Por Leslie Feinberg, via Transgender warriors: making history from Joan of Arc to Dennis Rodman, traduzido por Maria Cândida Monteiro Paredes
Introdução:
Qual foi a sua jornada para a consciência? O que te levou a acreditar no que acredita? Pensar e interpretar o mundo como faz? Cada pessoa tem uma diferente história de como se reconheceu socialmente no mundo. Neste capítulo introdutório, Leslie Feinberg, histórica ativista “butch” e militante comunista do Partido Mundial dos Trabalhadores (Workers World Party – WWP) até o fim de sua vida em 2014, conta sua jornada rumo à tomada de consciência como parte da classe trabalhadora e a importância da sua virada marxista para de fato conseguir investigar a base material para a opressão de pessoas trans de maneira profunda e radical.
Entender a jornada que diferentes pessoas têm para a tomada de consciência, bem como os diferentes motivos e condições históricas que as levam a trilhar tal caminho, é de essencial contribuição para aqueles interessados em conquistar corações e mentes e construir caminhos revolucionários.
A obra de Leslie Feinberg (1949 – 2014) é mais conhecida no Brasil hoje nos círculos sapatões, com destaque aos romances como o “Stone Butch Blues”. Sua obra infelizmente permanece pouquíssimo conhecida e traduzida, mas sua produção e memória vêm sendo aos poucos resgatadas pelo esforço das comunidades lésbica e não-binária. Acredito que é mais do que hora da militância marxista revolucionária brasileira ler e conhecer seu trabalho.
Texto principal:
Nunca me ocorreu procurar na História as respostas para minhas questões. Eu não me saía bem em História na escola. Na verdade, isso é um eufemismo, História nunca fez o menor sentido para mim. Eu não conseguia lembrar se Grécia ou Roma vinha primeiro. A Idade Média era uma pedra monolítica da qual eu não conseguia nem tirar uma lasca. Eu sempre me confundia com quem era aliado de quem em cada guerra.
Eu não conseguia me ver na História. Ninguém como eu parecia ter existido. Mas eu tinha que saber por que recebia tanto ódio por ser “diferente”. Qual era a raiz da intolerância e qual era sua força motriz? Algumas pessoas esperam encontrar respostas para perguntas como essas nos corredores sagrados da academia. Mas encontrei o que procurava em outro caminho – trabalhando nas fábricas e no movimento político por justiça.
Olhando para trás, posso ver que crescer como proletariado moldou minha vida e minha consciência em geral, mas não me fez progressista automaticamente. Meus pais nos instruíram a não sermos racistas quando éramos crianças, porque achavam errado ensinar as crianças a odiar. Foi um bom começo, mas foi só quando comecei a trabalhar nas fábricas na adolescência que realmente aprendi a função do racismo institucional. Compreendi rapidamente a frase “dividir-e-conquistar”. Sempre que uma greve se aproximava, os capatazes de repente tentavam agradar alguns dos trabalhadores brancos, “aconselhando-nos” a não confiar nos trabalhadores afro-americanos, latinos e nativos. “Também não conte com as mulheres”, sussurravam para os homens brancos. “Elas também têm o salário do marido. Elas não vão ficar com você.” E os supervisores e seus ajudantes ficavam perto do relógio de ponto na hora que íamos bater, aumentando a voz nas alcunhas “sapatão” e “bixa”.
Às vezes, outros trabalhadores me diziam que o capataz os havia informado de que todos os judeus eram banqueiros e industriais ricos responsáveis pelo sofrimento da classe trabalhadora. Mas eu lembrava aos meus colegas de labuta que eles trabalhavam ao lado de judeus como eu na linha de montagem todos os dias, e desde quando o capataz se importa com a nossa miséria! Ficou claro para mim que o racismo e o antissemitismo – como o ódio às mulheres e a homofobia – foram projetados para nos manter lutando entre si, em vez de lutar juntos para conquistarmos uma mudança real.
No entanto, minha compreensão da dinâmica de classe era limitada à vida fabril. Era a década de 1960. Havia muitos empregos. Tínhamos conquistado salários dignos. O sistema parecia estar funcionando para mim. Não me ocorreu que essa prosperidade econômica era baseada na produção de armas e gastos do governo para a guerra do Pentágono contra o Vietnã. Então, parado no trânsito, sentada em minha motocicleta, eu não havia feito a conexão quando manifestantes anti-guerra marcharam pela rua principal cantando “As grandes empresas ficam ricas, os soldados morrem!”
Minha visão do mundo se limitava à fábrica, os bares gays, meus amigos e minha companheira. Fora da minha pequena esfera, a sociedade estava agitada. Essa luta também se alastrou em Buffalo. Estudantes universitários ocuparam o campus local. O gás lacrimogêneo se espalhava pelas ruas de Buffalo. A comunidade afro-americana se rebelou em uma justificada fúria. Eu pude até mesmo ouvir o impacto do movimento das mulheres em nossas conversas no trabalho. A mudança estava abalando o mundo logo fora da minha janela. Mas foi preciso mais um evento para mudar radicalmente minha consciência – o desemprego.
Quando as fábricas estavam fervilhando de produção durante os anos de guerra – e muitos jovens estavam sendo enviados para o Vietnã – todos eram considerados empregáveis. Mas, à medida que o boom da economia retrocedeu no início dos anos 70, ficamos em filas que viravam quarteirões apenas para conseguir um emprego. Se eu esquecesse por um momento o quão “diferente” eu era, a recessão me lembrava. Eu era considerada uma mulher muito masculina para conseguir um emprego em uma loja, um restaurante ou um escritório.
Eu não conseguia sobreviver sem trabalhar. Então, um dia, coloquei a peruca e os brincos de uma amiga e tentei me candidatar a um emprego como vendedora em uma loja de varejo no centro da cidade. Na viagem de ônibus para a entrevista, as pessoas ficaram em pé ao invés de sentar ao meu lado. Elas sussurravam, apontavam e olhavam fixamente. “Aquilo é um homem?” uma mulher perguntou à amiga, alto o suficiente para todos nós ouvirmos.
A experiência me ensinou uma lição importante. Quanto mais eu tentava usar roupas ou estilos considerados apropriados para mulheres, mais as pessoas acreditavam que eu era um homem tentando se passar por mulher. Comecei a entender que não conseguia esconder minha expressão de gênero.
Então tentei outro experimento. Liguei para uma das sapatonas mais velhas que eu sabia que se passava por homem em um grupo de construção. Ela me emprestou um par de costeletas postiças. Depois de colá-las, dirigi até a Galeria de Arte Albright-Knox. Enquanto andava, ninguém parecia olhar. Essa foi uma experiência incomum e um alívio. Deixei minha voz cair para um registro confortavelmente baixo e conversei com um dos guardas sobre a situação do trabalho. Ele me disse que havia uma vaga para um guarda e sugeriu que eu me candidatasse. Uma hora depois, o supervisor que me entrevistou me disse que eu parecia um “bom homem” e me contratou na hora. De repente, eu era aceitável como ser humano. A mesma expressão de gênero que me fez odiada como mulher, me fez parecer um bom homem.
Minha vida mudou drasticamente no momento em que comecei a trabalhar como homem. Eu estava livre do assédio diário que me perseguia. Mas eu também vivia em constante terror como um “fora-da-lei” de gênero. Que punições eu enfrentaria se me descobrissem? O medo me levou a tomar uma decisão complexa: Decidi começar a tomar hormônios masculinos, prescritos para mim por um programa local de redesignação sexual. Por meio desse programa, também localizei um cirurgião que faria uma redução de mama. Modelar meu corpo era algo que eu queria fazer há muito tempo e nunca me arrependi. Mas comecei a tomar hormônios para “passar”.(1) Um ano depois de começar as injeções de hormônio, cultivei uma barba cheia e colorida, que me deu uma maior sensação de segurança – no trabalho e fora dele. Com essas mudanças, explorei mais uma faceta da minha identidade trans.
Os anos em que trabalhei na galeria de arte impactaram minha consciência. Passava oito horas por dia cercado por séculos de obras de arte. Ouvindo os guias turísticos, comecei a entender como os desenvolvimentos da tecnologia – como a câmera – influenciaram a arte. Eu recebi uma educação de luxo.
Mas logo aprendi que a galeria de arte não foi projetada apenas para o esclarecimento de pessoas da classe trabalhadora como eu. Descobri que havia outra classe em Buffalo que eu nunca tinha visto antes, e a galeria era um dos lugares elegantes onde eles se divertiam. Eles chegavam em limusines. Eles usavam smoking no meio da tarde. Eles brindavam taças de champanhe servidas por garçons que eles ignoravam.
Certa manhã, quando entrei, a atmosfera na galeria parecia eletricamente carregada. Meu supervisor ordenou que eu endireitasse a gravata e engraxasse meus sapatos pretos até que brilhassem – Nelson Rockefeller faria uma visita. Fui designado para ser o guarda na entrada da galeria quando ele chegasse.
Eu andava de canto a canto pela entrada principal, fumando um cigarro atrás do outro. “Ele já está aqui?” o guarda-chefe perguntava de novo e de novo. Eu vi o brilho de uma fila de lustrosas limusines pretas entrando no estacionamento em frente à galeria. Forçando a vista para ver através do vidro escuro, notei dezenas de manifestantes balançando cartazes que diziam “Sangue de Attica nas mãos de Rockefeller!” Quando o motorista da limusine principal saiu e abriu a porta de trás, eu reconheci Rockefeller das fotos nos jornais. Ele zombou dos manifestantes e mostrou-lhes o dedo médio.
Meu chefe gritou comigo: “Abra a porta para ele! Abra a porta!” Quando estendi a mão e segurei a porta aberta, Rockefeller entrou. “Obrigado, garoto” ele murmurou, sem olhar para mim.
Aquele momento foi uma epifania.
Não importa o quanto eu “passar” como homem tenha mudado minha vida diária, entendi aí que a base fundamental da minha classe não tinha mudado. Até aquele momento, eu tinha dirigido toda a minha raiva contra os capatazes e as pessoas de classe média – como pequenos empresários – que eram arrogantes e rudes comigo. Eu pensei que eles detinham as rédeas do poder. Mas, de repente, tive a oportunidade de ver Rockefeller e seus associados ricos atravessarem os corredores, alheios a um punhado de voluntários de classe média da galeria de arte correndo para acompanhá-los. Eu capturei uma nova imagem mental de pessoas de classe média como literalmente presas no meio – entre Rockefeller e eu.
Percebi que os homens de smoking que passeavam pelos corredores da galeria como se fossem donos do mundo realmente os eram! Ali estava Rockefeller conversando com os Knoxes e Schoellkopfs e outros homens que possuíam aquelas mesmas fábricas em que eu havia trabalhado e os bancos onde eu descontava meus cheques. Eles representavam apenas algumas famílias, mas reivindicavam como deles as indústrias, finanças e comunicações – todas as gigantescas ferramentas que sustentam a vida humana.
Pensei nas enormes fábricas de Buffalo: Anaconda Copper, Chevrolet, Bethlehem Steel. Pessoas como eu as construíram do zero. Nossos músculos colocam essas ferramentas de produção em movimento. Por que então que essas famílias que não trabalhavam lá possuíam tudo? E por que, depois de uma vida inteira de trabalho, pessoas da classe trabalhadora como eu possuíam pouco mais do que a capacidade de trabalhar duro por um salário?
Pensei nos cartazes que os manifestantes balançavam com raiva para Rockefeller quando ele chegou. Eu sabia que os prisioneiros de Attica também eram trabalhadores. No entanto, eles recebiam apenas alguns centavos por dia por seu trabalho. Quando esses prisioneiros – predominantemente homens negros – se levantaram e exigiram ser tratados como seres humanos, não como animais, Rockefeller ordenou que os soldados abrissem fogo e os matassem. Na biblioteca, encontrei vários livros de história do trabalho sobre mineiros que se organizaram e exigiram justiça econômica. Eles foram atravessados por balas com o nome de outro Rockefeller nelas.(2)
Agora eu sentia conexão com esse vórtice de luta.
Logo após o incidente com Rockefeller, larguei meu emprego na galeria de arte e encontrei trabalho como lavador de pratos no turno da noite em um restaurante local. Enquanto carregava panelas pesadas cheias de pratos e talheres para a cozinha, ouvi o rádio berrando de uma prateleira sobre a pia. A grande notícia, noite após noite, foi o sangrento golpe militar no Chile. Os locutores relataram que dezenas de milhares de chilenos estavam sendo torturados ou haviam buscado exílio. Os generais da junta destruíram as organizações de trabalhadores e alegavam que enforcariam um judeu em cada poste de luz.
Certa manhã, depois do meu turno, contei a um dos cozinheiros, que havia sido marinheiro mercante, como estava aborrecido com a notícia de que a CIA estava por trás do golpe no Chile. Ele me explicou que quando os chilenos elegeram um socialista para presidente, grandes empresas americanas como ITT e Anaconda Copper começaram a tramar o golpe com a CIA. Ele me disse que você não pode simplesmente votar no socialismo, você tem que lutar para ganhá-lo.
Eu estava com raiva e com nojo de tanto genocídio causado pelos militares estadunidenses – desde o massacre de Wounded Knee até a guerra contra o Vietnã. Eu queria viajar para a América Latina para me juntar ao movimento de resistência. Mas quando solicitei documentos de marinheiro mercante e perguntei a um funcionário o que era necessário para ingressar, ele disse que era um exame físico. Meu sonho idealista chegou a um beco sem saída.
Semanas depois, convidei uma das garçonetes do turno da tarde para sair na sexta à noite. Ela recusou, disse que participava de reuniões todas as sextas-feiras à noite. Ninguém que eu conhecia ia a reuniões sobre nada. “Você é o que?” Eu brinquei, “uma comunista?” Toda a conversa cessou no restaurante. Ela ficou vermelha. Um colega de trabalho me arrastou para a cozinha. “Para que você fez isso?” ela me repreendeu. “Por uma dessas nós podemos ser demitidas.” Ela disse que ambas eram membros do Partido Mundial dos Trabalhadores (Workers World Party) (3). Eu estava trabalhando com duas garçonetes comunistas! Pedi desculpas profusamente. Eu não queria machucar ninguém. Para mim, “comunista” sempre foi um insulto sem sentido, não uma pessoa real. Eu nem sabia o que a palavra realmente significava.
Comecei a enrolar no café da manhã durante as mudanças de turno, fazendo perguntas às duas garçonetes. Após semanas de investigações, elas me convidaram para uma manifestação, do lado de fora do Kleinhan’s Music Hall, protestando contra a guerra israelense ao Egito e à Síria. Eu tinha um interesse particular nesse protesto. O Estado de Israel foi declarado pouco antes do meu nascimento. Na escola hebraica me ensinaram que “a Palestina era uma terra sem povo, para um povo sem terra”. Essa frase me assombrava quando criança. Imaginei carros sem ninguém dentro e filmes projetados em telas de cinemas vazios. Quando verifiquei um mapa daquela região do Oriente Médio em meu livro de geografia escolar, estava rotulado como Palestina, não Israel. No entanto, quando perguntei à minha avó quem eram os palestinos, ela me disse que não existiam tais pessoas.
O quebra-cabeça tinha sido resolvido para mim na minha adolescência. Desenvolvi uma forte amizade com uma adolescente libanêsa, que me explicou que o povo palestino havia sido expulso de suas terras por colonizadores sionistas, como os povos nativos dos Estados Unidos. Estudei e pensei muito sobre tudo o que ela me disse. Daquele ponto em diante, opus-me firmemente à ideologia sionista e à ocupação da Palestina.
Portanto eu queria ir ao protesto. No entanto, eu temia que a manifestação, por mais justificada que fosse, estivesse contaminada por anti-semitismo. Mas eu estava com tanta raiva com as ações do governo e dos militares israelenses que fui ao evento para conferir por mim mesmo.
Naquela noite, cheguei ao Kleinhan’s antes do protesto começar. Policiais – em uniformes e à paisana – cercaram o salão. Esperei impacientemente que os manifestantes chegassem. De repente, toda a imprensa se aglomerou no fim da rua. Eu corri atrás deles. Descendo a ladeira vinha uma longa coluna de pessoas se movendo em direção ao Kleinhan’s. A mulher que liderou a marcha e falou com os repórteres contou orgulhosamente a eles que era judia! Outros seguravam cartazes e faixas no alto que diziam: “Terra Árabe para Povo Árabe!” e “Esmague o Antissemitismo!” Esses eram dois slogans que eu poderia apoiar! Eu queria saber quem eram essas pessoas e onde eles estiveram durante toda a minha vida!
Horas depois, segui o grupo de volta à sede deles. Faixas laranja pregadas nas paredes expressavam solidariedade aos prisioneiros de Ática e aos vietnamitas. Uma bandeira particularmente me marcou. Dizia: “Pelo Fim da Guerra Contra a América Negra”, o que me fez perceber que não eram apenas guerras distantes que precisavam de oposição. No entanto, embora eu trabalhasse com duas membros dessa organização, me senti nervoso naquela noite. Essas pessoas eram comunistas, marxistas! No entanto, achei fácil entrar em discussões com eles. Conheci garçonetes, operários, secretárias e caminhoneiras. E cheguei à conclusão que eles eram algumas das pessoas com mais princípios que eu já havia conhecido. Por exemplo, fiquei impressionado que muitos dos homens com quem conversei falavam comigo sobre a importância de combater a opressão contra gays e lésbicas e contra todas as mulheres. E eu sabia que eles pensavam estar falando com um homem cisgênero heterossexual.
A partir de então, minhas noites de sexta-feira também foram reservadas para reuniões do Partido Mundial dos Trabalhadores (WWP) e sua juventude, a Young Against War and Fascism (Juventude Contra a Guerra e o Fascismo). Vi que não precisava dar a volta ao mundo para me juntar à luta pela justiça! Mas quando entrei para a organização, todos me viam como um homem. Eu tinha uma barba fechada e estava passando como homem, em tempo integral, há mais de quatro anos, então eu não contradisse suas pressuposições.
Eu dividia meu tempo livre entre reuniões educativas e manifestações de protesto contra o racismo e a guerra, o sexismo e a opressão anti-gay, e em defesa da soberania nativo-americana e dos direitos dos presos. No momento em que me juntei a um movimento maior por justiça social, não estava mais lutando só. Era uma sensação maravilhosa conquistar batalhas importantes. Eu sentia conexão com as lutas ao redor do mundo.
No entanto, eu vivia com medo do que a polícia faria comigo se me prendessem. E embora meus camaradas lutassem ao meu lado, ombro a ombro, eu sentia que eles não me conheciam de verdade. Eu sonhava em viver aberta e orgulhosamente como uma pessoa transgênero – não como um homem. Mas e se eu lhes contasse sobre mim e eles não me aceitassem? Eu teria que voltar a lutar diariamente como indivíduo? O temor da perda começou a me despedaçar.
Em 8 de março de 1973, participei da minha primeira celebração do Dia Internacional da Mulher. Antes do início da reunião, todas as mulheres do WWP estavam revisando os discursos umas das outras; todos os homens assumiram tarefas organizacionais, então eu estava na segurança. Eu observava as mulheres juntas, e os homens, e não conseguia encontrar meu lugar entre nenhum deles. Mais tarde, naquela noite, tive um sonho terrível: estava em um quarto pequeno, sem ar; uma das paredes era uma represa, suportando uma enorme pressão de água atrás dela; o gesso começava a craquelar em pequenas rachaduras. Acordei encharcado de suor.
Eu chamei Jeanette Merrill, que ajudou a fundar o núcleo de Buffalo do Partido Mundial dos Trabalhadores. Eu me lembro de pedir ao marido dela, Eddy, para sair da sala. Não consigo me lembrar de como expliquei minha situação para Jeanette ou que palavras escolhi para explicar que eu era um “ele-ela” que havia vivenciado tanto ódio e violência por causa da minha expressão de gênero que não conseguia viver com segurança ou encontrar trabalho. Quando terminei, Jeanette disse que não entendia completamente, mas que sabia reconhecer opressão quando a ouvia.
Nas semanas que se seguiram, as reuniões da célula feminina do WWP e as aulas de autodefesa feminina foram abertas para mim. As líderes se sentaram com cada membro para explicar minha situação e ajudá-los a me entender de forma sensível. Um por um, os homens e mulheres da minha organização me visitaram em casa. Cada um trouxe um bolo, torta, sopa ou até uma caixa inteira de cerveja e se sentaram para me ouvir de uma maneira diferente. Eu contei a eles sobre minha vida; e cada um me contou sobre a sua.
Eddy Merrill, aquele que eu havia pedido para sair da sala enquanto eu falava com Jeanette, esperou pacientemente por uma oportunidade de falar comigo. Uma noite, ele me encontrou na sala de literatura do WWP com lágrimas nos meus olhos. O pequeno almoxarifado estava cheio de panfletos e livros – finos e grossos – sobre história, política e ciência. Eu costumava ler insaciavelmente quando menor, mas me apeguei à ficção. Fora da sala de aula, eu tinha a política de não ler livros de não-ficção, porque tinha medo de não ser inteligente o suficiente para entender os fatos lá dentro.
Mas eu havia chegado a um ponto em que realmente queria me educar sobre o passado e o presente do mundo em que vivia. No entanto, enquanto estava na sala de literatura folheando livro após livro, eu não conseguia compreender o que lia. Eu disse ao Eddy que me sentia imbecil.
“Não se preocupe”, ele me confortou. “Esses livros você vai ler mais tarde. Primeiro você precisa entender os eventos e as pessoas de quem eles estão falando. É como uma fundação. Finja que está construindo uma parede de tijolos – um tijolo de cada vez.”
“Eddy,” eu suspirei, “eu realmente quero aprender. Mas eu sou muito ruim em História. Eu nem sei como começar.”
Eddy se ofereceu para me ajudar a estudar, então aceitei. Mas ele não me iniciou em uma dieta de História. Ele colocou quatro moedas no caixa para leituras e me entregou um panfleto sobre uma luta antirracista em uma fábrica que eu conhecia muito bem: “Venha jantar lá em casa depois de ler”, ele ofereceu, “e vamos conversar.” Eddy acenou com a cabeça em direção aos livros. “Algumas das respostas que você está procurando estão aí. Mas sempre que alguém tem a coragem de falar sobre uma opressão que não foi discutida antes, faz-se uma nova contribuição. Tenho a sensação de que você também fará.”
Passei horas e horas empolgantes conversando com Eddy sobre política. Antes de me emprestar cada livro, ele falava comigo sobre ele. Depois que eu lia, sentávamos e discutíamos as ideias. Comecei a estudar ciência política ferozmente. Eu pensava que os marxistas eram todos homens brancos. Eddy me apresentou os importantes escritos de Che Guevara, Nkrumah, Mao Zedong, Ho Chi Minh e Rosa Luxemburgo. Li insaciavelmente e logo me senti confiante o suficiente para participar de aulas semanais do WWP, muitas delas lideradas por mulheres. Rapidamente aprendi que a prova real da compreensão de uma ideia complexa era a clareza com que você podia enunciá-la.
Como muitas gerações de judeus da classe trabalhadora antes de mim, descobri que o marxismo era uma ciência valiosa, não uma religião. Na verdade, comecei a ver o anticomunismo que tinha sido incutido em mim desde a infância como uma ideologia irrefletida de seita.
De repente, a História não parecia nada chata. Comecei a ver os períodos – ou estágios – da História. Aprendi que a sociedade humana passou por um desenvolvimento contínuo e se transformou muitas vezes ao longo dos séculos.
Um fato abalou meu pensamento: todos os nossos primeiros ancestrais viviam em sociedades comunais baseadas em cooperação e compartilhamento. Eu sabia que muitos povos nativos neste continente ainda viviam comunalmente, mesmo depois do colonialismo invadir o litoral. Mas eu não sabia que isso era verdade ao redor de todo o planeta.
Cooperação em grupo exigia respeito pelas contribuições e percepções de cada um dos indivíduos. As sociedades comunais não eram divididas entre os que têm e os que não têm. Não havia nenhum grupo pequeno com poder sobre os outros através da propriedade privada das ferramentas necessárias para sustentar a vida. Portanto, a terra, o céu e as águas não eram vistos como propriedades que podiam ser compradas ou vendidas. A palavra comunista deriva de comunal.
Eu ouvi a visão cínica de que a intolerância e a ganância eram produtos de uma natureza humana imperfeita durante toda a minha vida. Mas “não roubarás” teria sido uma ordem confusa para pessoas que viviam em sociedades onde ou todos comiam ou todos passavam fome, já que sua sobrevivência dependia do trabalho em equipe. Percebi que a natureza humana mudou junto com a organização da sociedade.
Embora eu não esperasse encontrar minhas autodefinições modernas ou consciência espelhadas nos sistemas econômicos de nossos ancestrais primitivos, eu me perguntava se alguma forma de transgênero existia no comunalismo inicial. Comecei a examinar as raízes da opressão contra as mulheres. Eu estudei a obra clássica de Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. (4) Então foquei em um panfleto de Dorothy Ballan, uma das mulheres fundadoras da minha organização, intitulado Feminismo e marxismo. (5) Li tudo o que pude encontrar escrito por feministas socialistas no movimento de libertação das mulheres que pesquisaram a origem material da opressão sexual.
Me surpreendi com o que descobri. Nessas antigas sociedades comunais, a descendência de sangue – a base da atual herança paterna – era traçada através das mães. As mulheres gozavam de igualdade e respeito por seus papéis vitais tanto na produção quanto na reprodução coletiva. As mulheres eram chefes das gens, que eram grupos de parentesco que pouco se assemelhavam à família nuclear patriarcal de hoje. Como a descendência sanguínea era traçada através das mães, as mulheres chefiavam essas unidades econômicas estendidas.
Um homem morava com a família de sua mãe. Se ele se casasse com uma mulher, ele deixava a unidade econômica de sua mãe e passava a fazer parte da gens de sua esposa. Lá ele era cercado por todos os parentes dela em sua casa. E se a mulher quisesse um “divórcio”, ela simplesmente pedia que ele arrumasse seus pertences pessoais e fosse embora. Ele então teria que voltar para a casa de sua própria mãe, com todos os parentes dela. Como um homem bateria ou abusaria de uma parceira nessas sociedades? Onde estava o poder material para a dominação masculina?
No entanto, a base material para a opressão contra mulheres é precisamente o que os “pais” da classe dominante de hoje não querem aberta ao escrutínio. Eles procuram moldar a história à sua própria imagem. Ao ouvir os fanáticos da bíblia, você pensaria que a família nuclear, chefiada por homens, sempre existiu. Mas o que descobri foi que a existência de sociedades matrilineares em todos os continentes foi abundantemente documentada. Até o século XV, a grande maioria da população mundial vivia em sociedades comunais e matrilineares. Isso foi verdade por toda a África, em grande parte da Ásia, nas ilhas do Pacífico, na Austrália e nas Américas. Se toda a história humana fosse reduzida à escala de um ano, mais de 360 dias de tempo histórico pertenceriam a sociedades cooperativas e matrilineares.
A compreensão mais profunda das raízes da opressão das mulheres teve um grande significado para mim, principalmente por causa de minhas experiências crescendo como uma menina em uma sociedade misógina. Mas minha opressão não se baseava apenas em ser “mulher”. Haveria uma base material para a opressão transgênero? Certamente mulheres e homens transsexuais, ou pessoas como eu, que expressam seu gênero de forma diferente, não somos meros produtos de um sistema capitalista hiper-tecnológico em declínio. Voltei então a uma das minhas perguntas originais: Nós sempre existimos?
Nunca me senti tão longe de uma resposta. Felizmente, sentimentos não são fatos.
Enquanto isso, a crise econômica de 1973 estava causando estragos em minha vida. Eu não conseguia encontrar trabalho em nenhum lugar. Mesmo as agências de empregos temporários não tinham vagas – pelo menos não para um ele-ela como eu. Tomei a decisão de me mudar para Nova Iorque. Já que era onde ficava a sede nacional do partido. Eu sabia que receberia ajuda para encontrar um apartamento e um emprego, e estava ansiando para me tornar jornalista do jornal Workers World.(6)
Na minha chorosa despedida dos amigos do núcleo de Buffalo, perguntei a vários deles: “Vocês acham que algum dia vou encontrar as respostas que procuro?” Cada um deles me garantiu que sim. Como presente de despedida, Jeanette e Eddy me deram um de seus velhos volumes dos escritos de Lenin. Eles escreveram: “Para Les, com grandes expectativas”. Esse presente precioso está ao meu lado na minha estante enquanto escrevo estas páginas. Mas, na época, eu temia que suas expectativas fossem irrealistas.
Leslie Feinberg, por volta de 1973
Outras informações:
Pronomes: Leslie Feinberg utilizava pronomes variados para referir-se a si, em geral pronomes femininos ou neopronomes. Na tradução, optei por omitir a marcação de gênero sempre que possível e usar o feminino ou neutro quando conveniente.
Leia também: Rainbow Solidarity in Defense of Cuba [Solidariedade Arco-Íris em Defesa de Cuba] de 2009. Livro que é decisivo para todos que desejam debater a questão LGBT+ em Cuba.
Notas:
(1) N.T.: “passar” aqui se refere a passabilidade: “passar” como um homem é ser percebido como um homem cisgênero (homem que não é trans).
(2) BOYER, Richard O.; MORAIS, Herbert M. Labor’s Untold Story. Nova Iorque, United Electrical, Radio & Machine Workers of America, 1955, p. 189-91.
(3) Quando solicitado a descrever o Partido Mundial dos Trabalhadores (WWP), Deirdre Griswold, liderança do partido e editor chefe do jornal, escreveu: “Os trabalhadores vêm em todos os tamanhos, cores, formas e gêneros. Infelizmente, existem visões estereotipadas de como é um partido da classe trabalhadora – a maioria delas fomentadas pela propaganda anticomunista da direita. Desafiando estereótipos, o WWP usa os métodos do socialismo científico para traçar um curso no mundo moderno em direção a uma sociedade livre de opressão de classe, de origem nacional, de sexo e de gênero. O WWP acredita fortemente na militância inspirada por uma visão marxista da história. A humanidade pode resolver os conflitos mortais de hoje, acredita o WWP, mas só através da revolução socialista mundial e da construção de uma sociedade onde a riqueza produzida pelos trabalhadores é compartilhada por todos.” Para mais informações, telefone para 212-627-2994, mande fax 212-675-7869, ou telex 6503925801.
(4) ENGELS, Frederick. The Origin of the Family, Private Property and the State. ed. Eleanor Burke Leacock. Nova Iorque, International Publishers, 1972.
(5) BALLAN, Dorothy. Feminism and Marxism. Nova Iorque, World View Publishers, 1971.
(6) Workers World weekly newspaper, 55 West 17 Street, New York, NY 10011; Internet: [email protected]. Mencione Transgender Warriors para uma inscrição de um ano por $10 – metade do preço de banca. Artigos selecionados estão disponíveis na internet. Contate [email protected].