Por Thales Fonseca
A motivação de fundo deste ensaio surgiu com o anúncio de publicação do novo livro de Paulo Arantes, que versará sobre uma dita “ideologia francesa”. Logo da notícia, meu primeiro ímpeto foi de procurar os rastros da ansiada obra, antes mesmo de sua publicação. Encontrei algum[1]. Em todo caso, longe de mim querer tecer aqui comentários sobre o livro. Na verdade, ocorreu que a ideia em si de uma ideologia francesa, cuja manifestação teria se dado no mais “alto” nível da reflexão filosofante, hegemônica na segunda metade do século XX, me fez querer pensar numa possível expressão ultramarina sua – mas num nível mais “baixo”, por assim dizer, popular.
Poucos filmes brasileiros foram objeto de tanta “conversa fiada” quanto os aclamados, no Brasil e no estrangeiro, Tropa de Elite 1 e 2. A começar pelo fato de sua primeira versão ter sido precocemente pirateada e circulado por todo o Brasil antes mesmo de sair nos cinemas. Isso alimentou pelo menos três boatos. Primeiro, de que o vazamento teria sido planejado pelos próprios envolvidos em sua produção, como uma forma de dar visibilidade à obra. Segundo, quando o filme oficial foi finalmente lançado nos cinemas, surgiu o papo de que o final seria diferente da versão pirata, o que fatalmente deve ter levado muita gente a pagar para ver um filme que já tinha visto. Terceiro, a certeza indignada de que o segundo boato também era obra dos produtores que, afinal de contas, queriam lucrar com as bilheterias.
Esses boatos particulares, tal como concatenados – afinal, não haveria o segundo sem o primeiro, nem o terceiro sem o segundo –, são uma bela ilustração da lógica geral do boato, cuja melhor descrição encontrei num livro famoso de Erico Veríssimo:
Ora, o boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro, ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o ‘engraçadinho’ ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto – tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular –, começa a caminhar pelas próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.[2]
A definição como um todo é satisfatória pelo caráter descritivo, ainda que metafórico, que faz com que qualquer um que leia logo entenda do que se trata. Mas há um pequeno aspecto nela que me chamou atenção: a ideia de que a substância do boato, aquilo que lhe alimenta e dá sustentação, é a “fantasia popular”. Como psicanalista, logo pensei que, independente da intenção de Veríssimo com a escolha lexical, o termo trazia um conteúdo teórico-conceitual que estaria para além de um mero recurso estético.
Ora, o conceito de fantasia, tal como postulado por Sigmund Freud e posteriormente desenvolvido por Jacques Lacan, está ligado à matriz de subjetivação do que chamamos de realidade. Assim, a fantasia traduz a maneira fundamental pela qual o sujeito opera com o real carente de sentido, isto é, a forma como ele internaliza, simboliza e, portanto, dá sentido à realidade. Como eu disse, ela é basicamente a forma fundamental como lidamos com a realidade, essa espécie de enjeitadinho cujo genitor ignoramos. Como o meu objetivo é operar com o conceito, e não dar uma definição precisa, tomo a liberdade de dar um exemplo bobo de minha biografia que ajuda a entender: quando criança, eu tinha um cabideiro em meu quarto, daqueles em que se pendura coisas. Não raras vezes eu tinha experiência de acordar durante a noite e, ainda sonolento, quase morrer de susto achando ter um invasor em meu quarto. Até perceber que se tratava de meu cabideiro com um boné pendurado na parte mais alta, eu tinha alguns minutos um tanto angustiantes. Grosso modo, é assim que a fantasia funciona: ela constrói a realidade antes mesmo de termos uma experiência sensível consistente dela. Na verdade, quanto menos a gente puder mapear a realidade com clareza, como num quarto escuro ou em uma sociedade recheada de contradições, mais fácil é perceber a fantasia operando.
Aliás, uma das principais contribuições da psicanálise foi justamente demonstrar a dificuldade em se delimitar de maneira precisa a fronteira entre o sonho e a realidade – o que explica, por exemplo, o interesse despertado nos surrealistas. Não é à toa, portanto, que o filósofo Slavoj Zizek[3] irá associar o mecanismo psíquico da fantasia com o mecanismo político da ideologia enquanto aquilo que regula a relação entre visível e invisível, entre imaginável e inimaginável. Em suma, como aquilo que estrutura a própria realidade social e seus limites. O leite da fantasia popular que alimenta o boato não deixa de ser, nesse sentido, o leite da ideologia: pasteurizado, de caixinha, com padrão de produção e consumo – quiçá, se a ideia não for muito obsoleta, proveniente do que os frankfurtianos um dia chamaram de indústria cultural.
Voltando para o Tropa de Elite, os boatos não se esgotaram, mesmo depois de mais de dez anos desde o lançamento do primeiro filme (“Missão dada é missão cumprida”) e quase dez anos do segundo (“O inimigo agora é outro”). Foi assim que em 2018 – ano obscuro e suscetível a fantasias – surgiu a notícia falsa de um terceiro filme. Se completaria enfim uma “trilogia”, no bom e velho estilo de franquia hollywoodiana, talvez para combinar com a guinada na carreira do diretor de Robocop. O boato desta vez tomou uma proporção tão desvairada que chegou a ganhar um trailer falso[4] que mais parecia uma versão amadora e escrachada do anti-antipetismo de Democracia em Vertigem, além de supostamente contar com presença de Anitta no elenco, lançando carreira como atriz[5].
Se minha pequena digressão teórica em torno do conceito de fantasia puder ser levada a sério, eu diria que tal boato não foi tão despretensioso assim, se tratando, quem sabe, de uma tentativa de dar sentido àquele ano confuso. É o que alguns colunistas parecem ter percebido organicamente, sugerindo, de maneira jocosa, possíveis subtítulos para o famigerado Tropa de Elite 3, como “O inimigo agora é Bolso”[6] e “O capitão assume”[7]. Voltou ao centro do debate a retórica de esquerda ressentida à procura de um culpado em que, não raras vezes, sobrou para José Padilha.
“Bandido bom é bandido morto!” ou “Homem com farda preta entra na favela pra matar, nunca pra morrer.” Ainda lembro como, há dez anos, o Brasil discutia sobre essas frases. As pessoas se perguntavam: “O capitão é um fascista?” É que o capitão Nascimento, o duvidoso personagem principal do filme Tropa de Elite, matava e torturava, aparentemente sem piedade. É permitido mostrar algo assim no cinema? Isso não é apologia à barbárie? Na época, o diretor José Padilha ficou surpreso com o fato de o capitão ter sido alçado à condição de herói pelo público. Na realidade, a intenção era mostrar como era repugnante o culto da polícia ao assassinato e à tortura. Queria-se criar um anti-herói, e não um herói. A sutil ironia do cineasta intelectual saiu pela culatra naqueles tempos. Mas foi porque os espectadores não a entenderam? Ou foram os realizadores que, talvez, não entenderam o seu público?[8]
É claro que a retórica, apesar de deixar intocadas as aporias da esquerda hegemônica, tem lá sua razão de ser. Sobretudo quando a mais famosa obra cinematográfica de Padilha é tomada em perspectiva, em relação não só ao crescimento da base popular (ou pelo menos eleitoral) da extrema-direita, como da polêmica série O mecanismo, por ele também dirigida. Em todo caso, como o leitor já deve ter percebido, não é o argumento pretendo endossar aqui. Ainda que eu também não pretenda fazer as vezes da esquerda sóbria, que lembra que Tropa na verdade é um estudo sobre as milícias e suas relações promíscuas com o mundo crime etc., como o fez Wagner Moura[9].
Na verdade, o que me interessa não é determinar a parcela de culpa da referida produção cultural no que se refere ao abismo conjuntural no qual hoje nos encontramos, mas antes demonstrar que ela ocupou um papel bastante preciso: o de mapeamento de uma topografia social profundamente fraturada. Que isso tenha se dado na forma do boato ou, para ser mais exato, da teoria da conspiração, não significa que não possamos extrair daí uma via para a análise crítica de nossa realidade social. E para tanto, como o leitor já deve ter pescado com esse papo de “mapeamento” e “teoria da conspiração”, estou em boa medida me inspirando em Fredric Jameson[10].
Mas, antes de mais nada, é importante destacar que a lógica da conspiração não está presente somente nos boatos em torno da produção do filme – estou me referindo a coisas como a teoria de que o vazamento para o mercado pirata teria sido proposital, o que poderia muito facilmente ser desenvolvido, por exemplo, com a ideia de que o processo fora facilitado pela Lei Rouanet, suspeita aliás corroborada pelo fato de o próprio ministro de cultura da época ter sido flagrado assistindo a versão pirata etc. etc. etc.[11] Digo isso porque a lógica conspiracionista está presente, também e principalmente, em seu conteúdo.
Sobre isso, é preciso tomar em consideração um dos bordões mais significativos, mas talvez não tão focalizado, dito a torto e a direito pelo personagem principal do filme, Capitão Nascimento: “o sistema é foda”. Eu gostaria de defender que há, na fala do anti-herói, uma fina percepção de que as relações de dominação, em nosso tempo, se dão por meio de uma estrutura abstrata de difícil apreensão, mas da qual os efeitos se encarnam de maneira concreta e material na vida dos dominados. O que ele chega a afirmar de maneira quase analítica em uma cena: “o sistema é um mecanismo impessoal, uma articulação de interesses escrotos”.
A gênese do mundo do qual Tropa de Elite é uma tentativa de interpretação um tanto quanto mistificada está ligada a uma série de mudanças interiores ao desenvolvimento capitalista – satisfatoriamente identificadas sob a rubrica da ascensão do neoliberalismo – cuja característica fundamental, eu diria, seguindo Leda Paulani[12], é o processo crescente de autovalorização do capital que se autonomizou da esfera de valorização produtiva, gerando o predomínio da riqueza financeira que passa a não mais depender da riqueza real, mas a reger seu processo de produção e influenciar de maneira irrecuperável a relação entre capital e trabalho. Ora, em um cenário como esse, a dificuldade em se reconhecer um agente social específico como o verdadeiro culpado pelas mazelas de nossa sociedade torna-se uma espécie de consequência lógica. Afinal, todo esse “economiquês”, do qual eu mesmo confesso não dominar com expertise, acaba por se traduzir no fato de a dominação social capitalista já não mais se ver limitada ao âmbito restrito das chamadas relações de produção.
Daí assistirmos, por um lado, a uma situação em que o capital, sob o signo da globalização, já não encontra mais limites geográficos para seu movimento de expansão, enquanto que, por outro, cresce um processo brutal de proletarização em condições materiais cada vez mais delicadas, na forma da precarização, do desemprego e da informalidade. Esse é o verdadeiro paradoxo de nossa época, na qual a dominação capitalista já não se dá em um lócus determinado, se efetivando sem a predominância da burguesia proprietária e seus métodos clássicos de exploração[13]. Foi isso que nosso anti-herói e intérprete involuntário do capitalismo tardio percebeu: que hoje em dia parece impossível apontar o dedo para uma figura concreta que ocuparia o lugar de agente explorador, pois o problema está no “sistema” que, como ele mesmo diz, “não tem planejamento central e nem diretoria”. Os dois filmes traçam uma espécie de movimento rebaixado de “conscientização” (o termo é um tanto fora de moda, mas alude ao que quero dizer) de Capitão Nascimento, que aos poucos percebe, precariamente, que não adianta combater inimigos concretos específicos, como os bandidos, os traficantes ou a milícia. Pois o inimigo é abstrato como um sistema, e agora é Outro – com letra maiúscula, tal como a estrutura significante do inconsciente para Lacan. Melhor seria dizer que sempre foi.
Ora, é impossível negar a semelhança disso com a definição dada por Jameson à teoria da conspiração, como uma forma de pensar a sociedade desde o ponto de vista de sua causa sistêmica profunda e não visual. Isto é, uma forma ideológica de captar os mecanismo e dinâmicas invisíveis do capital. Pois parece não restar dúvidas de que é exatamente isso o que está em jogo no drama pessoal do Capitão Nascimento: a invenção de uma nova forma de representação daquilo que é impossível de representar. Ou, em outros termos, a tentativa inconsciente de pensar um sistema tão vasto que impossível de abarcar com categorias da percepção das quais ele já conhecia e com as quais ele se orientava normalmente.[14]
Neste ponto, é interessante perceber que a postura que nomeia o inimigo de “sistema” não se mostra tão distante de certa postura teórica dotada de bastante prestígio nas universidades brasileiras. Estou me referindo ao que Jameson[15] denominou ironicamente, certa vez, de abordagens de um mundo “pós-marxista nietzscheano da micropolítica”. Ainda que a leitura jamesoniana – assim como a aranteana com que dei o pontapé inicial deste ensaio – recorram a uma inevitável generalização um tanto reducionista (calculada, eu diria), o recado dado é interessante. Grosso modo, a ideia geral é de que tratar-se-iam de leituras (providas de certo poder analítico, deve-se dizer) que identificam o mesmo cenário no qual as relações capitalistas de dominação, já não mais limitadas ao contexto produtivo, aparentam se espraiar para todas as dimensões da vida, enquanto o corpo social fraturado se apresenta como uma verdadeira desagregação. O que explicaria, para ficar em poucos exemplos, que uma figura como Michel Foucault[16] tenha passado a enxergar poder nos detalhes mais microfísicos do cotidiano, ou que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe[17] tenham começado a cada vez mais desconfiar da subjetivação política de classe, fazendo coro aos chamados “novos movimentos políticos”. Ambas as leituras tiveram a mesma percepção (dotadas de autoridade filosófica, é verdade) que teve Capitão Nascimento sobre a existência de um sistema sem diretoria central, fruto da articulação de interesses escrotos, cuja incorporação é sempre um tanto alusiva, em dispositivos impessoais como o “panóptico” com sua rede intrincada de relações horizontalizadas de poder, ou “os de cima” enquanto resultado de uma complexa correlação de forças hegemônicas.
Porém, justamente para evitar o velho esquema marxista da base/superestrutura, ou da determinação “em última instância” da política pelas relações de produção, tais leituras acabam descolando a dinâmica do capital da estrutura de dominação da formação social. Resultado: sem uma percepção clara de que vivemos em um mundo capitalista cuja matriz de exploração a tudo engole, torna-se impossível vislumbrar uma alternativa. Remetendo mais uma vez a Jameson:
[…] falando sério: quem acredita que a busca por lucro e a lógica de acumulação do capital não são as leis fundamentais deste mundo, quem acredita que isso não estabelece barreiras e limites absolutos à mudança e transformação social em si, está vivendo em um universo alternativo; ou, para ser mais polido, em tal universo, essa pessoa – assumindo que ele ou ela é progressista – está condenada à social-democracia com seu histórico, hoje abundantemente documentado, de fracassos e capitulações. Porque se o capital não existe, então claramente o socialismo também não existe.[18]
Do mesmo modo, talvez seja o caso de dizer que justamente por ser uma forma mistificada de “ver” as coisas que a interpretação involuntária do capitalismo, contida nos filmes, tenha sido tão bem assimilada pela retórica bolsonarista. Daí em diante, sua teoria da conspiração passou a caminhar com as próprias pernas, a falar com a própria voz e a pensar com a própria cabeça desvairada, transformando-se numa gigante, maior que os mais altos edifícios brasileiros, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente a gerou. É que é difícil manter a percepção de que somos abstratamente espoliados, sem que haja uma reflexão de fundo capaz de apreender tal espoliação em termos da centralidade do capital portador de juros, da transformação do lucro em renda, da importância do crédito no processo de acumulação, do surgimento do dinheiro inconversível, do capital fictício, do trabalho abstrato and so on, and so on… Em suma, sem o que Marx chamou de crítica da economia política. A tentação de querer dar nome aos bois é irresistível. No Brasil isso tomou uma proporção peculiarmente bizarra em que a estrutura abstrata do capital – a verdadeira causa de nossa miséria – foi encarnada, na visão popular, por um suposto comunismo-bolivariano petista e corrupto. Curiosa situação em que a sociedade civil acabou se engajando num discurso ultra-neoliberal para resolver a desgraça social criada pelo próprio neoliberalismo – em partes, devo dizer, com o consentimento nem-de-longe-comunista do Partido dos Trabalhadores.
Processo de eleição de um bode-expiatório que, aliás, não chega a ser uma novidade histórica. Trata-se, acredito eu, de algo semelhante ao que Moishe Postone[19] identificou ter ocorrido na Alemanha nazista, em que a perda de controle concreta dos alemães por suas próprias vidas e todo o mal-estar daí decorrente foi atribuído aos judeus, que supostamente seriam os verdadeiros agentes dominadores e responsáveis pelo descontentamento geral. Uma tentativa quase desesperada de imputar agência a uma dominação abstrata. No nosso caso, sobrou, como é de costume por estas bandas, para o espectro do comunismo – e, é claro, para os seus derivados, que segundo o ponto de vista embaçado das camadas médias fascistizadas envolve um leque abrangente: negros, mulheres, comunidade LGBTQ+, indígenas, quilombolas, e por aí vai.
Mas antes de vociferar contra os filmes e nos engajar numa teoria da conspiração de vetor invertido, na qual Jair Bolsonaro torna-se o fruto de um grande conluio entre José Padilha, a globo, a lava-jato, o tucanato, os neopentecostais e todo o lado negro da força que teria interrompido uma suposta revolução petista em curso (o sistema é foda, talvez disséssemos), vale a pena tentar entender o que está em jogo. É evidente que não estou negando a responsabilidade dessas forças oligárquicas no que se refere ao nosso buraco conjuntural sem fundo. É óbvio que Bolsonaro sabe negociar com a fisiologia do legislativo, ainda que de maneira um tanto antipática. Ele tem o respaldo de boa parte da elite brasileira. Os militares e o mercado, até segunda ordem, estão com ele. E apesar de toda tensão, sobretudo nestes tempos pandêmicos, a mídia e o judiciário o toleram bem até demais. “Tá ok”, todo mundo sabe disso.
Mas todo mundo sabe também que essa “correlação de forças” não é nenhuma novidade em nossa república das bananas. Pelo contrário, é o beabá da democracia liberal. A verdadeira novidade é o fato de Bolsonaro não estar completamente subjugado a tal jogo de forças oligárquicas. Bolsonaro não é um Temer. Ele possui uma espécie de fiador que lhe dá certa liberdade para, de tempos em tempos, tirar uma casquinha dessas “forças” e fazer o que dá na telha.
E esse é o ponto que me espanta: a gente querendo ou não, de maneira arrevesada e canalha (é claro!), o sujeito sabe “dialogar” com sua base popular. Trocando em miúdos: tem algo de assustadoramente novo no bolsonarismo, e diz respeito ao fato de que, apesar de Bolsonaro ser mais uma das facetas de uma oligarquia que nunca largou o osso do poder no Brasil desde que os colonizadores europeus pisaram em Terra de Vera Cruz, ele é definitivamente capaz de sustentar uma postura extrema em consonância com parte considerável do que a gente pode chamar de “povo”. Em resumo: existe uma sustentação popular relativamente consistente para as suas loucuras. O que só mostra como é estranho que ainda se justifique a moderação dos governos petistas – que chegaram a ter muito mais apelo popular que Bolsonaro, diga-se de passagem – recorrendo ao velho papo furado da governabilidade. Quem diria: Bolsonaro dá lições de democracia! O que diz mais da nossa “democracia” do que dos princípios democráticos (claramente inexistentes) do presidente.
Nesse sentido, acredito que parte do sucesso de Bolsonaro na hegemonização da semântica de Tropa de Elite está ligado ao fato de o Capitão (e agora não estou mais falando de Nascimento) oferecer um “mapa” de fácil orientação em nossa realidade social caótica. Foi Jameson quem disse, certa vez, que a teoria da conspiração é o mapeamento cognitivo do pobre[20]. Talvez isso falte a esquerda hoje, que claramente vem encontrando dificuldades em encontrar uma plataforma política comum capaz de acolher em seu interior a infinita multiplicidade das lutas contemporâneas, mas sobretudo capaz de vislumbrar uma alternativa socialista para o que vivemos. Esquerda (obviamente que estou falando de uma fração dela) que se ilude com a ideia de que a dispersão produzida e aproveitada pelo capitalismo tardio é um caminho colorido em direção a um futuro plural, e não os efeitos da bancarrota do mundo. Que essa leitura política, não raras vezes encontrada na militância, possua um correlato intelectual no campo das ideias, não deve ser mera coincidência.
Neste ponto, parece-me perfeitamente possível ter consciência das mudanças interiores ao desenvolvimento capitalista que desembocaram no declínio da condição classista – haja vista que o domínio social, em nossa economia financeirizada, já não se encerra à esfera produtiva – sem necessariamente conceder quando o assunto é a necessária destruição do capitalismo. Aqui, a definição dada por Zizek[21] para luta de classes como o limite imperscrutável que impede que o “inimigo” ganhe a consistência de um grande Outro absoluto pode nos ser útil por possuir a virtude de não cair na redução nostálgica do proletariado à classe operária. Inimigo ao qual, para fins do “mapeamento cognitivo”[22] de nossa sociedade, poderíamos denominar de Capital. Afinal, retomando o comentário psicanalítico do início deste ensaio, o que dá a aparência de que a realidade capitalista seja consistente é uma fantasia social por excelência. Em termos teóricos, a sutura do Outro é necessariamente ideológica.
Assim sendo, não vejo outra saída para combater o capitalismo e, portanto, tendo a concordar com o líder dos Entregadores Anifascistas, Paulo Lima (Gallo), quando diz:
[…] Bagulho é luta de classes mesmo. […] Nós não começamos a sofrer ontem e não vamos parar de sofrer amanhã. A luta é para a vida toda. Não adianta achar que a coisa vai se resolver amanhã com “Vamos tirar o Bolsonaro e aí tudo está solucionado!”. Não está solucionado não, irmão! Tudo bem que tirar esse cara doido do governo ajuda bastante, mas a gente tem o capitalismo, cara. Bolsonaro é um fruto do galho. A raiz é egoísta, o tronco é capitalista, o galho é fascismo, racismo, machismo. O Bolsonaro é um dos frutos do galho do fascismo. Tirar o fruto vai resolver alguma coisa? Vai nascer outro fruto naquele lugar. A solução mesmo é machadada no tronco.[23]
Pois o simples fato de a luta dos entregadores ser hoje uma espécie de arquétipo do antagonismo social contemporâneo – divido entre trabalhadores informais precarizados e um inimigo invisível com seu algoritmo secreto que organiza a espoliação geral – já deve ser, no mínimo, um bom indicativo de que temos o que aprender com eles e com suas formas de organização. Não é este o grande desafio de nossa época: encontrar os meios para que, da proletarização brutal em que nos meteram, nos tornemos os coveiros do capitalismo? Afinal, se levarmos a assertiva de Gallo[24] de que qualquer um que entrega a sua força de trabalho é também um entregador às últimas consequências, perceberemos, enfim, que o nosso inimigo, na verdade, é o mesmo.
[1] Arantes, P. (1990). Tentativa de identificação da ideologia francesa: uma introdução. Novos Estudos CEBRAP, 28, 74-98.
[2] Veríssimo, E. (1971). Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro. p. 116.
[3] Para uma leitura rápida da teoria zizekiana da ideologia em sua dívida com a psicanálise, sugiro os textos O espectro da ideologia e Como Marx inventou o sintoma?, ambos presentes em: Zizek, S. (Org.). (1996). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto. Para uma leitura mais aprofundada: Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[4] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=xWvr_9oZ-fA.
[5] Ver: https://observatoriodocinema.uol.com.br/filmes/2018/02/tropa-de-elite-3-com-anitta-nao-vai-acontecer-diz-produtora.
[6] Ver: https://piaui.folha.uol.com.br/herald/2019/01/22/padilha-anuncia-lancamento-de-tropa-de-elite-o-inimigo-agora-e-bolso/.
[7] Ver: https://www.dw.com/pt-br/tropa-de-elite-3-o-capit%C3%A3o-assume/a-46002573.
[8] Idem.
[9] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=W42XgeSsOXI.
[10] Jameson, F. (1995). The geopolitical aesthetic: cinema and space in the World System. London: BFL Publishing.
[11] Por favor, leitor, não saia por aí reproduzindo esta historieta, que foi por mim toscamente inventada com o mero intuito de explicitar porque considero que já existia lógica da conspiração nos boatos em torno do filme.
[12] Paulani, L. (2011). A autonomização das formas verdadeiramente sociais na teoria de Marx: comentários sobre o dinheiro no capitalismo contemporâneo. Revista de EconomiA, 12(1), 49-70.
[13] Sobre isso, vale a pena conferir: Postone, M. (2014). Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo.; e Zizek, S. (2012). A revolta da burguesia assalariada. Blog da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/01/27/a-revolta-da-burguesia-assalariada/.
[14] Estou reproduzindo praticamente ipsis litteris algumas das definições de Jameson (1995). Op. cit.
[15] Jameson, F. (1988). Cognitive mapping. In: C. Nelson & L. Grossberg (Eds.), Marxism and the interpretation of culture (pp. 347-360). London: Macmillan Education.
[16] Foucault, M. (1983). Vigiar e punir: nascimento da prisão (2ª ed.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1975).
[17] Laclau, E. & Mouffe, C. (1987). Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI.
[18] Jameson, F. (1988). Op. cit. p. 354-355, tradução minha.
[19] Postone chega a comentar disso em uma entrevista publicada aqui no Lavra: Korsika, A. (2017). Entrevista com Moishe Postone: “Crítica e dogmatismo”. LavraPalavra. Disponível em: https://18.118.106.12/2017/08/07/entrevista-com-moishe-postone-critica-e-dogmatismo/.
[20] Jameson (1988). Op. cit.
[21] Zizek (1992; 1996). Op. cit.
[22] Jameson (1988). Op. cit.
[23] Ver: https://digilabour.com.br/2020/07/02/e-luta-de-classes-mesmo-sem-conversinha-entrevista-com-galo-dos-entregadores-antifascistas/.
[24] Idem.
* Psicanalista e doutorando em Psicologia pela UFSJ. E-mail: [email protected].
1 comentário em “O inimigo sempre foi Outro”
Perfeita análise, pois vivemos dias sombrios, onde a verdade é loucura, e a mentira torna-se um Deus, conforme o Filósofo Guy Debord. Passo a seguidor de sua plataforma, pois terei espaço de leitura realista, frente a insanidade cristã beligerante que perpetua na pseudo-humanidade vigente.