Por Maria Eduarda Sampaio de Sousa[1] e Pedro Henrique Juliano Nardelli[2]
A valorização do valor é a base do modo de produção capitalista, que tem a forma-mercadoria seu elemento fundamental. Neste trabalho, é apresentada uma tese que aponta a existência de uma forma-tecnociência diretamente derivada da forma-mercadoria e necessária ao Capital. A partir daí, é apresentado como factualmente se deu essa derivação na história, especialmente nos Estados Unidos. Além disso, a relação entre a forma-tecnociência e a forma-sujeito é construída indicando um duplo caráter: (i) ideológico na produção de conhecimentos científicos para serem aplicados no mundo concreto e (ii) concreto na produção de máquinas e métodos estruturalmente moldados às necessidades da valorização do valor. Em contraste ao modo hierarquizado, mais direto, do fordismo, as tecnologias no pós-fordismo atomizam ainda mais os sujeitos, fragmentando e quantificando a realidade seguindo uma lógica mercantil de recompensas e punições que descomplexificam a realidade social através de uma maior complexidade de aparatos técnicos. Neste caso, é proposta uma leitura de como as subjetividades e a forma-tecnociência se conformam no período pós-fordista atual.
INTRODUÇÃO
As histórias das diferentes formações sociais só podem ser cientificamente entendidas se forem estudadas através do conceito de modo de produção (ALTHUSSER, 2016). Tal ciência da história não pode ser produzida como um empirismo do já dado, nem como um determinismo mecânico: ela constrói na teoria a sociedade como um todo social articulado em dominância em que diferentes práticas e fenômenos sociais são sobredeterminados e cuja a determinação em última instância é econômica (ALTHUSSER, 2005, 2014). Para chegarmos em como essas articulações sociais complexas se dão, deve-se utilizar o conceito de forma social, assim como proposto em O Capital (MARX, 2017), onde é exposto que a forma social elementar do modo de produção capitalista é a forma-mercadoria.
A partir de tal forma social fundante é possível derivar outras formas sociais não somente para gerar conhecimento de fenômenos econômicos da produção, circulação, distribuição e consumo de valores e capital (que é o valor que se valoriza) conforme já apresentado nos três volumes de O Capital e muito bem estudado por Rubin (2019), mas também em outros domínios que são necessários à reprodução das relações de produção capitalistas como a forma jurídica sujeito de direito e a forma política estatal (MASCARO, 2013). Mascaro (2017) e Caldas (2021) expõem os principais pontos de como as formas sociais se derivam factualmente na história através de conflitos e arranjos. Mas, é importante ressaltar a não-teleologia e a aleatoriedade desse processo, pontuado em dois momentos (ALTHUSSER, 2017), (MASCARO; MORFINO, 2020): (i) a transição de um modo de produção dominante para outro onde há um leque de possibilidades para a estabilização das formas sociais dominantes que caracterizam um dado modo de produção como tal, e (ii) a estabilidade das formas que emergiram, deram liga e se estabeleceram como dominantes. Retrospectivamente, é possível construir como chegamos até aqui. No entanto, tudo poderia ter sido diferente: o materialismo aleatório proposto por Althusser provê uma posição filosófica para se entender as formações sociais através das relações entre necessidade e contingência em um dado período histórico além de apontar as possibilidades para estender os limites do que é possível (PIPPA, 2019; SOTIRIS, 2020).
Apesar de sua importância para a economia através das forças produtivas e para a reprodução das relações de produção (e exploração), as práticas sociais (i) técnicas de intervenção na realidade concreta e (ii) científicas de entendimento teórico da mesma realidade (purificada) permanecem ambas ainda presas a um determinismo que assume que as forças produtivas têm uma dinâmica própria e que determinam até a base econômica do modo de produção como, por exemplo, em Karl Marx’s Theory of History: A Defence (COHEN, 1978). Outras vertentes enquadram melhor os fenômenos técnicos e científicos, tentando construir articulações através das formas sociais como as propostas por Marcuse (2013), Braverman (1974) e mais recentemente Feenberg (2002), mas sem explicitamente caracterizar sua especificidade dentro do modo de produção capitalista como uma forma social peculiar a tal sociabilidade, sendo ela derivada da, e ao mesmo tempo necessária à, forma-mercadoria. Nossa tese é que existe uma forma social que molda a prática científica como tecnociência que é derivada da forma-mercadoria, se estabelecendo factualmente através de instituições de ensino, pesquisa e desenvolvimento como universidades, e grandes corporações com grande apoio estatal, principalmente depois da primeira guerra mundial nos Estados Unidos, a então emergente potência capitalista (NOBLE, 1978).
Mas não é só isso: a forma-tecnociência não apenas se estabelece em instituições que são de fato aparelhos ideológicos que constituem as subjetividades dos agentes da produção técnica e científica (ALTHUSSER, 2014, 2017), ela também produz artefatos, ferramentas, máquinas e métodos (isto é, tecnologias) que via de regra intervém em favor da produção e da reprodução do capital e suas formas específicas (BRAVERMAN, 1974). O modo com que as tecnologias da informação e comunicação contemporâneas afetam a formação das subjetividades constituindo sujeitos narcisistas e fragmentados ilustram isso muito bem (JAPPE, 2019). Com isso, a própria produção técnica (tecnológica) se materializa em instrumentos e métodos que mediam relações entre humanos, entre humanos e a natureza, e contemporaneamente entre humanos e “seres virtuais” como bots e drones.
Isso possibilita (e de fato cria) novos ambientes e modos para a acumulação através de níveis de abstração ainda maiores de tal sorte que isso pode até ser lido no limite como uma transição para um novo modo de produção em que uma classe domina os vetores do mundo digital que controla não só classe trabalhadora, mas também a própria classe capitalista (WARK, 2019). O argumento proposto de que existe uma classe social (os bilionários das Big Tech) que pode ter o controle das abstrações universais (incluindo o valor, o capital etc.) deve ser levado a sério como uma situação limítrofe da realidade atual na qual vivemos num modo de produção pior que o capitalista. Apesar de discordarmos de suas conclusões já que a realidade é (ainda) estruturada pelas formas sociais capitalistas, tal texto especulativo aponta para o mundo contemporâneo indicando a necessidade de enquadrar as novas tecnologias dentro do modo de produção capitalista pós-fordista sistematicamente portador de crises, de tal forma que tais tecnologias ao mesmo tempo individuam sujeitos e subjetificam indivíduos.
Utilizando tais balizas teóricas, o presente artigo se propõe a investigar como a forma-tecnociência afeta a forma sujeito, tendo por parâmetro o capitalismo atual. Para tanto, tem-se como objetivos específicos: (i) investigar a definição da forma tecnociência e suas características; e (ii) analisar criticamente a relação de determinação da forma valor sobre a dinâmica entre a forma-sujeito e a forma-tecnociência.
TÉCNICA, CIÊNCIA E CAPITALISMO: A FORMA TECNOCIÊNCIA
Em Estado e forma política, Mascaro (2013) propõe uma articulação entre diferentes vertentes marxistas, construindo uma arquitetura do todo social com foco no Estado e no Direito como formas derivadas e necessárias às formas sociais capitalistas. Há o Estado como o terceiro necessário para mediar as relações sociais (mercantis) entre os trabalhadores e os capitalistas e há o Direito que é definido através de subjetividades jurídicas que são portadoras de mercadorias a serem transacionadas (isso inclui a própria força de trabalho de cada sujeito de direito). Historicamente e em cada lugar, o Estado e o Direito foram se constituindo através de instituições, conflitos, acordos, disputas etc., tudo perpassado pela luta de classes e determinados pela forma mercadoria. Uma vez que a subordinação real do trabalho ao capital é dada factualmente como resultado da luta de classes, é possível dizer que o Estado e o Direito são logicamente e materialmente necessários para o Capital se reproduzir. Para cada formação social peculiar, há materializações distintas que se realizam em instituições, aparelhos e normas que se conformam (como derivações secundárias das formas derivadas primariamente) e que se concretizam diferentemente em cada Estado nacional dada a particularidade de sua própria formação histórica (e seus conflitos, lutas, etc.).
A tese a ser defendida aqui é que há uma outra forma social derivada da forma-mercadoria e necessária ao Capital que vai se estabelecendo historicamente; tal forma social é a forma tecnociência que molda as relações sociais de produção de conhecimento científico (teórico sem “utilidade” direta) e técnico (concreto produzido para intervenções na realidade) em favor da produção e reprodução do Capital. O próprio Marx em O Capital já indica para tal caminho relacionando o desenvolvimento de tecnologias (isto é, novos equipamentos e métodos desenvolvidos graças aos novos conhecimentos científicos) como a maquinaria (no volume 1), e os meios de comunicação e transporte (no volume 2) que estão diretamente relacionados à produção e circulação do Capital. Na verdade, em um pequeno texto pouco conhecido chamado Capital e Tecnologia (Manuscritos de 1861-1863), Marx explicitamente argumenta nessa direção, afirmando que
O modo capitalista de produção é o primeiro a colocar as ciências naturais a serviço direto do processo de produção, quando o desenvolvimento da produção proporciona, diferentemente, os instrumentos para a conquista teórica da natureza. A ciência logra o reconhecimento de ser um meio para produzir riqueza, um meio de enriquecimento.
(…)
Somente a produção capitalista transforma o processo produtivo material em aplicação da ciência à produção — em ciência, posta em prática, mas somente submetendo o trabalho ao capital e reprimindo o próprio desenvolvimento intelectual e profissional … (Marx, 1980)
Alguns marxistas apoiados em certos escritos de Marx tendem a conceitualizar a tecnologia como já objetificada em meios de produção. No limite, a leitura mais refinada sobre o tema vem do chamado Marxismo Analítico de Gerald Allan Cohen (1978) em que a tecnologia é um fenômeno interno dentro do desenvolvimento quase autônomo das forças produtivas que irá determinar a própria base econômica na qual a superestrutura da sociedade é constituída. Althusser expõe pedagogicamente a falha de tal visão nos dizendo:
(…) as relações de produção não são algo agregado às forças produtivas simplesmente como sua “forma”. As relações de produção permeiam as forças produtivas, já que a força de trabalho, que põe em movimento as “forças produtivas”, ela mesma faz parte das “forças produtivas”, e já que o processo de produção capitalista tende incessantemente à exploração máxima do força de trabalho. E uma vez que é esta tendência que domina tudo o mais no processo de produção capitalista, é necessário dizer que os mecanismos técnicos de produção estão subordinados aos mecanismos (de classe) de exploração capitalista.[3] (ALTHUSSER, 1978) [Tradução nossa].
Maria Turchetto vai além, deslocando a centralidade da ciência como motor do desenvolvimento tecnológico para as necessidades organizacionais da própria indústria. Ela nos ensina que:
Se substituirmos a ciência pela divisão do trabalho como o principal motor do desenvolvimento técnico-organizacional do capitalismo, as conclusões a que se chega são claramente diferentes. Deixando de lado por enquanto a questão mais complexa da ciência (além de nos arrastar para um território já minado pela epistemologia científica, isso envolveria – na medida em que o trabalho científico se tornou uma esfera autônoma da divisão social do trabalho – uma preliminar afirmação da relação existente entre a divisão técnica e a divisão social do trabalho), no que diz respeito à tecnologia, é possível enfrentar sobre uma nova base o problema do caráter capitalista das máquinas.[4] (THURCHETTO, 1991) [Tradução nossa]
Ambos os textos reposicionam a questão do desenvolvimento tecnológico defendendo a primazia das relações de produção e da divisão do trabalho, ou seja, da exploração capitalista. Harry Braverman (1974) nos mostra de maneira inquestionável isso em Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twentieth Century, expondo o desenvolvimento factual das condições do trabalho e em parte de diferentes tecnologias nos Estados Unidos através do conceito de formas sociais assim como apresentado em Marx. De maneira bastante resumida, o que é apresentado é como o período fordista foi se articulando e posteriormente enfraquecendo. No primeiro caso, se dá uma reorganização dentro das indústrias que aumenta o controle do processo de produção através de um estamento gerencial (os chamados, colarinhos-brancos) necessário à dinâmica de acumulação dentro da competição capitalista. Nesse caso novas técnicas, métodos, ferramentas e máquinas são desenvolvidas pelas (assim chamadas) ciências de management e engenharia, aumentando o controle (direto e indireto) sobre os trabalhadores (colarinhos-azuis). Isso impõe uma maior desqualificação das habilidades do trabalhador, simplificando suas tarefas (unskilling process). Dessa forma, cada vez mais o trabalho se torna abstrato e o trabalhador substituível; isso mostra mais um passo na subsunção real do trabalho, nesse caso com as características peculiares ao regime de regulação fordista (relação de trabalho hierárquica dentro de grandes conglomerados industriais, produção em massa, estado de bem-estar social nos países “desenvolvidos” etc.).
Ainda na década de 1920, Rubin (2019) demonstra que há uma unidade entre as relações sociais e técnicas de tal sorte que há uma correspondência entre os processos materiais-técnicos de produção e as relações de produção que lhe dão forma. No entanto, é preciso ter cuidado com o economicismo vulgar que:
(…) 1) ou atribuem a “definição econômica da forma” a uma “propriedade objetiva” das coisas (C., II, p. 164), ou seja, derivam os fenômenos sociais diretamente dos fenômenos técnicos; por exemplo, a capacidade do capital de gerar lucro, que pressupõe a existência de determinadas classes sociais e relações de produção entre elas, é explicada em termos das funções técnicas do capital no papel de meios de produção; 2) ou atribuem “certas propriedades materialmente inerentes aos instrumentos de trabalho” à forma social dos instrumentos de trabalho (Ibid.), ou seja, derivam fenômenos técnicos diretamente dos fenômenos sociais; por exemplo, eles atribuem ao capital o poder de aumentar a produtividade do trabalho que é inerente aos meios de produção e representa sua função técnica, isto é, uma forma social específica de produção (a teoria da produtividade do capital).[5] (RUBIN, 2019) [Tradução nossa]
Nesse caso, Rubin aponta que toda forma socioeconômica analisada por Marx pressupõe, como dada, uma determinada etapa do processo material-técnico de produção.[6] [Tradução nossa]. Esse argumento indica que as formas sociais capitalistas necessitam de um certo desenvolvimento técnico, porém elas não são (e nem podem ser) determinadas por ele. Como Braverman, Marcuse, Noble entre outros demonstram, o desenvolvimento do processo produtivo capitalista prioriza tipos específicos de técnicas materiais que aumentem o controle dos capitalistas sobre os trabalhadores visando o aumento do capital individual bem como do mais-valor relativo e absoluto.
Nesse sentido, é importante retomar um ponto que pode contradizer a tese defendida neste texto. Quando Rubin critica os economistas por derivarem fenômenos técnicos diretamente dos fenômenos sociais, ele está colocando a ênfase no “diretamente”. Nesse caso, é como se a justificativa de uma máquina ser mais eficiente (isto é, produzir mais valores de uso com menos força de trabalho, menos matéria prima etc.) vir do capital (fenômeno social) e não de como as forças da natureza são utilizadas na construção e operação de um instrumento complexo com tal finalidade. O argumento de Rubin é que a máquina é mais eficiente por suas características técnicas. Apesar disso, tal característica técnica de fato se relaciona à produção de mais-valor relativo e absoluto como já bem mostrado no capítulo Maquinaria e grande indústria em O Capital. O nosso objetivo aqui é demonstrar como se dá a articulação entre esses dois níveis de fenômenos; o fenômeno técnico deriva sim do fenômeno social (e é necessário a ele), mas tal derivação é indireta (estrutural). A transmissão do social para o técnico se dá através da forma social tecnociência, que pode ser entendida como a articulação complexa entre os dois domínios.
Esse caráter dialético do processo é muito bem descrito por Althusser citado acima, relembrando o caráter complexo do processo em que as relações de produção têm primazia sobre as forças produtivas, mas reforçando que tal processo é sobredeterminado e perpassado pela luta de classes. Althusser (2017) sumariza a arquitetura do seu pensamento utilizando o conceito de prática social, incluindo práticas teóricas (e entre elas as práticas científicas) e práticas técnicas. Em Estado e forma política, uma abordagem teórica similar é apresentada, explicitamente associando as práticas sociais políticas e jurídicas com formas sociais derivadas da forma mercadoria. Nosso objetivo agora é formular de maneira similar a derivação da forma-tecnociência.
No capitalismo, a prática política se dá necessariamente em forma estatal. Igualmente, a prática jurídica se dá na forma de sujeito de direito. Essa determina que existem portadores de mercadoria (incluindo sua própria força de trabalho) e podem transacioná-las via contrato; aquela determina que existe necessariamente um elemento estrutural terceiro que media a relação de uma classe possuidora de meios de produção e outra que não os possui. Vale reforçar que tudo isso existe e é definido em escala social (e não apenas individual ou ocasional), como os conceitos de prática e de forma já pressupõe. Em ambos os casos, a forma se deriva das necessidades da forma-mercadoria e da forma-valor (abstrações concretas especificamente capitalistas) se estabelecerem como tal; isso caracteriza o capitalismo garantindo a produção do Capital e a reprodução das suas relações de produção peculiares. Se não fosse assim, não seria possível reconhecer o que conceitualmente definimos como modo de produção capitalista.
Nosso argumento é que há ainda uma outra forma derivada formalmente fora da esfera da econômica da produção de valor, e assim como a forma política estatal e a forma jurídica de sujeito de direito, se dá na esfera da reprodução (sempre lembrando que estamos falando de um todo complexo em dominância e sobredeterminado). Tal forma molda as práticas científicas (teóricas, discursivas) necessariamente objetivando impacto econômico e social dentro do modo de produção já dado. Em outras palavras, a produção de conhecimento verdadeiro de objetos teóricos bem definidos que são produzidos pelas práticas científicas cujo produto determinam o que chamamos ciências se subordina à sua utilidade dentro dos parâmetros estabelecidos pelo modo de produção dominante. Assim, as práticas científicas devem produzir conhecimentos úteis para intervenções no mundo concreto. Via de regra, as práticas científicas devem gerar inputs (matéria-prima teórica) para as práticas técnicas que produzem ferramentas e métodos de intervenção, que visam produzir mais e melhor, dominar de maneira mais eficiente o tempo de trabalho etc. Com isso, a forma social que a prática científica se apresenta no modo de produção capitalista é a forma-tecnociência que produz direta ou indiretamente conhecimentos verdadeiros para práticas técnicas com a finalidade de potencialmente produzir novas tecnologias, isto é, ferramentas, técnicas ou métodos de intervenção em realidades externas a prática científica (teórica). Esquematicamente, a tecnologia é o resultado de conhecimentos científicos que são produzidos e aplicados para criar, melhorar ou retificar técnicas e ferramentas que servem para mediar relações pessoais, sociais, entre humanos e a natureza, etc.
A forma-tecnociência então molda relações entre os agentes das práticas científicas para produzir tecnologia, mas ainda falta explicar por que tal forma é necessária ao capitalismo e ao mesmo tempo derivada da forma-mercadoria. Ainda que tenha havido práticas técnicas e até científicas nas civilizações que já existiram na história (incluindo tecnologias que utilizavam conhecimentos da recém fundada ciência matemática na Grécia antiga), elas foram qualitativamente diferentes das que existem hoje no modo de produção capitalista. Similarmente, os fenômenos políticos e jurídicos foram qualitativamente diferentes na antiguidade e na idade média se comparados com os do mundo contemporâneo, ainda que hoje em dia nomes e ritos sejam preservados; as formas sociais que moldam tais fenômenos são distintas. Como apresentado anteriormente, a forma social elementar do modo de produção capitalista é a forma-mercadoria que necessita uma forma política e uma forma jurídica específicas. Além disso, o capitalismo necessita para sua reprodução um aumento eterno da quantidade de mercadorias, do valor (abstração universal) e do mais-valor (relativo e absoluto) voltados para acumulação bem como uma diminuição constante do tempo de circulação e realização; lembre-se o Capital é a valorização do valor. Antes o conhecimento técnico (tentativa e erro) bastava e a tecnologia era algo apenas eventual; hoje não. Precisa-se das ciências para se conhecer objetivamente as “verdades universais” (ou generalidades teóricas) para se produzir mais mercadorias, para se ampliar as esferas de produção, acumulação e exploração, para controlar o trabalhador, aumentar o mais valor relativo e absoluto, diminuir o tempo de circulação e estoque etc. Tudo isso num processo sem Sujeito e automático, onde os agentes de produção de conhecimentos científicos são ideologicamente interpelados pela materialidade das instituições científicas além da própria filosofia espontânea dos cientistas (ALTHUSSER, 2012) .
Como Braverman e Noble, seguindo as linhas já presentes em O Capital, mostram, isso se deu factualmente, se estabelecendo institucionalmente nos contornos atuais com o modo de regulação fordista na primeira metade do século XX, principalmente com as duas guerras mundiais e o então domínio econômico-militar capitalista pelos Estados Unidos. O tipo de prática científica profissional (o big science, as ciências aplicadas, financiamento majoritariamente militar para projetos high-risks high-gains) toma assim a forma de tecnociência, necessária à valorização do valor.
A FORMA TECNOCIÊNCIA NO CAPITALISMO PÓS-FORDISTA
Para entender a forma tecnociência no período pós-fordista é preciso indicar como tal modo de regulação é caracterizado, mas sempre reforçando que o modo de produção permanece capitalista, com suas formas sociais peculiares e necessárias; o modo de regulação se refere a articulações específicas de tais formas. Primeiramente, apresentaremos o fordismo para daí apresentar o pós-fordismo através dessa base.
O modo de regulação fordista é associado no domínio econômico pela participação estatal como provedor essencial de serviços de bem-estar básicos (suportados supostamente pelos escritos de Keynes). No entanto, o modo de regulação não é apenas econômico, mas sim define termos médios de um dado período histórico (isto é, características estruturais gerais que organizam e articulam as formas sociais capitalistas em formações que realmente existem). O fordismo é associado à chamada segunda revolução industrial, caracterizada pela produção em massa, gerenciamento hierárquico baseado em comando e controle (taylorismo), eletrificação, massificação da propaganda etc. Há um capitalismo monopolista em que as grandes indústrias (elétrica, química e de comunicações) bem como as organizações públicas (estatais) provedora de serviços, para administrar sua própria complexidade operacional, desenvolveram um enorme estamento gerencial (colarinho branco) incluindo alguns gerentes de alto escalão e “proletários de escritórios” (BRAVERMAN, 1974). Com isso, tecnologias de controle e gerenciamento foram desenvolvidas através de uma razão unidimensional (MARCUSE, 2013). Havia uma certa previsibilidade na vida das camadas médias e altas da população, e até mesmo de alguns ramos de trabalhadores industriais em alguns lugares do mundo capitalista. O mundo fordista é então verticalizado onde havia uma clara definição das linhas de poder dentro das instituições, seguindo na terminologia militar um esquema command and control.
Tal organização mais hierárquica e previsível começou a sofrer abalos sistêmicos com a crise do capitalismo nos anos 60 e 70, bem como com o desenvolvimento da microeletrônica (relacionada à terceira revolução industrial e o toyotismo). Por exemplo, tais mudanças são muito bem reportadas por Lasch (1983), Sennett (2015), e Boltanski e Chiapello (2018). O desenvolvimento constante de novas tecnologias viabilizaram uma vida em rede mais globalizada e flexível (GIDDENS, 2007). Algumas dessas novas tecnologias têm o potencial de afetar profundamente a constituição psíquica e social dos indivíduos (FISHER, 2020), (JAPPE, 2019); tal tema será discutido posteriormente quando a relação entre as formas tecnociência e sujeito será estudada. Nesta seção, vamos mostrar como a forma-tecnociência produz tecnologias que ao mesmo tempo: (i) facilitam as relações entre usuários e “máquinas” e, (ii) complexificam suas próprias arquiteturas (necessitando um conhecimento técnico e científico altamente especializado).
O estudo da obra da maturidade de Marx por Rubin (2019) demonstra a relação fundamental entre os fenômenos de natureza técnico-material com os de natureza sócio-econômica. Há uma hierarquia das determinações sociais e materialização de suas formas; no capitalismo, o trabalho abstrato é necessário para a forma-valor e daí ao Capital, em contraste a outros tipos de trabalho que são socialmente equalizáveis. Neste sentido, seguindo Althusser e de certa forma Turchetto, a forma das relações de produção se materializam em instrumentos e métodos que são benéficos para capitalistas individuais e/ou para a valorização do valor, não somente em referência ao capital industrial em todo seu ciclo mas também aos outros tipos de capitais como o financeiro e comercial.
Durante o período fordista, técnicas, instrumentos e métodos foram desenvolvidos como resultado do avanço na produção científica e de sua aplicação técnica. A forma-tecnociência produziu como resultado concreto diferentes mediações para o domínio e o controle direto dentro de uma hierarquia social e institucional bem definida; a distância entre a prática material e a organização social é assim pequena. Melhoram-se as ferramentas e a organização de relações técnicas imediatas em termos de métricas econômicas, também facilitando o domínio entre um nível de hierarquia institucional para outro. Em outras palavras, as tecnologias não escondem a face da exploração.
No pós-fordismo, houve uma grande expansão de tecnologias digitais que oferecem oportunidades de novas mediações, onde há uma vetorialização (digitalização) do controle tanto no mundo das máquinas através da automação e robótica como no mundo dos seres humanos como agentes em práticas sociais diversas incluindo a própria economia (WARK, 2019). O mundo simbólico-virtual-digital proporciona um espaço para uma convivência em rede, fragmentada, em que o controle é muito mais indireto através de recompensas imediatas e sem face uma vez que tal gamificação (infantilização) é construída através de construções técnicas complexas que exigem um alto nível de conhecimento científico para serem produzidas. Tal espalhamento do uso da tecnologia não se deu apenas no nível de práticas econômicas, mas em praticamente todas as práticas sociais (ainda mais após a crise de 2008 e atualmente com a pandemia).
Tal desenvolvimento não foi espontâneo ou autônomo; ele foi o resultado factual das necessidades da valorização do valor e da forma-mercadoria, sendo estabelecidas como resultado de lutas reais entre frações do capital representados por capitalistas (bilionários) individuais e certamente da luta de classes (considerando, no entanto, que o lado dos explorados está bastante fragilizado); tal disputa ainda está aberta. Pode-se dizer então que a forma tecnociência se materializou em instrumentos e métodos que: (i) aumentam o mais-valor relativo (por exemplo, automação), (ii) aumentam o mais-valor absoluto (por exemplo, aumentam o tempo que o trabalhador é explorado permanecendo conectado exclusivamente ao explorador), (iii) expandem as práticas sociais produtoras de valor (subordinação de aspectos da vida à forma valor, com produção de valores de uso por trabalhadores que fazem o valor se valorizar), (iv) criam novos espaços virtuais para se produzir valor e capital (metaverso, games, NFT), (v) diminuem o tempo de rotação do capital produtivo, e (vi) facilitam o crédito e o consumo. Outros exemplos ainda podem ser citados como a questão atual das criptomoedas estudada de maneira rigorosa em (PARANÁ, 2020).
Uma das principais características das novas tecnologias é mudar o foco de produtos de massa do período fordista, para ambientes plataformizados (criando plataformas de consumo) centrados nos indivíduos atomizados (self). Os efeitos disso na escala social e individual (psíquica) são profundos e serão tratados no restante deste artigo. Uma nota importante no que se refere a forma tecnociência é que a mudança do período fordista para o pós-fordista parece estar mais relacionada à organização menos hierárquica e à distribuição baseada em métricas do que a participação do Estado como financiador ativo (sempre mais presente em pesquisa básica); é também importante ressaltar o papel do gasto estatal em pesquisas militares, principalmente nos Estados Unidos.
FORMA TECNOCIÊNCIA E FORMA SUJEITO
A forma-tecnociência, que representa a prática científica no modo de produção capitalista, está inserida num complexo de determinação e sobredeterminação com a forma-sujeito. Nesse sentido, a forma-tecnociência possui um duplo papel na constituição dos processos de individuação do sujeito e subjetivação do indivíduo.
Simondon desenvolve o conceito de individualização técnica, segundo o autor, há um indivíduo técnico quando o meio associado existe como condição sine qua non de funcionamento (SIMONDON, 2020). O indivíduo, para Simondon, não é entendido como princípio, mas sim, como uma realidade relativa, está representado por um estado ou fase do ser, que consiste em relações do meio que formam o indivíduo (SIMONDON, 2009).
Canguilhem, ao endereçar o problema biológico do organismo-máquina, define máquina como uma construção artificial, um trabalho de humano, cuja função essencial depende de mecanismos (CANGUILHEM, 2008). O mecanismo, por sua, vez seria um conjunto de peças deformáveis, que relacionam-se entre si orientadas a um certo movimento. Em qualquer máquina, então, o movimento é uma função do conjunto, e o mecanismo é uma função da configuração (CANGUILHEM, 2008).
Em seguida, Canguilhem resgata a discussão sobre a origem do impulso do movimento em Aristóteles e Descartes. Segundo o autor, Aristóteles encontra o princípio de todo movimento na alma, o que move o corpo é o desejo e o que explica este desejo é a alma (CANGUILHEM, 2008). Seguindo a comparação entre o organismo humano com uma máquina, tem-se que esta última pressupõe a existência de dispositivos acoplados cujo mecanismo está ligado a uma fonte de energia que produz efeitos motores mesmo após o impulso animal ou humano. Ocorre que, esse intervalo entre o armazenamento e a liberação de energia pelo mecanismo oculta a dependência entre os efeitos do mecanismo e a ação de um ser vivo (CANGUILHEM, 2008).
Desse modo, o autor conclui que a explicação do organismo por meio da máquina é concebida apenas a partir da construção de aparelhos que imitam movimentos orgânicos, cuja ativação ocorre independentemente do homem (CANGUILHEM, 2008). Em suma, a construção da máquina viva implica a necessidade de imitar um dado orgânico anterior, o modelo mecânico pressupõe um original vital (CANGUILHEM, 2008), nesse sentido:
Na verdade, parece que não se pode opor mecanismo e finalismo, não se pode opor mecanismo e antropomorfismo, pois se o funcionamento de uma máquina se explica por relações de pura causalidade, a construção de uma máquina não pode ser compreendida nem sem propósito nem sem homem. Uma máquina é feita pelo homem e para o homem, visando certos fins a serem obtidos, na forma de efeitos a serem produzidos. (CANGUILHEM, 2008). [Tradução nossa].[7]
Observa-se, assim, que o organismo e a máquina estão imbricados em um mecanismo específico, determinado pelas relações de produção. A tecnologia participa do processo de individuação, pois insere o indivíduo no meio da técnica e da teoria, essencial para o mecanismo da forma-sujeito no capitalismo, em especial, na produção de mais-valor.
A partir do desenvolvimento tecnológico e a construção da máquina viva se alcança, então, o nível dos conjuntos, conforme proposto por Simondon, em que emerge a teoria da informação com intuito de desenvolver técnicas como instrumento regulador e estabilizador (SIMONDON, 2020).
Simondon observa que, no nível dos conjuntos, há um aperfeiçoamento das máquinas, superior à automação, que preserva uma certa margem de indeterminação sensível a informações externas. Trata-se da máquina aberta e seu acoplamento em um conjunto de máquinas abertas tornando o homem um organizador permanente (SIMONDON, 2020). A forma-tecnociência, então, individualiza o sujeito, tornando-o um ser acoplado à estrutura do conjunto e, ao mesmo tempo, subjetiva o indivíduo, tornando sujeito ao funcionamento de determinado mecanismo.
A partir daí, segue-se para o desenvolvimento sobre o papel constituidor das tecnologias na subjetificação do indivíduo. Segundo Althusser, toda ideologia interpela indivíduos concretos como sujeitos concretos, isto é, transforma os indivíduos em sujeitos (ALTHUSSER, 1974). Nesse ponto, a ideologia jurídica é a vertente fundamental da própria ideologia, pois, no capitalismo, em que a exploração do trabalho se dá por meio do contrato, ser sujeito é ser sujeito de direito (MASCARO, 2021). A forma-tecnociência, por sua vez, também é sobredeterminada pela ideologia da classe estruturalmente dominante e, assim, a técnica e a ciência podem constituir-se como aparelhos ideológicos, tendo-se, o exemplo principal das universidades e da construção do pensamento acadêmico.
No capitalismo, as formas sociais representam relações reificadas, então o elo social é disfarçado. No contexto da forma-tecnociência, a ideologia mascara o elo existente entre a máquina e o organismo vivo, tornando possível disfarçar a relação de dominação da forma-valor a partir da forma-tecnociência. A ideologia tecnológica, portanto, também cumpre seu papel de constituição do indivíduo enquanto sujeito à medida que o acopla como aparelho indispensável para funcionamento do mecanismo capitalista.
TECNOLOGIAS PÓS-FORDISTAS E A FORMAÇÃO DAS SUBJETIVIDADES
Como desenvolvido dos tópicos anteriores, as novas tecnologias pós-fordistas possuem características específicas que transformam a dinâmica do controle de tal modo de regulação, especialmente em razão da digitalização e gamificação. Essas novas dinâmicas de controle influenciam na constituição do sujeito pós-fordista tendo em vista a relação complexa de determinação e sobredeterminação entre a forma sujeito e a forma tecnociência, já abordada.
As inovações em Tecnologia da Informação e Comunicação (TICs), inseridas no processo de valorização do capital, atendem às demandas do regime de acumulação pós-fordista no tocante às alterações no próprio processo produtivo de mercadorias e de circulação de capitais (forças produtivas), seja por meio da intensificação da extração de mais-valor (PARANÁ, 2016), seja pela abertura de novas esferas de valorização do capital por meio da racionalização dos processos de produção “imaterial”, por exemplo, os programas de softwares, assegurados pela “propriedade intelectual” (HIRSCH, 2010).
Por outro lado, seguindo a razão da valorização do valor, tais tecnologias também interferem nas próprias relações sociais de produção capitalistas, especialmente na constituição da forma-sujeito. Assim, o desenvolvimento das TICs, bem como, dos algoritmos e das técnicas de inteligência artificial, viabiliza a extração e mercantilização de amplas dimensões individuais, o que pode ser observado, por exemplo, pelo tratamento de dados pessoais e a construção de grandes bancos de dados (big data), que intensificam o marketing e o consumo da cultura de massa, com o aumento da eficácia no direcionamento dos conteúdos.
Nesse ponto, a Crítica do Valor oferece as bases para pensar a forma-sujeito a partir do conceito de fetichismo da mercadoria, como desenvolve Jappe (JAPPE, 2019). Segundo o autor, o que se chama por “sujeito” é uma figura histórica particular que se desenvolveu especialmente a partir do Renascimento e da secularização, caracterizando-se pelo apagamento das particularidades individuais (JAPPE, 2019). Desenvolvendo seu argumento, Jappe afirma que “na sociedade em que domina o fetichismo da mercadoria não pode haver um verdadeiro sujeito humano: é o valor, nas suas metamorfoses (mercadoria e dinheiro), que constitui o verdadeiro sujeito” (JAPPE, 2019).
As inovações técnicas mencionadas são instrumentos de atomização dos sujeitos, ao permitirem cada vez mais a fragmentação e a captura de características individuais, físicas e psíquicas, extraídas a partir das interações nas plataformas digitais (redes sociais, aplicativos, serviços de streaming etc. que são materialmente compostas por tecnologias de alta complexidade). A atomização dos sujeitos, por sua vez, segue a lógica do fetichismo da mercadoria à medida que intensifica a clivagem entre o corpo material e a abstração, entre sujeito e objeto, contribuindo para o processo de valorização do valor, que invade novos campos da sociabilidade.
Dessa forma, a virtualização/digitalização do sujeito parece ser essencial ao processo de valorização do capital no pós-fordismo, acompanhando também a financeirização e desregulamentação. Os sujeitos tornam-se portadores de mercadorias nos espaços físicos e digitais, e, ainda, seus próprios dados e interesses pessoais se inserem na lógica de valorização por meio de estratégias de marketing, previsão e direcionamento de comportamentos. Trata-se de garantir os instrumentos técnicos, jurídicos e ideológicos necessários ao sujeito automático, isto é, o valor que passa de uma forma para outra sempre com a finalidade de se valorizar.
Neste mecanismo de atomização dos sujeitos através da extração e tratamento de dados para a construção de perfis, observa-se, ainda, um reflexo da fetichização da forma-sujeito. Tem-se como característica geral do fetichismo a projeção de características próprias da sociabilidade capitalista nas coisas, estas passam a se revestir de qualidades subjetivas, enquanto as relações entre pessoas adquirem atributos objetivos (GRESPAN, 2021). A datificação dos sujeitos permite a transferência de decisões às tecnologias algorítmicas, assim, os sujeitos, e seus atributos, tornam-se, cada vez mais, organizados objetivamente, e a tecnologia empregada nesses processos assume a subjetividade da decisão. Tal fenômeno está relacionado à fragmentação das subjetividades em que dados são sempre relacionados a atributos muito bem especificados em ambientes virtuais ou virtualizados. O sujeito datificado é então uma colcha de retalhos onde as decisões de um domínio se relacionam ao outro através de redes de correlações obtidas pelos métodos de big data, abrindo assim novos espaços para acumulação e exploração.
A atomização dos sujeitos e a amplitude da separação entre o indivíduo (concreto) e o sujeito (abstrato) impactam na formação da psique dos sujeitos pós-fordistas, cuja característica principal é o narcisismo. Segundo Lasch, o narcisismo, enquanto patologia proeminente a partir do século XX, para além das origens puramente psíquicas, decorre de transformações da sociedade americana, tais como: burocracia, proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, racionalização da vida interior, culto ao consumismo e mudanças na vida familiar (LASCH, 1983).
Lasch entende o narcisismo como sintoma psicológico das conjunturas sociais que favorecem uma ética de sobrevivência, consistindo em uma busca desesperada por crescimento pessoal que, na realidade, se mostra como superficial, ante à desesperança no futuro e desencanto das relações pessoais (LASCH, 1983). Nesse contexto, o desenvolvimento tecnológico e o avanço das condições sociais permitiram a satisfação de necessidades básicas dos trabalhadores, conduzindo à necessidade de criação de novas exigências materiais a fim de fomentar o consumo. A partir daí os trabalhadores passam a ser visados também como consumidores (LASCH, 1983).
É evidente que as tecnologias pós-fordistas são essenciais para criação de novos mercados de consumo, além de impulsionar o direcionamento da propaganda e da publicidade. Com a extração de dados pessoais dos indivíduos e as técnicas de perfilhamento, é possível prever os interesses do consumidor, e, ainda, induzir novas necessidades de consumo. Os algoritmos permitem, assim, o isolamento dos sujeitos em seus próprios interesses e preferências, que permanecem na ilusão de contato com uma extensão de si mesmos, como um retorno à segurança e a fuga ao estranho.
Tal organização tecnológica se torna um refúgio ao narcisismo pós-fordista. Jappe defende que o homem moderno concebe o mundo exterior como hostil, como uma limitação do próprio sujeito, e “a onipresente concorrência é a causa e a consequência dessa hostilidade” (JAPPE, 2019). A formação das bolhas algorítmicas, então, atende ao desejo do sujeito narcisista de fugir do mundo exterior ao mesmo tempo em que permite uma autovigilância permanente em uma realidade fragmentada em plataformas digitais.
A consciência de uma constante hostilidade e a assunção de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, é o que Fisher conceitua de realismo capitalista. No realismo capitalista o sujeito ocupa a posição de consumidor-espectador em oposição ao engajamento e ao envolvimento (FISHER, 2021). Os sistemas tecnológicos de retroalimentação constroem o controle dos sujeitos por seus próprios desejos e preferências, construídos a partir da ideologia predominante com sua própria lógica mercantil e gamificada de funcionamento.
O realismo capitalista captura o desejo em oposição ao controle direto e imperativo do fordismo, e as tecnologias pós-fordistas são essenciais para construção de um ambiente de retroalimentação do desejo em que o rosto da dominação permanece escondido (e/no inconsciente). A saída parece estar, então, em revelar a deturpação do desejo pela ideologia capitalista para assim lutar contra suas formas sociais peculiares.
CONCLUSÕES
Ao longo deste trabalho desenvolveu-se a tese da existência da forma tecnociência, como forma social, derivada da forma mercadoria, que molda a prática científica no capitalismo. Conclui-se que esta forma tecnociência atua em duas frentes: (i) ideológica, presente na constituição dos agentes da produção técnica e científica através de aparelhos ideológicos, tais como universidades e corporações em parceria com o Estado; e (ii) material, no sentido de conduzir a produção de artefatos, isto é, tecnologias, que constituem ferramentas e métodos essenciais para a produção e reprodução do capital.
Portanto, observa-se que a produção tecnológica, a cargo da ideologia materialmente dominante, se concretiza em instrumentos e métodos que mediam as relações reificadas dos sujeitos no capitalismo. Daí, tem-se a compreensão da relação sujeito-objeto como fundamental para a constituição do próprio sujeito. Nesse sentido, formulou-se a tese sobre a participação da forma-tecnociência na individuação dos sujeitos e subjetificação dos indivíduos. Assim, conclui-se que a ideologia da forma tecnociência cumpre seu papel ao constituir o indivíduo enquanto sujeito acoplado ao sistema tecnológico capitalista como aparelho indispensável para o seu próprio funcionamento.
A forma tecnociência, então, molda as práticas científicas orientando-as para a produção de valor e mais valor, isso porque a ciência se subordina factualmente aos parâmetros do modo de produção predominante, o capitalismo. Desse modo, a prática científica se apresenta no capitalismo como forma-tecnociência, que orienta a produção de tecnologias para a intervenção nas realidades externas desta prática científica, numa relação complexa de determinação e sobredeterminação para com as forças produtivas e as relações de produção. Enfim, a forma tecnociência é essencial e necessária para o capitalismo na medida em que facilita a relação entre indivíduos e máquinas e, complexifica as arquiteturas tecnológicas das forças produtivas capitalistas, abrindo novas e inúmeras oportunidades para a valorização do valor.
Esta prática científica moldada pela forma-tecnociência, por sua vez, assume características específicas em cada modo de regulação. Nesse sentido, concluiu-se que, no fordismo as técnicas, instrumentos e métodos conduziam um controle direto em consonância com uma hierarquia social e institucional bem definida. No pós-fordismo, com a expansão das tecnologias, em especial, das tecnologias da informação e da comunicação, verifica-se a digitalização e difusão do controle, que deixa de ser direto e rígido, mas, indireto. Através de tecnologias de recompensas, ocorre o controle pela flexibilização e autovigilância, que acompanha a instabilidade econômica marcante do período pós-fordismo.
Por fim, a atomização dos sujeitos que permite a extração de suas características e interesses, constrói um ambiente ideal no realismo capitalista. As tecnologias pós-fordistas favorecem o isolamento dos sujeitos dentro de seus supostos desejos, construídos dentro da ideologia capitalista. O sujeito narcisista, fechado na ilusão de si mesmo, das suas preferências e das suas métricas, permanece em constante autovigilância e conforto da incredulidade de um futuro possível fora do capitalismo. A esperança, mesmo que remota, se encontra em uma certa ambivalência das tecnologias que existem concretamente e da objetividade do conhecimento teórico-científico. A ciência social de Marx aponta para a possibilidade da revolução; com o socialismo as ciências produzirão conhecimento para todos e as novas tecnologias se guiarão pela forma-comum, em que tudo o que é produzido é dividido, e todos têm acesso direto à produção social.
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[1] Advogada. Pós-graduanda em Direito Digital pela UERJ. E-mail: [email protected]
[2] Professor Associado, Universidade Politécnica de Lappeenranta-Lahti, Finlândia. E-mail: [email protected].
[3] Texto original: (…) the relations of production is not something added to the productive forces simply as their “form.” The relations of production pervade the productive forces, since the labor power, which sets into motion the “productive forces,” itself form part of the “productive forces,” and since the process of capitalist production tends to ceaselessly to the maximum exploitation of labor power. And since it is this tendency which dominates everything else in the capitalist production process, it is necessary to say that the technical mechanisms of production are subordinated to the (class) mechanisms of capitalist exploitation.
[4] Texto original: If one replaces science with the division of labor as the prime mover of the technico-organizational development of capitalism, the conclusions one arrives at are clearly different. Leaving aside for the moment the more complex ques-tion of science (besides dragging us into territory already mined by scientific epistemology, this would involve—to the degree to which scientific labor has become an autonomous sphere of the social division of labor—a preliminary statement of the existing relation between the technical division and the social division of labor), as far as technology is concerned, it is possible to confront on a new basis the problem of the capitalist character of machines.
[5] (…) 1) either they assign the “economic definiteness of form” to an “objective property” of things (C., II, p. 164), i.e., they derive social phenomena directly from technical phenomena; for example, the ability of capital to yield profit, which presupposes the existence of particular social classes and production relations among them, is explained in terms of the technical functions of capital in the role of means of production; 2) or they assign “certain properties materially inherent in instruments of labor” to the social form of the instruments of labor (Ibid.), i.e., they derive technical phenomena directly from social phenomena; for example, they assign the power to increase the productivity of labor which is inherent in means of production and represents their technical function, to capital, i.e., a specific social form of production (the theory of the productivity of capital).
[6] Every social-economic form analyzed by Marx presupposes, as given, a determined stage of the material-technical process of production.
[7] In truth, one cannot, it seems, oppose mechanism and finalism, one cannot oppose mechanism and anthropomorphism, for if the functioning of a machine is explained by relations of pure causality, the construction of a machine can be understood neither without purpose nor without man. A machine is made by man and for man, with a view toward certain ends to be obtained, in the form of effects to be produced.
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