Por Sandra Bloodworth, via Marxist Left Review, traduzido por Gabriela S.
“Uma das concepções mais absurdas advindas do Iluminismo do século XVIII é a de que, no início da sociedade, a mulher teria sido escrava do homem.”
– Frederick Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.(1)(2)“Um princípio fundamental da análise marxista é que […] não há mãos ou princípios invisíveis guiando a evolução humana. Essa análise também vê a mudança como produzida por forças internas ao próprio sistema social. Ou seja, as causas não são externas e independentes da organização social. O inevitável crescimento populacional, as condições ecológicas ou a vontade de Deus não são justificavas para guerra, pobreza, machismo ou qualquer outra questão social.”
– Karen Sacks, Sisters and Wives. The past and future of sexual equality.(3)
O livro de Frederick Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (doravante A Origem), foi publicado em 1884. Em seu texto, Engels argumenta que os primeiros seres humanos viveram em sociedades não hierárquicas nas quais as mulheres não eram oprimidas. A ideia de que as classes podiam deixar de existir e que os homens nem sempre dominaram as mulheres foi ampla e sistematicamente denunciada como absurda na academia das ciências sociais. E o livro até hoje continua sendo objeto de debate, especialmente entre as feministas.
A argumentação de Engels apresenta alguns pontos fracos, e não apenas por o autor ter que confiar nos estudos, agora superados, de sua geração, mas também porque, apesar de ser um dos defensores mais progressistas dos direitos das mulheres da época, Engels aceita muitos dos estereótipos sobre a sexualidade feminina reproduzidos em seu tempo. No entanto, há um amplo reconhecimento da importância deste livro. Gerda Lerner, uma teórica feminista que não é famosa por seu apoio ao marxismo, diz que, apesar de suas evidentes fraquezas,
“Engels teve uma enorme contribuição para nossa compreensão da posição da mulher na sociedade e na história […] Ao situar “a derrota do sexo feminino no plano da história mundial” no período de formação dos estados arcaicos, com base no domínio das elites proprietárias, ele deu historicidade ao evento. Embora não tenha conseguido provar nenhuma de suas proposições, ele estabeleceu as principais questões teóricas dos próximos cem anos.” (4)
Engels resumiu as anotações feitas por ele e Marx sobre a pesquisa do antropólogo americano Lewis Henry Morgan. Também incorporou a pesquisa sobre a história da família nas sociedades antigas feita por Johann Bachofen, historiador e arqueólogo suíço, e baseou-se em sua própria pesquisa sobre as sociedades germânicas e celtas. Este livro não foi um trabalho individual e secreto. A obra só pode ser totalmente compreendida se tomada em conjunto com as ideias desenvolvidas por Engels e Marx em A Ideologia Alemã, Teses sobre Feuerbach, O Manifesto Comunista e O Capital, citando apenas os mais conhecidos. Seus esforços conjuntos para entender a sociedade capitalista e toda a sua degradação e opressão envolveram, desde seus primeiros escritos, lidar com a questão da opressão das mulheres. Nos livros Sobre a Questão Judaica, escrito quando Marx tinha 25 anos, Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844, e A Sagrada Família, publicado mais tarde naquele ano, Marx frequentemente se refere à escravidão das mulheres e a necessidade de sua emancipação(5). Engels, em sua primeira grande obra, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, escrita de 1844 a início de 1845, trata repetidamente das perigosas e debilitantes condições as quais trabalhadoras eram submetidas. O autor discute os efeitos sobre mulheres e homens do fato de as mulheres trabalharem enquanto os homens ficam em casa desempregados e argumenta contra a moralização dos comentaristas liberais. Se isso não parece natural, argumenta Engels, deve ser porque há “algum erro radical na relação original entre homens e mulheres. Se o domínio da esposa sobre o marido […] não é natural, então o domínio anterior do marido sobre a esposa também não deve ter sido natural”. (6)
Além disso, o artigo de Engels O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, em grande parte negligenciado pelos críticos de A Origem, estabeleceu uma base sólida para a compreensão do desenvolvimento humano. Fundamentado na teoria da evolução de Darwin, mas teoricamente embasado em suas conclusões materialistas e nas de Marx, Engels argumentou que foi o uso das mãos, possibilitado pela postura ereta, que direcionou o desenvolvimento humano ao caminho da fabricação de ferramentas. Isso resultou em uma inteligência crescente e no desenvolvimento da fala. Depois de uma série de controvérsias e até mesmo de evidências fraudulentas no século seguinte, a descoberta na África, em 1974, de um esqueleto de três milhões e meio de anos com um cérebro do tamanho de um macaco, mas com uma postura ereta, fez com que a proposta de Engels fosse amplamente aceita, embora nem sempre fosse explicitamente atribuída a ele.
O objetivo deste artigo é analisar se a proposição básica de Engels – de que a opressão das mulheres coincidiu com a divisão da sociedade em classes e o surgimento do Estado – se sustenta. Não tratarei de cada erro ou debilidade, pois muitos deles são periféricos a essa questão. E não vou responder a todos os argumentos feitos por seus críticos, pois a maioria deles também não são relevantes para este ponto, e eu já respondi alguns deles em outros momentos.(7)
Primeiro, com base no estudo antropológico e arqueológico reunido ao longo do último meio século, debaterei alguns dos argumentos mais frequentes que afirmam que a opressão das mulheres é universal. Em seguida, descreverei o argumento básico de Engels. Em terceiro, traçarei meu argumento, que se baseia fortemente no marxista britânico Chris Harman, que interpretou pesquisas mais recentes utilizando o método teórico de Engels.(8) Finalmente, mostrarei que a evidência arqueológica mais recente, embora desafie radicalmente os detalhes históricos de Engels, na verdade fortalece sua tese central de que a opressão das mulheres foi estabelecida como sociedade dividida em classes. No entanto, vou além de Engels e Harman para explicar as origens da opressão das mulheres, de uma maneira que considero mais consistente com o marxismo.
A opressão das mulheres é universal?
Até a década de 1960, os antropólogos concordavam quase unanimemente que as mulheres sempre foram oprimidas. A antropologia, devido à sua posição enquanto pesquisa científica, era difícil de ser desafiada. Portanto, as feministas que assumiram essa posição foram fundamentais. Simone de Beauvoir escreveu em seu famoso livro O Segundo Sexo, que “este sempre foi um mundo de homens” e que “a mulher […] [é] a presa da espécie”(9). O argumento de Susan Brownmiller de que os homens sempre foram violentos com as mulheres foi muito influente entre as feministas na década de 1970 (10). Em oposição ao marxismo, a autora atribuiu outras divisões sociais, como classe e raça, à dominação masculina das mulheres: “Os conceitos de hierarquia, escravidão e propriedade privada derivavam e só podiam ser fundamentados na subjugação inicial da mulher”.
Brownmiller atingiu um ponto sensível em feministas que aceitam conjecturas de psicologia do senso comum no lugar de evidências históricas, desde que tratem os homens como o principal inimigo:
“uma das primeiras formas de vínculo masculino deve ter sido o estupro coletivo de uma mulher por um bando de homens saqueadores. Isso realizado, o estupro tornou-se não apenas uma prerrogativa masculina, mas a arma básica de força do homem contra as mulheres, o principal agente de sua vontade e seu medo. […] Por imposição anatômica – a construção inevitável de seus órgãos genitais – o macho humano era um predador natural.”
Foi o “medo de uma temporada aberta de estupros” que levou as mulheres a fazerem a “barganha arriscada” do “relacionamento conjugal” e foi o “único fator causador da subjugação original da mulher pelo homem”. (11)
A antropóloga Margaret Mead descobriu que “os Arapesh [não] têm nenhuma concepção sobre a natureza masculina que torne o estupro compreensível para eles”. Isso indica claramente que o estupro é um produto de sistemas sociais específicos, e não apenas dos atributos fisiológicos dos homens. Mas Brownmiller não faz nenhuma tentativa de explicar como isso pode ser entendido em vista de suas próprias afirmações generalizadas. (12)
Desde então, tem surgido uma riqueza de estudos antropológicos e arqueológicos que fornecem evidências esmagadoras de que as mulheres nem sempre foram oprimidas e, portanto, nem sempre sofreram violência masculina. E, no entanto, a maioria dos escritores não marxistas e até mesmo alguns que afirmam concordar com Marx (embora não com Engels), como Heather Brown – autora do mais recente estudo sério sobre o livro de Engels e os Cadernos Etnológicos de Marx – ainda relutam em aceitar essa proposição básica.(13)
Algumas feministas estudaram primatas não humanos, extrapolando o que observaram para construir uma imagem da evolução humana e como as primeiras sociedades poderiam ter sido. Elas concluíram que não havia evidências de que os primeiros hominídeos, que evoluíram dos macacos, teriam sido dominados por homens com mulheres submetidas à violência. A própria Brownmiller cita Jane Goodall, que estudou chimpanzés selvagens e descobriu que a fêmea não cruzava com todos os machos que se aproximavam dela. Nem mesmo os machos mais persistentes tinham fama de estupradores. A autora chega a citar o livro Man and Monkey, de Leonard Williams, que concluiu que “na sociedade dos macacos não existe estupro, prostituição ou mesmo consentimento passivo”, (14) no entanto, Brownmiller afirma que, como as fêmeas humanas são sexualmente ativas a qualquer momento, ao contrário de outros primatas, os homens são capazes de estuprar. O que fica implícito é que macacos e chimpanzés são fisicamente incapazes de estuprar, mas a estudiosa feminista Sally Slocum descobriu que os primatas não humanos “parecem não tentar o coito (quando a fêmea não é receptiva), independentemente da capacidade fisiológica” (15). Um estudo posterior, baseado em observações semelhantes, além de estudos arqueológicos e antropológicos, concluiu que no alvorecer da humanidade “o cenário era de mães bípedes, que usavam ferramentas, compartilhavam alimentos e eram sociáveis, e que escolhiam copular com machos que também possuíam esses traços”(16).
Há muitas lacunas em nosso conhecimento entre esses primeiros passos na evolução dos hominídeos a partir dos macacos, provavelmente há mais de dois milhões de anos, e o surgimento das sociedades de classe. Acredita-se que o Homo sapiens tenha surgido a partir do Homo erectus há cerca de 200.000 anos e, por quase 190.000 anos, viveu em comunidades igualitárias com culturas cada vez mais sofisticadas e complexas, nas quais não havia opressão.
O ponto de partida para avaliar as evidências antropológicas sobre essas sociedades de caçadores-coletores é reconhecer o viés contido nos dados. Acadêmicos e antropólogos que coletaram essas informações acompanharam invasores coloniais e fanáticos cristãos. Eles eram, invariavelmente, culturalmente cegos e preconceituosos em relação a outras sociedades, de modo que suas conclusões não podem ser lidas pelo seu valor nominal. Em sua esmagadora maioria homens, levaram consigo os valores culturais e sociais da sociedade capitalista que distorceram a interpretação do que viram, especialmente no que se refere às relações de gênero. Antropólogas como Eleanor Burke Leacock, Karen Sacks e outras demonstraram convincentemente a natureza masculina e preconceituosa dos argumentos de antropólogos influentes como Malinowsky e Lévi-Strauss.xvii Como concluí em um estudo dos diários dos primeiros “exploradores” no oeste da Austrália:
“as relações de gênero na sociedade aborígine tradicional eram entendidas em grande parte nos termos estabelecidos pelo preconceito e pelas expectativas europeias da época. O ideal de mulheres ociosas e a justaposição de “malditas prostitutas e policiais de Deus” foram bordados e entrelaçados com o racismo e o sexismo brutais que caracterizaram a ocupação branca”. (18)
Antropólogos ocidentais e outros observadores, impondo sua visão de mundo sobre as sociedades que estudaram, assumiram a família nuclear do capitalismo moderno como uma característica universal da organização humana da reprodução e da sexualidade. Pensava-se que a sociedade estava dividida na esfera “pública”, masculina, e na esfera “privada”, feminina, um conceito claramente associado historicamente à ascensão do capitalismo e completamente inútil na compreensão da natureza igualitária, cooperativa e integrada da vida dos caçadores-coletores. Como a responsabilidade das mulheres pelo cuidado das crianças em nossa sociedade contribui para sua opressão, assumiu-se erroneamente que isso poderia ser interpretado como o significado de seu trabalho em todas as sociedades (19). Até mesmo muitas antropólogas feministas “conferem uma posição inferior à maternidade, que elas consideram uma restrição às atividades, um obstáculo ao desenvolvimento da personalidade e uma redução do valor simbólico das mulheres. Elas projetam os valores da nossa cultura em outras culturas” (20). Judith Brown, escrevendo sobre a suposta divisão do trabalho por gênero na sociedade dos caçadores-coletores, escreve que as tarefas das mulheres “são relativamente monótonas e não exigem concentração extasiada; e o trabalho não é perigoso, pode ser realizado apesar de interrupções (por crianças)” (21). Isso, ela supõe, significa que as mulheres ocupavam uma posição inferior. Mostrarei abaixo que essa visão, que já estava sendo contestada, é ainda menos defensável à luz dos estudos mais recentes.
Em segundo lugar, o eurocentrismo da maior parte da antropologia obscurece os efeitos da expansão colonial nas sociedades pré-capitalistas. Como a antropóloga feminista Rayna Reiter observou:
“Não podemos interpretar literalmente a vida dos povos forrageiros existentes – como os bosquímanos !Kung do Kalahari, os esquimós, os aborígenes australianos – como exibições e réplicas de processos que especulamos terem ocorrido no Paleolítico. Tampouco podemos assumir que os povos dizimados, marginalizados e que foram empurrados para os limites de seu ambiente por milhares de anos de invasão, exibirão características originais” (22).
A expansão colonial trouxe mudanças profundas. Essas mudanças podem ser rápidas, afetando a pesquisa feita mesmo em um período muito precoce de invasão. Por um lado, os membros da sociedade que estava sendo colonizada logo aprenderam estratégias de sobrevivência e de minimização de ataques contra si mesmos (23). Acredita-se amplamente que as mulheres indígenas na Austrália eram tratadas como bens móveis de classe inferior antes da invasão branca. Os argumentos baseiam-se em relatos que refletem os preconceitos dos primeiros colonos e ignoram os efeitos catastróficos da invasão branca. A maioria dos relatos dos primeiros contatos se refere aos “nativos” como se os homens fossem os únicos de alguma importância; por exemplo, “vimos os nativos e suas mulheres”. Os exploradores esperavam lidar com homens e viam as mulheres como objetos sexuais, se é que eram notadas. Os aborígenes muito cedo conheceram o sequestro e estupro de mulheres. Henry Reynolds relata que os habitantes das Ilhas do Estreito de Torres contaram a um funcionário do governo em 1881 que, quando os homens brancos eram avistados, as mulheres eram enterradas na areia para evitar maus-tratos (24). Onde esse era o caso, o preconceito masculino dos exploradores e de outros observadores era ainda mais exagerado. A impressão que eles tinham das relações de gênero na sociedade aborígine era a de que os homens eram o sexo dominante e extrovertido e as mulheres eram retraídas, submissas e medrosas. Isso então teve uma dinâmica que reforçou o exagero da importância dos homens. Os exploradores do sexo masculino deram presentes aos homens. Esses presentes, como machadinhas, facas, farinha, açúcar e tabaco, podem parecer triviais se considerados individualmente. No entanto, à medida que o contato aumentava e os produtos dos invasores se tornavam cada vez mais cobiçados e difundidos entre os aborígenes, era de se esperar que esses presentes mudassem o equilíbrio das relações entre homens e mulheres. Por exemplo, quando a terra se tornava menos acessível ou produtiva por causa da invasão, os aborígenes dependiam mais da comida dos homens brancos. Isso reduziu a capacidade das mulheres de prover o próprio sustento e o de seus filhos independentemente dos homens. (25)
Leacock documentou as pressões exercidas sobre as relações sociais igualitárias pelos jesuítas e outros comprometidos com as relações sociais hierárquicas e a opressão das mulheres, à medida que colonizavam as terras dos Montagnais-Naskapi do Canadá e dos índios iroqueses da América do Norte (26). Ela resumiu:
“a estrutura da sociedade igualitária tem sido mal compreendida como resultado do não reconhecimento da participação das mulheres nessa sociedade como pública e autônoma. Conceituar os bandos de caçadores/coletores como grupos soltos de famílias nucleares, nas quais as mulheres estão ligadas por relações diádicas de dependência a homens individuais, projeta nos caçadores/coletores as dimensões de nossa própria estrutura social. Tal conceito implica uma visão teleológica e unilateral da evolução social, pela qual nossa sociedade é vista como a expressão plena das relações que estiveram presentes em toda a sociedade […] Reinterpretações do papel das mulheres nas sociedades de caçadores/coletores revelam que relações qualitativamente diferentes foram obtidas.” (27)
Algumas das evidências mais recentes e convincentes de que as mulheres não foram universalmente oprimidas estão no sítio neolítico de Çatalhöyük, na Anatólia, que foi continuamente ocupado por 1.400 anos até 6.000 a.C. Novas interpretações de evidências arqueológicas e avanços na ciência em testes de DNA desafiaram as conclusões originais sobre este fascinante local. A equipe que trabalha com Ian Hodder, arqueólogo chefe do local desde 1994, “buscou arduamente” as diferenças nas dietas de mulheres e homens como um indicador de diferenças sociais. Eles encontraram “pouca evidência de estilos de vida radicalmente diferentes”. E o fato de que todos os esqueletos tinham resíduos de carbono em suas costelas por passarem tempo em ambientes cheios de fumaça demonstra que as mulheres não estavam mais presas à casa do que os homens. Ele concluiu: “Em geral, há pouca evidência de que o gênero tenha sido muito significativo na alocação de papéis […] Deve ter havido diferenças de estilo de vida em relação ao parto, mas essas diferenças não parecem estar relacionadas a grandes distinções sociais.” Nem as diferenças de vestimenta ou de vida significavam que “um gênero era privilegiado em relação ao outro em termos de transmissão de regras e recursos ou em termos de status social e estilo de vida”.(28)
Um conjunto considerável de estudos antropológicos mostra que, em sociedades como a !Kung e a Mbuti, da África, as mulheres até bem pouco tempo ainda participavam da tomada de decisões em pé de igualdade com os homens, controlavam sua própria sexualidade e contribuíam como iguais para a atividade produtiva (29).
À luz dessa evidência generalizada, à qual acrescentarei mais abaixo, vamos agora nos voltar para a explicação de Engels sobre as origens da opressão das mulheres.
A argumentação de Engels
Engels argumentou que os primeiros seres humanos viviam em pequenos grupos igualitários, o que ele chamou de “comunismo primitivo”, ou às vezes “selvageria” e mais tarde “barbárie”, que podem soar ofensivos para um leitor moderno, mas estavam em consonância com a terminologia arqueológica empregada na época. Ao longo de milhares de anos, os seres humanos encontraram maneiras novas e inovadoras de suprir as necessidades do grupo até que o trabalho de um indivíduo pudesse produzir mais do que o necessário para sua sobrevivência. Isso, Engels afirma, leva a
“a diferenciação da riqueza, o aproveitamento da força de trabalho alheia e, desse modo, a base dos antagonismos de classe: novos elementos sociais que, no decurso das gerações, se esfalfam para adequar a antiga constituição social às novas condições até que, por fim, a incompatibilidade das duas acarreta uma revolução total.
A velha sociedade, baseada em uniões consanguíneas, explode ao chocar-se com as classes sociais recém-desenvolvidas; seu lugar é tomado por uma nova sociedade, sintetizada no Estado, cujas subdivisões são formadas não mais por uniões consanguíneas, mas por uniões locais, uma sociedade em que a ordem da família é inteiramente dominada pela ordem da propriedade…”(30)
A subordinação das mulheres aos homens estava enraizada nesse processo. Engels descreve mudanças na família do casamento por grupo, em que grupos de mulheres e homens podem ter relações sexuais com todos no grupo. Nesse lar comunista, argumenta, as mulheres são altamente valorizadas porque são evidentemente mães de seus filhos, enquanto a paternidade é indeterminada.
Engels afirma que a domesticação de grandes animais produziu o primeiro excedente para além das necessidades da sociedade. Enquanto uma continuação de seu papel de caçador, assumia-se que os homens é quem deveriam ser o responsáveis por essa tarefa, portanto, foram eles quem ficaram no controle deste excedente. O autor esboça um argumento complicado sobre o direito e a herança da mãe através não da família, mas de sua gens (31). Por vários meios, os direitos de herança foram alterados para que a riqueza recém adquirida pudesse ser transmitida através da gens dos homens. Na verdade, Engels cita a pesquisa de Marx sobre alguns índios americanos que pareciam estar em transição, e que estavam mudando a maneira como nomeavam seus filhos: “adotou-se o costume de implantar filhos/filhas na gens do pai, dando-lhes um nome gentílico pertencente a esta [em vez da gens de sua mãe, à qual eles pertenciam anteriormente], para que pudessem herdar do pai”. Marx exclama: “Casuística inata do ser humano a de mud