Jacques Rancière: A atualidade de “O Mestre Ignorante”

Por Patrice Vermeren*, Laurence Cornu e Andrea Benvenuto, via Scielo, traduzido por Lílian do Valle.

Nesta entrevista, Rancière situa O mestre ignorante no contexto de sua trajetória intelectual e da realidade política, social e acadêmica da França nos anos oitenta. O texto reafirma as principais teses do livro: a ignorância do mestre é a da desigualdade. O princípio, a igualdade, é um axioma a ser verificado. A emancipação supõe um funcionamento igual, universal, das inteligências. A lógica da emancipação nunca trata, em definitivo, senão com relações individuais e ela não é – não pode ser – um sistema escolar, ou uma empreitada cultural. Finalmente, o texto aborda as semelhanças e diferenças entre as concepções de J. Jacotot e Paulo Freire e a atualidade de O mestre ignorante.


Entrevistadores: – O nome de Joseph Jacotot foi inicialmente evocado na Noite dos proletários (Paris: Fayard, 1981) e, em seguida, por ocasião de um colóquio organizado pelo Colégio Internacional de Filosofia em Le Creusot, nos dias 6 e 7 de outubro de 1984. As atas do colóquio foram posteriormente publicadas sob o título: Les sauvages dans la cité. Autoémancipation du peuple et instruction des prolétaires au XIXème siècle (Seyssel: Champ Vallon, 1985). Em O mestre ignorante, sub-entitulado Cinco lições sobre a emancipação intelectual, Jacotot torna-se personagem filosófico central (Paris; Fayard, 1987). Antes disso, houve Le philosophe et ses pauvres (Paris: Fayard, 1983) e o número especial da revista Les révoltes logiques, que tinha por alvo a sociologia de Pierre Bourdieu (L’empire du sociologue. Paris: La Découverte, 1984). Nossas primeiras perguntas são, a uma só vez: qual era esse contexto? Como intervém aí O mestre ignorante? Como se deu o “encontro” com Jacotot? E, finalmente: como separar o que se deve a Jacotot, e o que pertence a Rancière?

Jacques Ranciére: – O ponto de partida foi a descoberta “individual” da figura de Jacotot, à época em que eu estava escrevendo A noite dos proletários. Os textos que eu lia ora mencionavam uma criança a ele enviada por seus pais, ora uma forma ou outra de aprendizagem intelectual nele inspirada, mas sempre no sentido de uma experiência através da qual se havia forjado a prática dessa emancipação intelectual que eu então analisava como um momento essencial da emancipação social. Foi quando se deu, na França, a vitória dos socialistas e, com ela, toda uma polêmica sobre a escola pública, opondo a concepção do sociologismo progressista, que, inspirada por Bourdieu, privilegiava as formas de adaptação do saber às populações desfavorecidas, ao pensamento dito “republicano”, que insistia sobre a difusão indiferenciada do saber, como instrumento de igualdade.

Ora, as duas posições se punham de acordo quanto a um ponto fundamental, que serve de referência comum para a ideologia “progressista”: nos dois casos, o saber é entendido como instrumento de igualdade – diretamente, para os republicanos; por meio do saber acerca das desigualdades transmitidas pelo saber, no caso do sociólogo. Mas, em definitivo, é sempre o saber que se faz instrumento de igualdade: um mesmo modelo estava na base das duas posições. A ideia de emancipação intelectual era, justamente, o questionamento desse modelo comum. Nenhum saber traz, por si próprio, a igualdade como efeito. A igualdade, nela mesma, não é nem um efeito produzido, nem uma finalidade a ser atingida, mas um pressuposto que se opõe a um outro. Por trás da polêmica entre “republicanos” e “sociólogos”, há de fato a oposição entre aqueles que tomam a igualdade como um ponto de partida, como um princípio a ser atualizado, e aqueles que a concebem como um objetivo a ser atingido por meio da transmissão de um saber. Isso posto, não era difícil perceber, na época, o quanto Jacotot “dissolvia” as teses sociológicas; muito mais difícil, no entanto, era identificar de que maneira ele se afastava de forma igualmente radical dos “republicanos”, no que se refere à concepção da igualdade.

Quanto à proximidade entre as teses de Jacotot e as minhas: é evidente que todo meu trabalho teórico esteve associado à tentativa de falar por meio das palavras dos outros, de fazer falar diferentemente as palavras dos outros, refraseando-as, recolocando-as em cena. Assim, o interesse desse livro está em uma certa arte, em um exercício de refrasear que me permitiu projetar no debate intelectual dos anos 80 todo um léxico e uma retórica inteiramente datados e, inversamente, emprestar a Jacotot, como se estivessem na base de sua reflexão, razões que derivavam da crítica ao pensamento sobre a igualdade, tal como ele se produzia na França dos anos de 1980. Tratava-se de inserir o debate contemporâneo em uma perspectiva bem mais antiga da questão da igualdade e, portanto, de suprimir a diferença; e, ao mesmo tempo, de fazer valer, para essa atualidade, a estranheza radical da posição teórica de Jacotot, sua inatualidade em relação a seu próprio tempo – o tempo das origens da grande cruzada pela “instrução do povo”, à qual ele opôs a emancipação intelectual.

E: – Uma das interrogações que se poderia formular é a das relações entre esse método e a maiêutica socrática – reatualizada, em certos momentos do século XIX, como paradigma de uma pedagogia para as classes pobres diferente daquela praticada pela instituição escolar; outra questão que se coloca é a do filosofema da igualdade da luz natural, em Descartes, em face da igualdade das inteligências, de Jacotot.

JR: – A figura socrática é, evidentemente, central; Jacotot ataca a imagem tradicionalmente associada ao mestre emancipador, por oposição ao mestre autoritário: Sócrates, que vai às ruas e faz falar seu interlocutor, que deduz a verdade ensinada da própria progressão do discurso que face a ele se mantém. Ora, toda a reflexão de Jacotot vai no sentido de mostrar que a figura de Sócrates não é a do emancipador, mas a do embrutecedor por excelência, que organiza uma mise-en-scène em que o aluno deve se confrontar às lacunas e aporias de seu próprio discurso: Jacotot mostra que nisso consiste, exatamente, o método mais embrutecedor – entendendo-se por embrutecedor o método que provoca no pensamento daquele que fala o sentimento de sua própria incapacidade. No fundo, o embrutecimento é a marca do método que faz alguém falar para concluir que o que diz é inconsistente e que ele jamais o teria sabido, se alguém não lhe houvera indicado o caminho de demonstrar a si mesmo sua própria insignificância.

O método socrático permanece um pouco, por toda parte, nas escolas, o modelo da pedagogia liberal – senão libertária – e, nesse sentido, é capital que Jacotot tenha invertido as coisas. Ele o fez, mostrando que o ponto crucial do que denomina “embrutecimento” não é a sujeição de uma vontade a uma outra; que o problema, justamente, não é o de abolir toda relação de autoridade, de forma a não deixar senão uma relação de inteligência à inteligência. Pois é exatamente quando só existe relação de inteligência à inteligência que a desigualdade das inteligências – a necessidade de que uma inteligência seja guiada por uma inteligência – melhor se demonstra. Toda a questão política da transmissão do saber, em Jacotot, pode ser pensada como uma crítica radical à famosa cena do escravo do Mênon, que descobre supostamente sozinho as verdades da geometria: o que o escravo do Mênon descobre é, simplesmente, sua própria incapacidade de descobrir qualquer coisa, quando um bom mestre não o guia para o bom caminho.

A emancipação dos indivíduos deve, pois, ser pensada em um esquema inverso, no qual a vontade seja, não deixada de lado, para que se estabeleça a “pura” relação entre inteligências, mas, pelo contrário, se reconheça como tal, se declare como tal, isso é, se declare ignorante. O que é um mestre ignorante? É um mestre que não transmite seu saber e também não é o guia que leva o aluno ao bom caminho, que é puramente vontade, que diz à vontade que se encontra a sua frente para buscar seu caminho e, portanto, para exercer sozinha sua inteligência, na busca desse caminho.

Eis o primeiro aspecto, o anti-socratismo de Jacotot no cerne do método emancipador da emancipação intelectual. O segundo aspecto, cartesiano, é talvez menos importante. A relação de Jacotot com Sócrates, ainda que Jacotot não seja um especialista de filosofia helênica, é teoricamente consistente. No caso de Descartes, há outro tipo de relação. Jacotot é um homem do século XVIII, de um certo século XVIII, que reteve positivamente de Descartes um pensamento (o “bom senso” que é “a coisa mais bem partilhada no mundo”). Sabe-se, porém, o quanto essa afirmação, no princípio do Discurso sobre o método, é dúplice: Descartes defende a tese do bom senso “universalmente partilhado”, mas o contexto é irônico, ele pratica uma derrisão meio socrática. Jacotot procede, pois, um pouco como Poulain de la Barre na questão da inteligência das mulheres: ele retém, do enunciado geral cartesiano, a igualdade da luz natural, para daí implicar a inversão do “penso logo sou” em “sou homem, logo, penso”. É evidente que a palavra “homem” – o traço de igualdade entre o ser e o pensamento – não aparece na fórmula cartesiana. A instância à igualdade que Jacotot retira dessa mesma fórmula só é possível por meio de um desdobramento do sujeito do cogito em sujeito humano. Jacotot retira do “bom senso” cartesiano uma idéia fundamental: não há diversas maneiras de ser inteligente, não há partilha entre duas formas de inteligência e, portanto, entre duas formas de humanidade. A igualdade das inteligências é, antes de qualquer outra coisa, igualdade da inteligência consigo mesma, em todas as suas operações.

Esse cartesianismo é, sem dúvida, bastante ambíguo, posto que Jacotot se serve de Descartes para recusar a ideia de que haja uma inteligência metódica oposta à inteligência “anárquica”, que caminha ao acaso, e para suprimir a oposição estabelecida por Descartes entre as razões e as “histórias”. Seu cartesianismo é, pois, extraordinariamente seletivo. É um cartesianismo sem tábula rasa. Há uma origem absoluta, é preciso partir de uma decisão, mas não há tábula rasa, no sentido de uma ruptura com o funcionamento normal das inteligências, para estabelecer um ponto de partida absoluto. O ponto de partida intelectual é um ponto qualquer (é preciso “partir de algo e a isso relacionar todo o resto”). Ora, todos os métodos aos quais se opõe Jacotot se fundam em Descartes, na progressão do simples ao complexo, na ruptura com o mundo das opiniões, na oposição entre inteligência metódica e inteligência que conta histórias, que se deixa levar por aventuras, e assim por diante.

A aventura cartesiana é, em certo sentido, radicalizada, na medida em que essa decisão é tomada no seio de um universo intelectual sem hierarquias, no qual não existe oposição de princípio entre o fato de compreender e o fato de adivinhar. A operação da inteligência é sempre uma operação que consiste em adivinhar o que o outro quis dizer. O cartesianismo de Jacotot é um cartesianismo da decisão da igualdade, mas que no fundo supõe, precisamente, a refutação de todo o pensamento do método em Descartes.

E: – Parece que há algo de paradoxal, mas que também desenvolve o poder do paradoxo, nessa questão da inteligência. De um lado, há crítica de um certo número de teorias da inteligência, mas o problema, na verdade, não é de fato, mas de decisão: Jacotot não sustenta uma tese teórica de que as inteligências são iguais, mas uma hipótese de efeitos práticos – a palavra “crença” é frequentemente empregada. Não haveria, nessa hipótese operatória da igualdade das inteligências, algo como uma auto-verificação: porque há uma decisão, isso acaba por se autoverificar?

JR: – É claro que nenhuma teoria da inteligência jamais verificará a tese de Jacotot. Em outras palavras, não há consistência teórica auto-verificada no pensamento de Jacotot. Quando Jacotot afasta toda a frenologia, as bossas de Gall e companhia, ele não se desfaz apenas da fisiologia mais ou menos problemática de seu tempo, mas, na verdade, de qualquer justificação da igualdade, ou desigualdade, baseada no funcionamento do cérebro. A prova da igualdade é uma prova prática, em ato. É claro que se pode afirmar que sua teoria é uma negociação teórica meio complicada, um pouco claudicante, entre duas coisas; a teoria dos elementos simples da ideologia e a contra-teoria do movimento de espírito, que se elabora no início do século XIX. O caminho analítico dos signos é assimilado a uma espécie de potência interior algo inverificável, algo obscura, que é a da vontade. Poderia ser interessante, a título histórico, desmontar essa construção. Mas a hipótese da igualdade das inteligências não é fundada em uma teoria do conhecimento. É uma pressuposição, no sentido de axioma, é algo que deve ser pressuposto para ser verificado. Há dois níveis de pressuposto. Um nível de implicação lógica: pode-se dizer que, de toda maneira, a hipótese da igualdade é necessária para fazer funcionar a própria desigualdade. Quando o mestre que sabe se dirige aos alunos que não sabem para transmitir o saber, isso supõe um mínimo de igualdade – por exemplo, a compreensão de uma linguagem por meio da qual o mestre vai falar ao aluno, para explicar-lhe a desigualdade que há entre eles. Nenhuma ordem seria executada, se o inferior que a recebe não pudesse compreender a ordem e o fato de que é preciso obedecer. Há, pois, em qualquer circunstância, um nível de igualdade irredutível, que é preciso supor para fazer funcionar a própria desigualdade. Esse é um primeiro nível de verificação: todo mundo verifica constantemente que há igualdade.

Mas essa igualdade fundamental geralmente só se presta a seu próprio desaparecimento. Todos conhecem a fórmula aristotélica que diz que o escravo compreende a linguagem, mas não a possui – isso é, ele pode obedecer às ordens, não mais do que isso. Ora, transformar essa compreensão em posse é precisamente o que visa Jacotot. Um mínimo de igualdade serve habitualmente à compreensão e, no fundo, ao funcionamento das desigualdades: ele afirma que se pode colocar esse mínimo de igualdade que submete o inferior à lei de seu superior a serviço de seu próprio desenvolvimento: ele pode empregá-lo em sua auto-afirmação. Todo o poder da hipótese igualitária está, portanto, naquilo que ela permite operar. É esse o segundo nível de funcionamento do pressuposto. É preciso pôr o suposto ignorante em uma situação em que a igualdade possa ser maximizada, em que ela possa ser tomada como ponto de partida, produzindo seu efeito. Toda a questão é de saber do que se parte; da igualdade, ou da desigualdade.

Normalmente, a relação pedagógica parte da hipótese da desigualdade, mesmo que seja para “chegar” à igualdade. Ora, a relação emancipadora exige que a igualdade seja tomada como ponto de partida. Ela exige que se parta, não do que o “ignorante” desconhece, mas do que sabe. O ignorante sempre sabe alguma coisa e sempre pode relacionar o que ignora ao que já sabe. Tudo começa pelo obstáculo aparentemente mais intransponível: o da leitura. Como penetrar em um mundo de signos que nos é opaco? O método de Jacotot consiste na afirmação de que sempre há um ponto de passagem, de que o ignorante sempre possui, em seu conhecimento oral da linguagem, os meios de estabelecer relações com os signos escritos que ignora. O ignorante sempre sabe uma oração; por conseguinte, se alguém que sabe escrever puser essa oração por escrito, ele saberá que a primeira palavra do Pai Nosso é “Pai” – no papel, tanto quanto na sua cabeça – e poderá portanto fazer uma primeira associação. Em um calendário, ele sabe qual é a data de seu aniversário; se lhe mostrarem o calendário, ele poderá estabelecer esse mínimo que vai guiá-lo em direção a um saber linguístico comum: como se escreve seu próprio nome, e assim por diante. É isso que é fundamental: a igualdade só pode ser verificada; mas, ao mesmo tempo, eu diria que, na verdade, tudo o que há é a verificação da igualdade. Somente essa verificação faz, do ponto de vista intelectual, efeito.

E: – A garantia disso tudo seria, de alguma forma, a vontade, a decisão de levar a hipótese da igualdade das inteligências até suas últimas consequências: o que remete ao “mestre intratável”, que não cessará de exigir essa verificação, a fim de que o aluno o prove a si mesmo. Tem-se a impressão de que isso tampouco diz respeito a um voluntarismo, mas a uma espécie de processo que se passa entre o mestre e o aluno – e de que algo vai se comunicar dessa determinação. Seria um contrassenso, ou uma maneira de tratar essa potência um pouco obscura que é a vontade, referi-la ao fenômeno da transferência: uma inteligência se desperta, eis que algo se “transfere” do mestre ao aluno, pela convicção de que o aluno é capaz? Uma transferência, nesse caso, não em direção a um sujeito suposto saber que seria o mestre, mas a um sujeito capaz de saber quem seria o aluno…

JR: – É evidente – e isso é um verdadeiro problema – que, na medida em que o que se transmite não é a inteligência, é preciso que alguma coisa se transmita. O que significa o fato de “transmitir uma vontade”? Transmitir uma vontade é como transmitir uma opinião: a opinião da igualdade ou desigualdade das inteligências. Quando se pensa em “transferência”, pensa-se em psicanálise, ao “sujeito suposto saber”, ou suposto ignorar. Ora, é claro que o ponto comum entre um certo tipo de psicanálise e o mestre jacotista é que este último assume a posição daquele que não sabe. O que é o “mestre ignorante”? É um mestre que se retira empiricamente de jogo e diz ao candidato à emancipação: o problema é seu, eis aqui esse livro, eis aqui a oração, eis aqui o calendário, eis aqui o que tens a fazer, observa os desenhos nessa página, diz o que podes reconhecer aí etc. Essa posição do ignorante é naturalmente acentuada quando o mestre realmente ignora o que o aluno deve aprender – é a experiência de Jacotot como professor de holandês ou de pintura. Mas, fundamentalmente, “ignorante” quer dizer ignorante da desigualdade. O mestre ignorante é o mestre que não quer saber das razões da desigualdade. Toda experiência pedagógica normal está estruturada por razões da desigualdade. O mestre ignorante é aquele que ignora tudo isso e que comunica essa ignorância, isso é, comunica essa vontade de não saber nada a esse respeito.

Nesse sentido, o mestre ignorante realiza efetivamente alguma coisa que é da ordem do irracional da situação analítica. É preciso que algo se transmita, mas o que é transmitido não é a vontade, no sentido da ordem do outro interiorizada, é a vontade no sentido de opinião do outro, opinião materializada em um dispositivo e sobre a qual se assume inteira responsabilidade. É preciso que eu decida que as inteligências são iguais. No entanto, essa decisão não é uma operação meramente intelectual, mas também da vontade, no sentido de uma operação que reestrutura as relações entre os homens. Eis toda a lógica da coisa.

Decidir que posso ler essas letras, que vou traçar meu caminho por essas letras que não conheço é decidir, também, sobre a igualdade em geral, para os outros. É sair de um funcionamento social invariavelmente baseado na compensação das desigualdades. A lógica ordinária do ignorante é fundamentalmente uma lógica em que se aplica a própria inteligência na manutenção das razões da desigualdade. “Eu não posso” significa que emprego minha inteligência em me provar que eu não posso. Com isso, eu a emprego em me provar que os outros não podem, e assim por diante. A transferência da vontade consiste nisso, e é importante que exista um dispositivo material – eventualmente representado pelo livro que é estendido ao aluno – para encarnar essa transferência da vontade.

E: – Não haveria, na relação entre vontades, algo que poderíamos associar, desde o ponto de vista da psicanálise, a uma transferência? O despertar dessa liberdade não é o de um desejo?

JR: – A palavra desejo está totalmente ausente nos textos de Jacotot; em certo sentido, não há pensamento mais afastado da psicanálise do que o seu. Todo o seu pensamento é formado em um universo racionalista do século XVIII – que ele, à sua maneira, desfigura. Não há dúvidas de que ele tem por referência essa nova teoria da vontade obscura que se afasta da transparência condillaciana. Mas, nem por isso, a vontade é um universo de trevas escondidas; ela é simplesmente uma realidade primeira, inanalisável. Inanalisável, mas que se pode, ao mesmo tempo, formular claramente; “queres ou não queres a desigualdade? Queres consagrar tua inteligência a provar a ti mesmo que és incapaz, ou que és capaz?”. O psicanalista seguramente teria muito a dizer sobre a questão, sobre as razões que levam tal ou qual indivíduo a cruzar a porta do emancipador, como outros cruzarão a porta do psicanalista. Mas essas razões não interessam a Jacotot: ele não pensa sobre elas.

E: – Seria essa transferência de vontade – você emprega, também, o termo crença – o que faz com que não haja engendramento de desigualdade, que ocorreria se houvesse interiorização da ordem do outro?

JR: – De fato, creio que a questão é construir de tal maneira que a vontade me solicite, precisamente, que eu me desfaça da opinião da desigualdade. Repito que se pode, acredito, traduzir uma vontade em crença, traduzir vontade em desigualdade; a vontade do mestre, como Jacotot a descreve, é uma vontade que deve se efetuar inteiramente na decisão do incapaz, que decide que é capaz.

E: – Eis aqui a evocação do contexto, e uma citação em exergo: “Ensinaste-me a língua, e dela faço uso; eu sei maldizer: que a peste vermelha te apodreça, por me haveres ensinado tua língua!” (Caliban a Própero, A tempestade, Shakespeare). “Na América Latina, a coabitação das culturas originárias da África, da Europa e do próprio continente americano, antes da colonização, alimenta o debate sobre a questão: como conciliar a universalidade e a diversidade cultural? Do ponto de vista dos indígenas, o “choque de culturas” significa a extinção, a morte, o genocídio e é por essa razão que reafirmar o sentido próprio [de suas culturas] requer encontrar um sentido na diversidade, condição mesmo de sua existência. A integração implicaria a desintegração e a morte de sua cultura”. (Mauricio Langón, Hay muchos dioses porque hay muchas lenguas, Boletin de Filosofía, Buenos Aires, FEPAL, 1995) Se a emancipação é a tomada de consciência de uma igualdade de natureza, o que autorizaria a viagem ao “país do saber”? Como você traduziria, nessa perspectiva, as palavras de Andrés, um mbyá guaraní (que vive no Uruguai): “Em tempos distantes, havia pessoas muito más. Porque nós, mbyá, temos uma língua diferente da língua dos chiripá. E nós acreditamos que existem muitos deuses, porque há muitas línguas. Se existisse apenas um só deus, como eles crêem, nós não seríamos diferentes, nós não teríamos deuses diferentes. Não existe apenas um deus, são muitos os deuses”. (M. Quintela. In: Fernández, A.; M. Langon, M. Quintela, M. Salvo. Un ensayo de diálogo intercultural con el pensamiento indígena; buscando alternativas en los espacios de comunicación abiertos con pequeñas comunidades mbya-guaraní del Uruguay, 1993, mímeo) E o que pensar da palavra de Vicente: “Os mbyá precisam viver nas florestas e os brancos nas cidades. Porque Ñande Ru fez os mbyá de árvore, e os brancos de papel. Por isso, os primeiros precisam das florestas e os segundos da escrita. Os mbyá não precisam escrever, porque eles têm cabeça”. (M. Langón, op. cit.). O fato de reconhecerem possuir uma natureza diferente e de não quererem entrar no “país do saber” deixaria os mbyá sem qualquer possibilidade de emancipação?

JR: – É preciso considerar que o emancipador não é um colonizador cultural. Deixo de lado, por hora, a questão geral da diversidade cultural. Mas a emancipação intelectual, tal como a formula Jacotot, é um pensamento que nasce no momento em que se desenvolvem os grandes programas do que se poderia chamar a colonização cultural interior. É o momento em que as elites dirigentes descobrem que é preciso educar um pouco os bárbaros que estão às suas portas, em suas ruas e avenidas, em seus campos. É preciso fazer com que entrem os bárbaros, os autóctones, os povos fechados em seu universo cultural, no país de um certo saber, de uma cultura comum. Ora, é claro que o ponto de vista da emancipação é completamente estrangeiro e oposto a essa forma de colonialismo cultural: quer esse colonialismo se refira às populações dos faubourgs parisienses ou dos campos da Bretanha, quer se refira aos povos longínquos e ditos primitivos, o princípio é o mesmo: o emancipador não é o instrutor de coletividades. Ele só se dirige a quem se dirige a ele. Quando está diante de alguém que quer entrar no país do saber, ele lhe indaga: “o que significa entrar no país do saber, o que procuras, exatamente, o que queres exatamente? O que buscas no país do saber é a confirmação de tua ignorância, da incapacidade comum, ou a ampliação de tua própria capacidade?” É claro que isso supõe um pensamento de tipo universalista, que interroga a duplicidade inerente à afirmação da singularidade das culturas. O pensamento da singularidade das culturas é sempre, também, o pensamento que diz que, de toda maneira, aquele que é de árvore jamais será de papel. A história da colonização foi fundada nessa espécie de duplicidade lógica permanente. A colonização – penso na colonização francesa – sempre esteve baseada em uma dupla idéia: é preciso integrar os indígenas, fazê-los beneficiarem-se da cultura, do universalismo dos saberes; e, por outro lado – e esse era o argumento para limitar a instrução e para barrar a emancipação: atenção, é preciso respeitar a cultura dos indígenas, que não lhes permite ter acesso à universalidade a que nós temos acesso. Era uma lógica bastante perversa, que dizia, por exemplo, que os argelinos não podiam ser realmente cidadãos franceses, mas apenas sujeitos franceses, porque sua cultura jurídica específica, baseada no Alcorão, os impedia de se alinharem efetivamente às normas de um direito dito universalista. É preciso considerar que os argumentos multiculturais já foram usados, e usados de maneira ambígua, na época da colonização.

De forma que não há respostas simples, fornecidas pelo pensamento da emancipação para esse problema. A resposta é sempre singular: aquele que se sente bem onde está não irá ver o mestre emancipador, somente aquele que pensa que há uma igualdade fundamental e que pretende entrar não só no país do saber, mas no país da igualdade. Há uma concepção da igualdade que a julga já realizada sob a forma de uma distribuição (a árvore e o papel, o saber das elites e o saber popular, o saber próprio a cada comunidade etc.). O pensamento emancipador acredita que, por toda parte, a mesma inteligência está em ação e recusa a visão do “cada um em seu lugar com sua inteligência própria”, em que cada qual teria sua parte: uns teriam a árvore, os outros, o papel; uns teriam o particularismo cultural, os outros, o universalismo da lei etc. A emancipação supõe um funcionamento igual e, portanto, universal da inteligência. Ela recusa, no fundo, a lógica das repartições. Mas ela certamente também recusa a ideia de que haveria uma cultura específica do universal, a ser oposta às culturas particulares.

E: – O problema é que o aluno que vai ser emancipado estabelece uma relação com um mestre…

JR: – O pensamento da emancipação supõe que alguns têm desejo de passar a barreira. O que é essa barreira que eles pretendem passar? Eles não o sabem muito bem. De fato, o pensamento da emancipação significa perguntar àquele que quer passar a fronteira em que continente deseja entrar, o que também significa: o que é a fronteira? Pode-se pensa-la de diferentes maneiras. Pode-se pensar que há o mundo dos que sabem e o mundo dos que ignoram, o mundo do universal e o mundo do particular. Quanto a isso, o mestre emancipador nada pode. Para ele, só há uma barreira importante, a barreira entre a desigualdade e a igualdade. O problema do mestre emancipador é, portanto: como fazer com que aquele que tem diante de si ultrapasse a única barreira que conta – não entre as culturas, entre o universal e o particular, entre a ignorância e o saber – mas a barreira entre aqueles que têm a opinião da igualdade e os que têm a opinião da desigualdade? O emancipador não é alguém que vai ao encontro das pessoas para emancipá-las. A emancipação sempre supõe um processo em que alguém quer passar e, assim, a questão é saber o que passar vai querer dizer. Isso implica, efetivamente, que o emancipador adote a posição de uma certa universalidade: a universalidade da igualdade, que recusa o argumento do gênero: não se tem necessidade de papel, quando se tem a memória. É o que Jacotot teria denominado – ou, antes, o que denominei por ele a lógica dos inferiores-superiores. Pois é claro que a resposta “vocês têm a escrita, nós temos a memória na cabeça” pressupõe que a cabeça dos negros é mais bem formada que a cabeça dos brancos, que precisam da escrita. O pensamento da emancipação recusa essa concepção da diversidade cultural como repartição de superioridades. Tal distribuição supostamente igualitária das culturas remete, em última instância, à ideia de que cada uma das culturas assim distribuídas é sempre superior às demais.

E: – Essa hipótese da igualdade que é capaz de se autoverificar entre indivíduos, o que poderia ela face à desproporção de poder técnico entre as culturas? Como esse desafio individual poderia ser traduzido ali onde o argumento “você é o mais forte” não trata de indivíduos, mas de toda uma civilização esmagadoramente mais forte do que uma outra?

JR: – A lógica da emancipação nunca trata, em definitivo, senão com relações individuais. Ela não serve para definir uma política coletiva face a uma situação de superioridade técnica esmagadora. Ela não é um sistema escolar, ou uma empreitada cultural. Ela é capaz de provar àquele que quer abolir sua dependência em relação a uma dominação técnica que ele pode fazê-lo. A ideia pode até mesmo se difundir, ganhar uma dimensão coletiva. Mas ela não trata de relações de poder a poder, de coletivo a coletivo. Ela não define nenhuma “revolução cultural” capaz de abolir uma relação de dominação técnica.

E: – Uma lógica individual. Como se poderia pensar a igualdade de inteligência nas relações sociais? Por exemplo: eu quero me emancipar, mas não posso fazê-lo, se isso não está nas relações sociais, não posso me emancipar sozinha, nem mesmo em pensamento…

JR: – O argumento de Jacotot é que sempre é possível se emancipar sozinho; que, de fato, só nos emancipamos sozinhos.

E: – Mas sempre nos emancipamos em relação a uma outra pessoa: mesmo entre o aluno e o mestre ignorante há uma “relação social”.

JR: – Tudo depende do que se está chamando de “social”. Quando falei em “individual”, estava me referindo à relação de um indivíduo com outro. A relação do ignorante com o mestre emancipador é o que chamo de uma relação “individual”. Por certo, ela é ainda uma relação social, mas é uma relação que interrompe uma certa forma de lógica social, uma certa forma de aplicação do funcionamento das inteligências. Normalmente, as inteligências se aplicam a provar a si próprias sua inferioridade e sua superioridade. Há um certo tipo de relações, que denomino individuais, que concernem a todos os indivíduos e que instauram uma relação igualitária. Isso efetivamente quer dizer que há uma mediação. A lógica de Jacotot é a de que é preciso uma mediação, uma vontade, pela qual se interrompe a forma como as lógicas sociais perpetuamente se transformam em lógicas individuais. Essas lógicas individuais, no sentido de lógicas dos indivíduos, normalmente reproduzem ao infinito as lógicas sociais dominantes. É pois preciso que alguma coisa, um acontecimento, um dispositivo, um indivíduo se afirme em desfuncionamento em relação a esse funcionamento “normal” da lógica social, de forma a que um indivíduo possa fazer sua inteligência trabalhar por ela mesma.

Por outro lado, a transformação individual, em uma relação a dois, poderá ter efeitos diferentes, no âmbito social. O emancipado pode ter sonhos de emancipação social, ou simplesmente aspirar a um melhor lugar na sociedade. A emancipação intelectual tem uma ação suspensiva, no que se refere aos usos sociais. É o que eu tentava dizer, radicalizando o pensamento de Jacotot; pode-se imaginar uma sociedade desigual de indivíduos que sejam iguais, de indivíduos que tenham adquirido o poder de usar igualitariamente a desigualdade.

Mas isso jamais se traduz na forma de uma igualdade social. As formas de emancipação individuais podem provocar formas de pensamento, de consciência, de práticas políticas que sejam atualizações coletivas da desigualdade, mas não há transformação de igualdade intelectual em igualdade social.

E: – De que forma seria possível relacionar (essa é uma das interrogações do trabalho de Lidia Mercedes Rodriguez, na Argentina) Paulo Freire a Joseph Jacotot?

JR: – Quando eu penso em Paulo Freire, a primeira coisa que me ocorre é sua distância em relação à divisa comtista na bandeira brasileira, “ordem e progresso”: é como uma transposição da relação de Jacotot para com os educadores progressistas – oposição entre uma concepção da educação destinada a ordenar a sociedade e um pensamento da emancipação que vem interromper essa harmonia suposta entre a ordem progressiva do saber e a ordem de uma sociedade racional progressiva. Há, então, uma espécie de atualidade de Jacotot no Brasil, no sentido de que o Brasil é o único país a ter feito da ideologia pedagógica do século XIX a própria palavra de ordem de sua unidade nacional.

A segunda referência diz respeito à relação entre a emancipação intelectual e a emancipação social. O pensamento de Jacotot não é um pensamento de “conscientização”, que busca organizar os pobres em coletividade. O pensamento de Jacotot se dirige a indivíduos. Ele o fez em um tempo após a Revolução Francesa, em que a questão era saber como “acabá-la” – ou como acabar com ela. Havia aqueles que queriam “extrair” da Revolução Francesa a ideia de que era preciso uma nova ordem social, racional, o que fortaleceria essa ordem social; tratava-se, no fim das contas, de racionalizar a desigualdade, buscando, eventualmente, no fundo da igualdade revolucionária os instrumentos de racionalização da desigualdade: é toda a teoria de uma sociedade “progressista” fundada sobre a educação. Jacotot opôs a esse projeto uma espécie de resposta “anarquista”, que consistia em dizer que a igualdade não se institucionaliza, que ela é uma decisão puramente individual e uma relação individual. Isso, sem dúvida, separa Jacotot das perspectivas de emancipação social que estão implicadas em métodos como o de P. Freire.

Isso posto, se a emancipação intelectual não tem visada social, a emancipação social sempre funcionou, quanto a ela, a partir da emancipação intelectual. Foi o que tentei demonstrar na Noite dos proletários: que um movimento de emancipação social é bem o produto de movimentos que visam, antes de qualquer outra coisa, a emancipação intelectual e individual. Há, pois, uma distância entre as intenções da emancipação intelectual jacotista e movimentos como o de Paulo Freire. Mas há algo em comum, no processo de emancipação intelectual, como vetor de movimentos de emancipação política que rompem com uma lógica social, uma lógica de instituição.

Em terceiro lugar, na medida em que a educação de Paulo Freire supõe algo como um método, como um conjunto de meios para instruir os pobres como pobres, há uma grande distância com o “método” Jacotot, que não é um método, que é como a reprodução de uma relação ou dispositivo fundamental, mas que recusa qualquer institucionalização de um “método”, qualquer idéia de um sistema que seja específico à educação do povo.

E: – Qual é a atualidade de O mestre ignorante?

JR: – Há, em minha opinião, uma dupla atualidade em O mestre ignorante. A primeira está ligada ao funcionamento das escolas em nossas sociedades. Não estou me referindo às formas específicas de reforma da escola, em um sentido liberal etc. Penso, antes, no fato de que, cada vez mais, a desigualdade tem por legitimação fundamental as legitimações escolares. Todas as legitimações naturais da desigualdade estão mais ou menos contestadas e ultrapassadas. Vivemos em sociedades que são, supostamente, igualitárias. Assim, funciona-se com a suposição da igualdade social; quando isso ocorre, a única desigualdade que, de alguma maneira, pode valer como explicação é precisamente a desigualdade intelectual, a ideia de que uns indivíduos são menos bons que os outros.

Com isso, há toda uma visão contemporânea da desigualdade, em termos da simples oposição entre os “melhores da turma” e os “atrasados”. Cada vez mais, explicam-se os funcionamentos sociais e estatais desigualitários em termos homólogos aos da instituição escolar: os governos se apresentam como governos daqueles que são capazes, que podem ver mais longe, ter uma visão dos interesses gerais; o governo mundial dos poderosos se apresenta como o governo daqueles que sabem, que compreendem, dos que preveem, sobre os que são incapazes de viver de outra forma, senão a cada dia, em sua rotina “arcaica”, ou de acordo com seus interesses “limitados”. Em toda parte, a todo momento, encena-se o mesmo enredo imaginário: governantes esclarecidos que, “infelizmente”, devem enfrentar massas ignorantes, gente que não consegue responder ao “desafio da modernidade” ou que se fecham em seus privilégios “arcaicos”. Na França, a cada vez que há um movimento social, ou votos de extrema direita, explica-se que isso acontece porque “essas pessoas não conseguem se adaptar”. Tem-se, portanto, uma visão segundo a qual todos os movimentos sociais podem ser explicados em termos de sua capacidade, ou não, de passar, como na escola, de ano, de juntar-se à turma mais avançada. A escola funciona, mais fortemente do que nunca, como analogia, como “explicação” da sociedade, isto é, como prova de que o exercício do poder é o exercício natural e único da desigualdade das inteligências.

Em relação a isso, as querelas entre uma visão sociológica da escola e uma visão republicana já estão inteiramente superadas. Eis a primeira dimensão da atualidade, que não é outra senão a atualidade da própria igualdade, em um momento em que a desigualdade se instala como desigualdade “apenas” intelectual. Para mim, o que é significativo é menos os usos particulares que se gostaria de conceder à escola – formar pessoas mais ativas, práticas etc. – do que essa função de simbolização global da ordem do mundo.

A segunda dimensão da atualidade reside em certo número de movimentos de emancipação que tentam, em escala global, reagir, reafirmar o poder dos que supostamente nada sabem. É claro que há aí algo de muito forte, que está acontecendo na América Latina em relação aos movimentos de educação popular, aos movimentos pela posse das terras por parte das populações dominadas – do que Porto Alegre tornou-se um símbolo, um lugar onde se realiza de forma mais exemplar do que em qualquer outro essa luta entre as lógicas dos “melhores da turma” e as lógicas da emancipação. Mas O mestre ignorante não é atual, no sentido em que traria meios de formação de movimentos de protesto, de movimentos afirmativos, de emancipação na América Latina. Sua atualidade é lembrar que a hora é sempre essa, que a hora da emancipação é agora, que sempre há a possibilidade de afirmar uma razão que não é a razão dominante, uma lógica de pensamento que não é a lógica da desigualdade. Por isso, não acredito que Jacotot vá oferecer aos movimentos sociais brasileiros, ou aos movimentos de educação na América Latina, as chaves do sucesso, mas vai lembrar que sempre se tem razão em querer se emancipar.

É claro que o pensamento da emancipação intelectual não pode ser a lei de funcionamento de uma instituição, oficial ou paralela. Ele jamais é um método institucional. É uma filosofia, uma axiomática da igualdade, que não ensina formas de bem conduzir a instituição, mas a separar as razões. Ser um emancipador é sempre possível, mas desde que não se confunda a função de emancipador com a função de professor. Um professor é alguém que desempenha uma função social. Ele pode, é claro, comunicar a emancipação, a capacidade, a opinião de igualdade, a prática da igualdade entre seus alunos; mas não há identificação possível entre essa transmissão, essa transferência de opinião, da capacidade igualitária, e a lógica da instituição. Não há instituição boa, sempre há conflito de razões. Uma das coisas importantes que Jacotot diz é que é preciso separar as razões, que um emancipador não é um professor, que um emancipador não é um cidadão. Pode-se ser, ao mesmo tempo, professor, cidadão e emancipador, mas não se pode sê-lo em uma lógica única.

E: – Uma última questão: ao ler o início do livro, a gente se convence e se deixa entusiasmar por essa perspectiva e essa vontade de emancipação intelectual, mas a última lição mostra bem a impossibilidade de ganhar discípulos, de fazer um método, de institucionalizar. Não haveria instituição possível? Que relação pode se fazer entre isso e a posição sobre democracia que você defende?

JR: – É o que eu sempre tentei dizer, que a democracia não é uma forma de governo, mas a própria prática da política. A democracia não é uma forma institucional, ela é, antes de tudo, a própria política, isso é, o fato de que ajam como governantes aqueles que não têm diploma de governo, nem competência para fazê-lo. De uma certa maneira, a democracia é o poder dos incompetentes, isso é, ela é a ruptura das lógicas que fundam um modo de governo sobre uma suposta competência: a democracia é, pois, a interrupção das lógicas da desigualdade. Assim sendo, pode-se dizer que há, de fato, uma analogia entre a emancipação intelectual e a prática política, entendida como prática de ruptura do funcionamento da desigualdade. A emancipação intelectual, como a política, é situação de exceção, em relação às lógicas sociais. Essa situação de exceção cria a analogia, mas não a ligação: há formas de afirmação política, de afirmação da capacidade de todos, que, em sua enunciação, em sua manifestação, constituem-se sob o modo da emancipação; aqueles que eram declarados incapazes provam que são capazes, aqueles que não têm voz provam que têm voz e reconfiguram o espaço da palavra sob um modo igualitário. Mas não há lei de transmissão entre a emancipação individual e as formas de emancipação coletiva, não há instituição. Só há, precisamente, do ponto de vista social, uma espécie de mediação: a lógica social dita “normal” é, efetivamente, uma lógica de desigualdade pela qual, aspirando-se à igualdade, criam-se instituições para transformar a desigualdade em igualdade – e que, de fato, transformam a igualdade em desigualdade.

No fundo, a lógica emancipadora é uma lógica da correspondência, mas essa correspondência não aceita mediação. Repito: o mestre emancipador, o professor de filosofia e o cidadão que desejam o bem da humanidade, ou da comunidade, são personagens separados que jamais se unem em uma mesma identidade. Essa posição é certamente oposta àquela que se chama ordinariamente de democracia – ou seja, um certo jogo de mediações entre instituições políticas e instituições sociais.

* Em resposta à solicitação dos organizadores do conjunto de textos, Patrice Vermeren teve a amabilidade de organizar, na sexta-feira, 24 de janeiro de 2003, um encontro-entrevista com Jacques Rancière, em torno de O mestre ignorante. Participaram, a convite de Vermeren, Laurence Cornu e Andréa Benvenuto. As inicias (E) e (JR) no início dos parágrafos indicam, respectivamente, as perguntas dos entrevistadores e as respostas de Jacques Rancière.

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