantil. É preciso formular a teoria da formação social colonial no Brasil e no restante da América Latina. Essa teoria, consideramos, foi formulada por Jacob Gorender, Décio Saes e Ciro Cardoso, no final da década de 1970. A teoria do escravismo colonial por eles formulada nos permite colocar no centro da análise a questão negra, que é a mais explosiva da sociedade brasileira, e que foi subestimada por todas as correntes que tentaram analisar a nossa sociedade, quando não foi negada de forma descarada, com o argumento de que debater sobre a opressão racial “divide a classe” ou “distrai a atenção” para os “verdadeiros” problemas sociais.
A teoria correta sobre a nossa história mostra que o racismo não é um apêndice ou uma sobrevivência do passado: é a própria fonte da explicação do atraso e da dependência do Brasil, e a luta pela integração revolucionária entre os trabalhadores negros e brancos é uma das chaves da revolução brasileira. Segundo essa linha, o modo de produção escravista colonial foi o dominante em todos os países da América Latina e no Sul dos Estados Unidos, mesmo depois da independência formal. Ele se baseava na plantagem (latifúndios monocultores para exportação), cultivada com trabalho escravo. Dentro dos engenhos, a economia era de subsistência, mas a produção era feita para o mercado mundial. Pelo próprio fato de não haver um campesinato dependente (a não ser em algumas regiões como o Nordeste brasileiro, ligado ao pastoreio, e o interior de São Paulo), não há nem mesmo sentido falar de feudalismo ou semifeudalismo.
A dinâmica desse modo de produção o subordinava às metrópoles, ao mesmo tempo em que permitia a acumulação primitiva de capital nas colônias, assim que acabassem as restrições ao comércio e à industrialização. Por isso, quando o capitalismo se tornou o modo de produção dominante nas metrópoles, corroeu o escravismo colonial de fora para dentro, através das relações de mercado. A necessidade de mercados consumidores crescentes para a indústria capitalista das metrópoles levou à intervenção estatal direta, em forma de abolição do tráfico negreiro. No Brasil isso ocorreu em 1845, com a Lei Bill Aberdeen. Ao mesmo tempo em que o capital mercantil europeu subordinava as formações sociais latinoamericanas, estimulava mais ainda o desenvolvimento da escravidão nas sociedades africanas, onde ela era uma relação de produção subordinada. A escravidão na África deixou de ser patriarcal, e se tornou muito mais violenta, ao ser modificada para produzir mercadorias para o comércio. Surgiram reinos que tinham como atividade econômica principal a captura e venda de escravos.
A destruição do escravismo colonial foi, em geral, de cima para baixo. No caso da Abolição no Brasil, que será analisada mais à frente, foi o resultado de uma revolução social dirigida por uma ala da classe média urbana. Mas houve dois casos importantes em que esse processo foi realizado pela via revolucionária insurrecional e com forte participação popular.
O primeiro foi a Revolução Haitiana (1792- 1804), a única revolução vitoriosa dirigida por escravos na história. O instrumento organizativo desse processo foram várias sociedades secretas de escravos, e durante todo o período imediatamente anterior, os escravos domésticos membros dessas sociedades envenenaram milhares e milhares de senhores de engenho. Touissant L’Ouverture, o grande líder militar da Revolução, conseguiu vencer o exército de Napoleão. O historiador então trotskista, C.L.R. James, em sua obra Jacobinos Negros, o comparou como dirigente a Lênin e Trotsky.
Posteriormente, a revolução haitiana foi retrocedeu porque os escravos instituíram uma economia camponesa de subsistência, ao invés do latifúndio de exportação (que era a força produtiva mais avançada para o campo na época) e a indústria capitalista. Isso levou o Haiti a um retrocesso histórico sem medida. Toussaint L’Ouverture acreditava que o caminho era a acumulação primitiva do capital, como foi feito na França após a revolução. Por serem contra sua arregimentação para trabalhar nos latifúndios, os escravos derrubaram L’Ouverture, e depois Dessalines e Cristophe. Isso é um indício de que a revolução contra o escravismo colonial precisava ser dirigida pela burguesia e pequena-burguesia, e se apropriar do latifúndio para preparar a passagem para o capitalismo, como aconteceu no segundo caso de revolução vitoriosa.
O segundo caso foi a Guerra Civil Americana, em que o Norte, dirigido por Abraham Lincoln, destruiu a economia escravista do Sul. Durante o período da Reconstrução (1865-1888), em que o poder de Estado no Sul foram as forças ocupantes do Exército (controlado pelo governo federal), as diferenças sociais entre os brancos e os negros foram combatidas. Os EUA só voltaram a um regime racista após a saída do exército, quando a antiga classe dominante branca (apoiada na organização paramilitar Ku Klux Klan) impôs uma legislação fascista aos negros, que só foi destruída com o movimento pelos direitos civis, na década de 1960 e que mantém muitos traços até hoje.
Caracteristicamente, uma revolução contra o modo de produção escravista colonial só pode ter sucesso com a destruição dos latifúndios escravistas, a disseminação das relações de propriedade capitalistas no campo (trabalho assalariado e mecanização) como forma de impulsionar industria capitalista. Os quilombos, que foram a maior expressão da resistência negra durante o período colonial, apesar do seu papel progressivo, não levaram à destruição revolucionária da plantagem. Ao criar sociedades camponesas, que reproduziam mais ou menos as formações sociais africanas da época (inclusive com escravidão patriarcal), eles deixavam o latifúndio intocado.
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RESISTÊNCIA POPULAR, NEGRA E INDÍGENA NA COLÔNIA
Desde o início da colonização, houve várias formas de resistência de distintos setores. A primeira foi a resistência indígena, que se expressou em guerras contra os invasores portugueses. Devido ao atraso produtivo das tribos indígenas, essa resistência não conseguiu se transformar em um projeto alternativo de sociedade, já que a manutenção das comunidades arcaicas estava fora de questão. Nesse caso, a resistência indígena precisaria ser dirigida por outro setor mais avançado.
Em episódios como a Confederação dos Tamoios (1560-1572) ou nas guerras das Missões (1767), os índios acabaram servindo como bucha de canhão para um dos campos de colonizadores em conflito (no primeiro caso os portugueses usaram Araribóia contra os franceses; no segundo, os jesuítas transformaram Sepé Tiaraju em herói da luta contra os portugueses). Aliás, as próprias Missões, longe de serem uma “república comunista”, como alguns falam (o Partido Comunista Revolucionário entre eles), eram um empreendimento de escravização dos índios, que tinham a sua vida social e cultura totalmente dominadas pela igreja, e eram obrigados a trabalhar para ela.
Estamos falando isso para acabar com idéias românticas sobre a resistência popular no período colonial. Algumas correntes, como a Ação Popular Socialista (APS) e o Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR), falam como se tudo fosse parte de um só processo ininterrupto. Ou seja, não discutem nem os fatores de classe envolvidos, nem as debilidades, nem como essas formas de resistência se combinaram. Isso é quase a mesma coisa que se faz nos livros de escola sobre o assunto. Dessa forma, a história fica parecendo uma coleção sem sentido de fatos que se acumulam. No caso da APS isso não é nada mais do que o reflexo da falta de estratégia da corrente. No caso do MEPR, é fruto do fato de eles “analisarem” o Brasil aplicando o esquema da revolução chinesa, o que esvazia toda a realidade dos fatos que eles descrevem.
A única forma de resistência realmente popular (mas não revolucionária) na época foram os quilombos, que se tornaram sociedades tradicionais africanas estabelecidas no Novo Mundo, inclusive acolhendo brancos pobres e setores que sofriam opressão religiosa (como os muçulmanos e ciganos). Naquele estágio, os escravos negros ainda não tinham a perspectiva de fazer uma revolução, o que só aconteceu a partir da Revolução Haitiana que, por sua vez, foi consequência direta da Revolução Francesa (Toussaint de L’Ouverture era declaradamente adepto dos ideais iluministas e o seu objetivo era um Haiti sem escravidão como parte de uma França revolucionária).
A influência das revoluções européias leva diretamente à questão das revoltas influenciadas por elas. A burguesia mercantil no período colonial tinha contradições com a metrópole porque, a partir de determinado momento de seu desenvolvimento, ela passou a ter interesse em comerciar com outros países e nacionalizar o comércio, tirando-o das mãos de Portugal. A Guerra dos Mascates (1709-1711) foi uma expressão clara disso, porque a grande exigência era que o comércio saísse das mãos dos portugueses. A insurreição mineira de 1792 também foi um movimento da burguesia mercantil – tanto que a abolição da escravidão nem mesmo aparecia em seu programa. Isso, por si só, mostra a tolice das correntes que reivindicam que Tiradentes foi alguma coisa como um herói. Todos estes foram movimentos de setores da classe dominante.
Mesmo assim, em um desses movimentos, setores populares (artesãos, os poucos camponeses que existiam, até mesmo alguns escravos) tiveram uma influência real: foi a Insurreição dos Alfaiates (1798), em que houve uma ala que defendia a abolição da escravidão, nos moldes do Haiti, mesmo que os dirigentes (como Cipriano Barata), pelo fato de serem donos de escravos, fossem contra essa reivindicação.
1808-1822
Com a formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, por causa da fuga da família real portuguesa, depois da ocupação de Napoleão, acaba o período colonial do Brasil. A necessidade de construir no Rio de Janeiro um aparelho de Estado para governar o reino deu um impulso à acumulação de capital mercantil, e criou a infraestrutura básica de um país independente (Banco do Brasil, Exército e Polícia, aparato cultural).
Ao mesmo tempo, se aprofundou a dependência em relação à Inglaterra (já no seu período de Revolução Industrial). A Abertura dos Portos (para as “nações amigas”) e o Tratado de 1810 deixaram menores as taxas de importação com a Inglaterra. O país não mudou sua estrutura econômica de colônia agrícola exportadora de cana de açúcar.
A classe dominante propriamente brasileira só girou para a defesa da Independência porque a ida de D. João VI para Portugal (após a Revolução do Porto, em 1820, que exigiu a recolonização do Brasil) ameaçava destruir toda a estrutura criada pela vinda da Corte. Exatamente por isso, o primeiro movimento pró-independência no período, a Confederação do Equador (1817-1824) foi organizada por senhores de engenho. Apesar do seu discurso liberal e republicano, prometeu manter a “propriedade privada” dos senhores de escravos. No Grão-Pará, que só conseguiu se tornar independente e se somar ao Brasil em 1823, os setores populares foram bucha de canhão das mesmas classes, a burguesia mercantil e os senhores de engenho.
O único lugar em que a Independência teve caráter popular foi na Bahia, onde realmente aconteceu uma guerra civil para expulsar os portugueses. Por tudo isso, o Império que surgiu foi resultado de uma manobra de transformismo (para usar o conceito de Gramsci), e não houve nenhuma ruptura revolucionária. O Brasil passou de colônia portuguesa a semicolônia inglesa (com economia colonial, mas preservando formalmente a independência).
Não é por acaso que se manteve o regime monárquico, a Igreja Católica continuou a ser a única religião oficial, e se formou um Estado centralizado para melhor reprimir as várias revoltas populares que se seguiram (que precisariam de um nível de organização absurdo para se tornarem nacionais), além de garantir o tráfico de escravos por todo o território e a preservação da classe dominante. Por isso, o Brasil não se esfacelou em várias repúblicas pequenas, como o restante da América Latina. O nosso caráter de “país continente”, portanto, não é nenhum motivo de orgulho! Foi uma consequência de uma independência inteiramente controlada pelas elites e sem caráter popular.
Durante o Primeiro Reinado, a ameaça de recolonização portuguesa ficou pairando no ar. Só a abdicação de Pedro I em 1831, gerada pela pressão do movimento de massas no Rio de Janeiro (que durante a Noite das Garrafadas fez um linchamento de portugueses e se organizou através da Sociedade pela Defesa da Liberdade), afastou essa ameaça de vez. Depois disso, durante todo o período da Regência (1831-1840), os vários setores populares puderam disputar os rumos do país, sem precisar se preocupar com a recolonização. Como veremos a seguir, foram derrotados durante mais de quarenta anos.
LUTA DE CLASSES NO IMPÉRIO
Antes de começar o assunto, é importante definir outra coisa que sempre some dos livros de escola. As revoltas regionais do período regencial em nenhum momento tiveram nenhum papel revolucionário. Elas foram ou frutos do descontentamento de setores escravistas (como a Farroupilha, em 1836-1845) ou expressão de setores populares (artesãos brancos livres, camponeses, intelectuais) sem nenhum projeto político consistente. Por isso, não tinham nenhuma possibilidade de vitória. Mesmo quanto chegaram ao poder, o que foi o caso da Cabanagem (1835-1840), os revoltosos não souberam o que fazer com ele, e levaram o movimento à divisão e ao fracasso.
A causa dessa atitude é social. Existiu, até a década de 1870, uma “frente dos homens livres” (como a chama Jacob Gorender). Ou seja, quase todos os brancos livres eram donos de escravos. Por isso, nunca essas revoltas chegaram a tocar no nó da sociedade brasileira, a escravidão. No episódio da Balaiada, no Maranhão (1838-1841), aconteceu o cúmulo de que um quilombo que se formou na época da revolta, dirigido pelo Preto Cosme, simplesmente não foi levado em consideração pelos dirigente do processo. Na chamada Revolução Praieira (1848), junto com o programa de nacionalização do comércio, da federação e da abolição dos juros (por influência do socialismo de Proudhon), nem mesmo se falou na escravidão.
Ao mesmo tempo, o Estado se centraliza, para poder destruir melhor as várias revoltas. A Guarda Nacional, criada em 1834, passou a ser o instrumento de repressão interna, o braço armado dos senhores de engenho. Enquanto isso, o Exército (muito menor que a Guarda Nacional) assumiu o caráter de defesa externa. Foi a competição, na Guerra do Paraguai, como o exército burguês do Paraguai que “ganhou” a maioria dos oficiais para as posições abolicionistas e republicanas, como veremos à frente. Durante a abolição, o Império chegou a tentar substituir o Exército pela Guarda Nacional, para sufocar o abolicionismo, e essa tentativa foi um dos fatores que levaram ao golpe de 15 de novembro de 1889.
Assim, o verdadeiro estudo das lutas de classes no Império não deve se transformar numa enciclopédia de cultura inútil. Em vez disso, temos que estudar o que realmente importa no período antes da Revolução Abolicionista: as revoltas de escravos e as revoltas camponesas. Quanto às revoltas de escravos, essas passaram a se combinar com os quilombos e a ter um caráter insurrecional. O maior ciclo de revoltas escravas foi o que aconteceu na Bahia, de 1807 a 1835, que foi “fechado” com a Revolta dos Malês (os malês eram os negros muçulmanos), dirigida por Luiza Mahim (mãe do revolucionário Luiz Gama). A Revolta dos Malês foi um plano claro para a tomada do poder, mas sem objetivos muito concretos do que seria feito com esse poder. Ainda na Bahia, houve a greve de escravos de ganho, em 1857, que já era influenciada pelo movimento operário embrionário no país (a Bahia era a região com mais indústrias no Brasil).
A partir da década de 1850, com a abolição do tráfico negreiro, acontece uma supervalorização do preço dos escravos. Esse fator conjuntural aumenta as perseguições feitas pelos capitães do mato. Ao mesmo tempo, a abolição do tráfico criou o limite absoluto para a reprodução do modo de produção escravista colonial. Nesse momento histórico, a abolição imediata da escravidão passa à ordem do dia. Por isso, as revoltas escravas se transformam em um movimento revolucionário abolicionista de massas, apoiado nas fugas de escravos e dirigido pela classe média inter-racial das cidades. Isso será visto em detalhe mais à frente.
O movimento camponês teve poucas oportunidades de se desenvolver politicamente durante o século XIX. A estrutura fundiária escravista se reproduziu legalmente. A lei de terras de 1850 (pela qual a posse da terra só poderia ser garantida pela compra) foi um mecanismo para impedir a formação de um campesinato com terras. A própria existência de um sistema de venda de terras por si só já desmente a tese do feudalismo, sistema no qual não esse tipo de relação não existe.
Devido ao atraso das condições de vida, os movimentos camponeses acabaram se expressando com ideologias elementares, muitas vezes de conteúdo semi-religioso. Isso deixa ainda mais claro o papel da opressão religiosa como instrumento de legitimação da opressão de classes, como aconteceu desde a Inquisição no período colonial (que perseguia os judeus, as religiões africanas e indígenas, além de homossexuais, como no caso de Felipa de Souza) e que continuou no Império, com a sua imposição do catolicismo como religião oficial.
Foi esse o caso da Cabanagem (1831), em que os camponeses pensaram que estavam “defendendo o Imperador Dom Pedro I” e, consequentemente, a Igreja Católica, ao tomarem as terras e criarem uma comunidade milenarista onde havia até mesmo sexo livre. Foi o caso da participação camponesa na Balaiada e na Cabanagem. E foi o caso de Canudos e do Contestado, já na República, que representam a continuidade da luta contra o latifúndio pré-capitalista.
Houve também outros episódios de revoltas, como o Ronco da Abelha (1873) e a Revolta do Quebraquilos (1874), as duas no Nordeste, onde os camponeses atacaram a opressão fiscal do Império e os latifundiários, provocadas por motivos aparentemente fúteis (no caso do Quebra-quilos, por exemplo, pela implantação do sistema métrico decimal, que os camponeses achavam que seria usado para fraudá-los nas feiras).
O grande problema é que essas revoltas não conseguiram se transformar num movimento consistente pela revolução agrária, em parte por causa da imaturidade das condições objetivas, pelo atraso cultural e social do campo brasileiro e pelo peso minoritário dos camponeses no escravismo colonial, em parte por causa da falta de política dos setores populares no período. Por isso, quando a frente de homens livres foi rompida, após a Guerra do Paraguai, não pôde se encontrar com uma revolução agrária em curso. Só assim, a revolução abolicionista poderia ter sido completamente vitoriosa, destruindo a escravidão ao mesmo tempo que o poder do latifúndio, e criando um Estado burguês avançado.
A REVOLUÇÃO ABOLICIONISTA
Diferente da maioria da esquerda e do movimento negro, consideramos que a Abolição foi a única revolução social vitoriosa no Brasil. Dizer que a Abolição foi uma farsa serve para educar os trabalhadores numa concepção fatalista da história, que diz que os oprimidos sempre foram incapazes de lutar, e que tudo o que aconteceu nos últimos quinhentos anos foi fruto da ação das classes dominantes. Pior ainda, esse tipo de concepção esconde a tremenda transformação que aconteceu na sociedade brasileira na década de 1880, fruto da ação direta das massas. Se a Abolição tivesse sido uma farsa, os negros ainda morariam em senzalas, seriam marcados a ferro e assassinados a céu aberto. O fato de que a vitória da Abolição foi incompleta só nos deve estimular a entender a dinâmica e as fraquezas do processo como um todo.
Em primeiro lugar, isso significa procurar pelos setores que dirigiram o processo. É uma coisa bem clara que o Exército, após o esforço da Guerra do Paraguai, e com o contato com os Estados burgueses que participaram dela, teve que se reorganizar em moldes burgueses (serviço militar em massa, meritocracia, racionalidade instrumental, etc). Isso gerou uma ideologia burguesa, que se expressava na idéia de ascensão social pelo mérito, o que era frontalmente contrário à escravidão. Diante disso, os oficiais começam a exigir que o Brasil se “modernizasse”, ou seja que acabassem a escravidão e a monarquia. O Exército (as suas camadas médias militares) é o primeiro dirigente da revolução burguesa no Brasil.
Ao mesmo tempo, a abolição não poderia ser vitoriosa sem que a classe diretamente interessada nela agisse. Os escravos, através de milhares de fugas em massas, destruíram o escravismo economicamente, e foram a força econômica principal da revolução abolicionista. Entre 1887 e maio de 1888, UM TERÇO dos escravos de São Paulo fugiram! Mas a própria forma de luta (a fuga) impedia que o processo se transformasse em revolução agrária para destruir o latifúndio. Nas cidades, o movimento abolicionista era formado pelas camadas médias civis (professores, advogados, médicos) e militares, e se dividia em suas alas. A moderada (emancipacionista), que acreditava no fim da escravidão pela via institucional, e a revolucionária, que se apoiava na ação direta dos escravos e em sociedades secretas para organizar as fugas.
A ala revolucionária contava com quadros como Luiz Gama (que ficou conhecido por defender um escravo que tinha matado o senhor de engenho, e usou na justiça o argumento de que o ato foi legítima defesa), Antônio Bento (que organizou a sociedade secreta dos Caifazes, que foi o maior fator de desagregação da escravidão em São Paulo), Francisco Glicério, Lopes Trovão e Chiquinha Gonzaga (ativos na Revolta do Vintém, em 1879, onde o proletariado e os outros setores populares fizeram uma série de ataques aos bondes por causa do aumento dos preços), Francisco Nascimento (que dirigiu a Abolição no Ceará, em 1884, antes de todo o resto do país, através de uma greve dos jangadeiros que transportavam escravos) e muitos outros.
Entre os métodos da ala revolucionária do abolicionismo, houve a formação de quilombos urbanos itinerantes, que serviam para acolher os escravos fugidos, e ao mesmo tempo tentar reintegrá-los na economia como homens livres. O quilombo do Jaboatão, em Santos, formado com ajuda dos abolicionistas em apenas dois anos, chegou a ter 10 mil habitantes em 1888 – metade da população do Quilombo dos Palmares!
A ala republicana radical, principalmente nas pessoas de Silva Jardim e Bernardino de Campos, também entendia que a República só poderia não ser uma farsa se fosse antecedida pela Abolição (segundo Bernardino de Campos, “a república sem a abolição seria uma utopia”) e surgida a partir de uma insurreição popular. Não por acaso, essa ala foi deixada à margem do movimento do 15 de Novembro, que tomou a forma de um golpe militar. Houve apoio do povo, mas não houve participação direta, o que só aconteceu em 1894, na luta contra a Revolta da Armada (que tentou restaurar a monarquia) onde os trabalhadores, estudantes e as camadas médias criaram batalhões para organizar a solidariedade com o Exército para derrotar a contra-revolução.
O Exército, expressando o interesse de parte das camadas médias na implantação de um Estado burguês com direito burguês no Brasil, foi essencial no último momento do abolicionismo. O Clube Militar, criado em 1887, se declarou publicamente contra a escravidão e organizou a desobediência dos militares à ordem de ocupar a zona cafeeira paulista no começo de 1888, declarando que a tarefa de caçar escravos era “infame e infamante, própria de capitães do mato”. Além disso, foi o Exército que forneceu os quadros para a primeira fase da República, chamada de “jacobina”, em uma comparação com a fase radical da Revolução Francesa.
Toda essa luta política teve que ser feita de fora dos partidos republicanos, que eram formados por senhores de engenho e, por isso, nunca foram revolucionários. Infelizmente, o apartidarismo e o movimentismo dos abolicionistas os impediu de criar um partido revolucionário em escala nacional. Só uma organização como essa poderia completar a abolição com a sua tarefa complementar, a destruição dos latifúndios, e preparar as massas da cidade e do campo para a insurreição republicana, que iria abrir caminho a uma república democrática avançada. Como isso não aconteceu, o Estado burguês que surgiu no Brasil entre 1888 e 1892 foi controlado, a partir da Constituinte, pelos setores latifundiários, através do voto de cabresto e da política do café com leite. É mais um alerta para os militantes que persistem no erro de fazer apenas movimento, sem entender a necessidade da luta pelo poder político.
2 comentários em “Do escravismo colonial à Revolução Abolicionista”
Boa noite. Ainda dispõe do texto integral guardado? Há possibilidade de me enviar, visto que o link do coletivo está off?
Prezado, infelizmente não!