Por Victor Oliveira*
“Também faz parte do veganismo a luta pela soberania alimentar. Em um país que vem sofrendo com a insegurança alimentar, onde mais de 80 milhões de brasileiros não sabem se terão o que comer no dia seguinte, parece ser de mal gosto que lutemos para que a população coma alimentos exclusivamente de origem vegetal. E de fato o é. Por isso deve-se garantir as condições concretas para que todos tenham de fato comida no prato, para depois avançarmos sobre o que comer.”
O dia 1° de novembro é marcado como o Dia Mundial Vegano, data em que foi fundada a Vegan Society em 1944 no Reino Unido, organização que cunhou o termo vegan a partir da palavra veg(etari)an justamente para se diferenciar destes. Desde então, o veganismo se espalhou pelo mundo e vem crescendo vertiginosamente nos últimos anos, tendo como adeptos desde comunistas revolucionários como a professora, pesquisadora e militante Angela Davis até liberais como o educador e escritor belga Tobias Leenaert; que procuram uma alternativa de oposição à contradição entre capitalismo e a tragédia ecológica causada por este, perpassando pelo bem-estar animal. Dito isto, o que é, precisamente, o veganismo e o que defende?
Primeiramente, podemos dizer o que não é veganismo. Veganismo não é dieta, ou melhor, não é somente isso. De acordo com a Vegan Society já citada, o veganismo é “a busca pelo fim do uso de animais pelo homem para comida, mercadoria, caça, vivissecção, e todos os outros que envolvem a exploração da vida animal pelo homem” (tradução nossa) [1]. Veganismo também não é uma identidade, algo que meramente caracteriza alguém por seus hábitos, mas pressupõe uma posição política/filosófica e, portanto, de mudança da ordem vigente. Por óbvio que como se dará essa mudança é muito variada e está em constante disputa. Há, como em outras lutas anti-opressão, a cooptação pela classe hegemônica (a burguesia) que atuará pelo dito Veganismo Estratégico, que crê que com o crescimento do consumo de mercadorias veganas a oferta dessas também aumentaria, e aos poucos as empresas seriam convencidas por meio do lucro a adotarem práticas que não explorem os animais, mesmo que muito estranhamente essa empresa possa ser a JBS, um dos maiores abatedouros do mundo [2].
Há também uma parcela do veganismo muito associada com a ação direta, sendo alguns inclusive classificados como grupos terroristas, denominados Ecoterroristas ou Extremistas dos Direitos Animais. É o caso da Animal Liberation Front (Front de Libertação Animal – ALF) e a Earth Liberation Front (Front de Libertação da Terra – ELF), além da People for Ethical Treatment of Animals (Povo pelo Tratamento Ético aos Animais – PETA), organizações que apoiam e/ou realizam incêndios em abatedouros, destroem a propriedade de madeireiros que exploram regiões de biomas protegidos e resgatam animais que estavam sendo usados para testes de produtos em situações degradantes, sendo considerados pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos como a preocupação número 1 sobre terrorismo doméstico, acima de grupos como “supremacistas brancos, milícias e grupos anti-aborto” (tradução nossa) [3], mesmo que os primeiros nunca tenham assassinado alguém, ao contrário dos últimos citados. No Brasil, há um caso emblemático que demonstra ganhos concretos a partir da ação direta. No ano de 2013, um grupo protestava em frente ao Instituto Royal na cidade de São Roque, no estado de São Paulo, instituição que mantinha cães da raça beagle, coelhos e outros animais para testes dermatológicos para produtos cosméticos. Após tensionamentos, o grupo invadiu o laboratório e libertou (ou segundo a imprensa à época, furtou) os animais. Com esse ocorrido, o estado de São Paulo criou a lei 15.316/2014, que proíbe a utilização de animais para desenvolvimento, experimento e teste de produtos cosméticos e de higiene pessoal, perfumes e seus componentes [4].
Veganismo também não é um fim em si mesmo, mas deve perpassar por uma série de relações sociais e econômicas presentes na nossa sociedade e como desejamos alterá-las. Faz parte do veganismo a luta pela terra e o fim do latifúndio, sendo que a indústria da pecuária ocupa cerca de 75% das terras aráveis [5] do planeta tanto para pasto quanto para o plantio de grãos e cereais que servirão de ração para esses animais (mais de 70% de toda a soja plantada vira ração) [6]; sem citar ainda o caráter imperialista e do papel em que o Brasil desempenha na divisão internacional do trabalho, sendo o quintal de cultivo em larga escala desses produtos do agronegócio (70% da produção de soja brasileira é exportada [7]) que destroem biomas para a abertura de novos locais para plantio/pasto como podemos ver historicamente com a Mata Atlântica, a Amazônia (sendo que 91% da área devastada se deve a agropecuária, tendo 62,8% desta área ocupada por pastagem) [8], o Cerrado e, mais recentemente, o Pantanal; além de serem regados com a mais variada quantidade de agrotóxicos possíveis. Só durante o governo liberal-fascista de Jair Bolsonaro já foram aprovados mais de 1000 agrotóxicos novos, sendo que ⅓ desses são proibidos na União Europeia devido aos riscos à saúde e ao meio ambiente [9]. O veganismo se coloca a favor e/ou ajuda a construir alternativas a esse cenário catastrófico, se mobilizando em prol da Agroecologia, que preza “o estudo e tratamento de ecossistemas tanto produtivos quanto preservadores dos recursos naturais, e que sejam culturalmente sensíveis, socialmente justos e economicamente viáveis, proporcionando assim, um agroecossistema sustentável” [10], como observado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Rio Grande do Sul (MST-RS) que é o maior produtor de arroz orgânico e agroecológico da América Latina, com uma colheita estimada de 12,4 mil toneladas para a safra 2020/2021 [11]. Outra alternativa defendida é a Permacultura, que compreende “a preocupação e cuidado com os recursos naturais, a busca por uma vida social em harmonia com a natureza e criação de sistemas de compartilhamento do uso de recursos naturais. ” [12]. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto no Distrito Federal (MTST-DF) se valeu da bioconstrução (compreendida na permacultura) para a construção de casas de baixo custo e baixo impacto ambiental para mais de 100 famílias na Ocupação do Sol Nascente [13].
Também faz parte do veganismo a luta pela soberania alimentar. Em um país que vem sofrendo com a insegurança alimentar, onde mais de 80 milhões de brasileiros não sabem se terão o que comer no dia seguinte [14], parece ser de mal gosto que lutemos para que a população coma alimentos exclusivamente de origem vegetal. E de fato o é. Por isso deve-se garantir as condições concretas para que todos tenham de fato comida no prato, para depois avançarmos sobre o que comer. Mas também não podemos cair nesse artifício mecânico, desconsiderando o método materialista histórico-dialético que é inerente aos comunistas. O Brasil é o 4° maior produtor de grãos do mundo (arroz, soja e milho por exemplo), exportando mais de 1 bilhão de toneladas, e tem o maior rebanho bovino do mundo (existe mais gado do que gente no Brasil, trocadilho não intencional), além de ser o país que mais exporta carne de boi do mundo, um total de 2,2 milhões de toneladas [15]. As forças produtivas e as condições concretas para a alimentação da população brasileira já existem, porém a efetivação dessa vai de encontro com os interesses da burguesia regente do agronegócio, que prefere vender tais mercadorias para o mercado externo, colocando os preços do mercado interno em disparada e aumentando a insegurança alimentar da classe trabalhadora. Mesmo com esses enormes números e as dimensões continentais do Brasil, a face do imperialismo se mostra em outro detalhe: dentre os países que mais lucram com o agronegócio o Brasil está na 4° colocação, lucrando US$ 88 bilhões; enquanto os Países Baixos, 205 vezes menor que nosso país em área de extensão, ocupa a 2° colocação, lucrando mais de U$ 110 bilhões. Ao analisar a balança comercial dos países, o Brasil importa dos Países Baixos produtos petroquímicos, plásticos e maquinário, enquanto exporta soja, minério de ferro e carne, com superávit para o Brasil de US$ 10 bilhões. Ou seja, por mais desenvolvida que sejam as forças produtivas do país europeu, o “cultivo sujo” da soja e da carne fica a cargo dos países periféricos [16].
Sendo a história da humanidade a história da luta de classes, a relação dos animais humanos e não-humanos também está condicionada às disputas de poderes políticos e projetos econômicos entre as classes dominantes e as classes dominadas. Sob o domínio do capitalismo, todos os animais ficaram passíveis de se tornarem mercadorias: os animais humanos por meio da venda da sua força de trabalho, os animais não-humanos pela sua própria vida. Durante a dominação da burguesia que só almeja o lucro, houve o nascimento da indústria em larga escala da carne, laticínios e outros derivados de animais, perpetrando de maneira sistemática o abuso, exploração e morte dos seres. Além disso, promove a alienação tanto do trabalho (50% dos trabalhadores de frigoríficos podem desenvolver depressão e mais de 80% ansiedade [17]) quanto da mercadoria, pois come-se “maminha”, “tulipa”, etc, ocultando-se o animal que origina o produto. Uma forma historicamente utilizada para justificar a subjugação dos animais é a do especismo, que configura a superioridade de uma espécie sobre a outra, seja por motivos religiosos (Deus fez os animais para nosso consumo) ou filosóficos, por não serem capazes de se organizar socialmente e serem agentes de sua mudança. Citando a camarada Maila Costa “se os animais, por não serem humanos, não fazem parte da nossa classe, também não fazem parte da classe dominante, e possuem muito mais em comum conosco do que com eles, seja em relação à exploração, à privação de liberdade ou à comoditização. A moral comunista, como desenvolvimento da moral proletária vislumbrada por Engels, só poderá ser construída com base na rejeição a todas as formas de opressão, portanto, consideradas as relações de produção presentes, devemos rejeitar a exploração animal, incorporando a luta por sua libertação à luta por emancipação humana, uma vez que não há justificativa, que não no moralismo burguês, para a aplicação industrial do sofrimento” [18].
Por fim, acreditamos que já está provada a capacidade que o veganismo tem de inflamar e influenciar corações e mentes para uma perspectiva de ruptura do sistema vigente. Porém também está passível de disputas com o poder da burguesia e seu liberalismo, pautando um veganismo de consumo, e também de outras forças políticas do nosso campo, que apesar de mobilizarem os indivíduos engajados para ações diretas que podem gerar algum ganho, não serão suficientes para destruir o sistema que estrutura a exploração dos animais: o capitalismo. É tarefa nossa, dos comunistas, de se apropriar e ajudar a construir o movimento vegano, sendo nós a vanguarda organizada da classe trabalhadora, construindo o horizonte revolucionário que irá destronar a burguesia de todo seu poder e a estrutura que possibilita a exploração dos animais humanos e não-humanos, ou veremos essa força mobilizadora a reboque de outros projetos infrutíferos. É tarefa dos comunistas construir o Veganismo Popular! Que lutemos pela emancipação de todos os seres do planeta!
*Militante da União da Juventude Comunista no Rio Grande do Sul. Vegano.
Materiais de apoio:
- Textos da camarada Maila Costa, militante do Partido Comunista Brasileiro em Caxias do Sul: O Marxismo e a Questão animal.
- Chamando a contradição pelo nome. Entrevista cedida a Christian Stache.
- – Os comunistas e os animais.
- Live do Partido Comunista Brasileiro em Pelotas. “Veganismo e Agroecologia: em defesa da vida do povo trabalhador”.
- Sabrina Fernandes do canal do YouTube Tese Onze. “Veganismo anticapitalista”.
- Dimitra Vulcana do canal do Youtube Doutora Drag. “Militantes radicais, veganismo e materialismo histórico dialético”.
- Documentário “Dieta dos Gladiadores” narrado pelo atleta vegano de MMA James Wilks que discute nutrição vegana e atletas de alta performance.
- Documentário “Vegano Periférico” dos irmãos Leonardo e Eduardo, fundadores da página @veganoperiferico, discutindo veganismo para a classe proletária.
- Angela Davis sobre veganismo.
Referências
[1] “Definição de Veganismo” The Vegan Society. Acesso em 02 nov. 2021. Disponível em <https://www.vegansociety.com/go-vegan/definition-veganism>
[2] “Os lançamentos de produtos “plant-based” por corporações que exploram animais representam um progresso para a causa vegana?” Veganagente. Acesso em 02 nov. 2021. Disponível em <https://veganagente.com.br/produtos-plant-based-progresso-vegano/>
[3] “O Medo Verde – Como um movimento que nunca matou ninguém se tornou a ameaça terrorista doméstica número 1 do FBI” The Intercept. Acesso em 02 nov. 2021. Disponível em <https://theintercept.com/2019/03/23/ecoterrorism-fbi-animal-rights/>
[4] “Depois de um ano do caso Instituto Royal, o que mudou? ” Ciclo Vivo. Acesso em 02 nov. 2021. Disponível em <https://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/depois-de-um-ano-do-caso-instituto-royal-o-que-mudou/>
[5] “Maior parte dos grãos vira ração, e não alimento humano” Época Negócios. Acesso em 02 nov. 2021. Disponível em <https://epocanegocios.globo.com/colunas/noticia/2018/04/maior-parte-dos-graos-vira-racao-e-nao-alimento-humano.html>
[6] “Como a produção de soja é financiada por quem come carne” Vegazeta. Acesso em 02 nov. 2021. Disponível em <https://vegazeta.com.br/como-a-producao-de-soja-e-financiada-por-quem-come-carne/>
[7] Associação Brasileira dos Produtores de Soja. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://aprosojabrasil.com.br/a-soja/economia/>
[8] “Muito além da exploração animal: criação de gado promove consumo de recursos naturais e danos ambientais em escala estratosférica” eCycle. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://www.ecycle.com.br/muito-alem-da-exploracao-animal-criacao-gado-promove-gastos-recursos-naturais-danos-ambientais-em-escala-estratosferica-emissoes-gases-uso-agua-terra-alimento-desmatamento-pastagem-residuos-contaminac/>
[9] “Governo Bolsonaro tem recorde de mortes e de agrotóxicos” Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://www.abrasco.org.br/site/noticias/opiniao/governo-bolsonaro-tem-recorde-de-mortes-e-de-agrotoxicos-artigo-de-fernando-carneiro-e-juliana-acosta/58314/>
[10] “Agroecologia – Conceitos” Coordenação de Desenvolvimento Rural Sustentável do Estado de São Paulo. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://www.cdrs.sp.gov.br/portal/produtos-e-servicos/publicacoes/acervo-tecnico/agroecologia-conceitos>
[11] “Maior produtor de arroz orgânico da América Latina inicia colheita” Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://mst.org.br/2021/02/25/maior-produtor-de-arroz-organico-da-america-latina-inicia-colheita/>
[12] “O que é permacultura e como ela se aplica à arquitetura? ” ArchDaily. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://www.archdaily.com.br/br/952570/o-que-e-permacultura>
[13] “Mutirão de Bioconstrução do MTST – Dona Alzerita, em Brasília” Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://mtst.org/mtst/mutirao-de-bioconstrucao-do-mtst-dona-alzerita-em-brasilia/>
[14] “No Brasil, 84,9 milhões de pessoas estão com fome ou em insegurança alimentar” Portal IG – Economia. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://economia.ig.com.br/2021-08-19/fome-inseguranca-alimentar-no-brasil.html>
[15] “Brasil é o 4° maior produtor de grãos e o maior exportador de carne bovina do mundo, diz estudo” União Nacional da Bioenergia. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://www.udop.com.br/noticia/2021/06/02/brasil-e-o-4-maior-produtor-de-graos-e-o-maior-exportador-de-carne-bovina-do-mundo-diz-estudo.html>
[16] “Parece mentira, mas o agro da Holanda supera o do Brasil em exportação” Blog da Embrapa Soja. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://blogs.canalrural.com.br/embrapasoja/2019/03/06/parece-mentira-mas-o-agronegocio-da-holanda-supera-o-do-brasil/>
[17] HUTZ, C.S., ZANON, C., BRUM NETO, H. (2013). Condições Adversas de Trabalho e Doença Mental em Abatedouros de Aves no Sul do Brasil. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(2), 296-304. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://www.scielo.br/j/prc/a/4Ky49yS8jKKngzxJHSwcMsJ/?lang=en&format=pdf>
[18] “O Marxismo e a Questão Animal” Maila Costa. Acesso em 03 nov. 2021. Disponível em <https://lavrapalavra.com/2019/09/13/o-marxismo-e-a-questao-animal/#_ftnref15>