Por Alexandre Pimenta
Luxúria (2015), o último romance do escritor brasileiro Fernando Bonassi, é rico em elementos para pensar a conjuntura nacional. A trágica história de um operário e sua família, baseada “em pessoas e acontecimentos reais, lamentavelmente”, tenta sintetizar nosso último momento histórico “de prosperidade num país acostumado a viver na merda”. Por ironia do destino, o lançamento do livro marcou o ínicio do fim dessa fase – e o um rápido retorno às origens, quer seja, a merda.
A ascendente família operária do livro é um exemplo de um país que se acha, de repente, de/na dita classe média. E como tal, vive uma obsessiva busca e reafirmação de distinção e status via consumo. O carro próprio. O jantar fora. A moradia em um condomínio, o Bairro Novo, que já não é mais o antigo bairro operário ou os aglomerados de barracões das classes populares de outrora… Sem falar no objeto central narrativa: a piscina comprada via financiamento! Esta surge como promessa de felicidade, de ascensão social definitiva, de garantia do vínculo familiar, uma prova de que o protagonista é de fato “especial”.
O operário em questão não é apenas um operário comum, e nem ele se sente enquanto tal. Ele é plus. E se tornará mais após a piscina. Trabalha num setor da fábrica com ar-condicionado. É especializado. Não precisa de seus colegas, e referência de sindicato só tem ao visitar seu velho no asilo de metalúrgicos – aqueles que se insurgiram na história e agora apodrecem nas margens dessa sociedade, junto com seus ideais. Sua potência viril (de demarcação de território pelo consumo) é encenada em atos sexuais com sua esposa: o momento nacional é de puro prazer, afinal.
Mas há algo que não se encaixa, como o amargor na boca e o desconforto físico que toma de assalto o operário de vez em quando. A simulação dessa forma de vida, de aparentar ser sempre mais, apresenta falhas viscerais. O carro próprio, na prática, serve basicamente para se irritar e se engarrafar junto aos outros rivais em rodas, enquanto se intoxica com o ar de uma cidade “que tenta multiplicar o mesmo espaço sem sair do lugar”. O condomínio nada mais é que uma armadilha, longe do trabalho e cuja prometida privacidade é vigiada, solitária e hostil. A piscina da revista não cabe na realidade, por ser além das medidas e do orçamento – e fica lá a eterna construção a anunciar o fracasso reconhecido e sofrido enquanto individual. “Aqui tudo é construção e já é ruína”, já dizia Caetano. O “eu sou especial” que o operário vive falando possui um peso cruel, e sobre essa fala se ergue a tragédia.
Ao longo dos rápidos e fragmentados capítulos do autor, a angústia e a frustração vão crescendo. O operário e sua família entram numa espiral sem fim (aliás, com um fim mortal). Mas já não estamos na época de Chico e sua Construção, quando a morte do operário pelo menos atrapalhava o tráfego. Aqui ela se torna espetáculo midiático e acelera a circulação de imagens e mercadorias. O rei se revela menos que um servo. O pecado capital que intitula o livro representa bem a saga consumista desse sujeito pelo excesso que se encerra na desgraça; nessa seara onde não há bordas, nem lastro, como o capital fictício que reorganiza esse mundo que vemos.
A família em questão é marcada por uma forte incomunicabilidade. O pai usa do não-dizer do sexo e das compras para falar algo de si para a esposa. A esposa se afunda em seus antidepressivos para desaparecer e já não ter que assumir o que quer dizer. O filho, agredido na escola, fala com seus hematomas; o cão, com seus latidos (o único com nome!). Os contatos com os agentes extrafamiliares são meramente contratuais: com a empregada doméstica, o dentista, o patrão, os serventes de obra, a atendente comercial, o pastor. Chegamos ao limite de perguntar se ainda há algo a dizer, tamanha situação absurda. Talvez por isso o linguajar chulo das personagens e sua coleção de xingamentos.
A imagem propagada pelos últimos governos de um povo em movimento se revela enquanto seu oposto: um povo paralisado, como num engarrafamento; atolado e sem projeto, como numa fracassada construção de piscina. O ao redor que se movimenta, sempre para o mesmo lugar horroroso e sem esperança, e parece sugar a todos sem motivo. “A dívida cresce mesmo quando a gente não se mexe…”. Paradoxalmente, a tragédia brasileira que Bonassi narra se faz num tempo e espaço marcados pelo vazio, até mesmo de uma experiência trágica de fato[i].
Através do livro, Bonassi usa toda sua ferocidade e acidez para atacar a tese petista máxima colocada em prática (e cuja morte já está anunciada): “a classe operária quer ser classe média”. Sua crítica ao projeto da dita “cidadania via consumo” aponta para uma crítica à falta de perspectiva política autônoma da classe trabalhadora e seu trágico ponto de chegada.
Não ascendemos, afundamos. O novo-neo-(social)desenvolvimentismo era só o velho capitalismo brasileiro. A história não perdoa ingenuidade ou ilusões. Estas estão sendo cobradas com juros (a taxas brasileiras!).
E afundaremos mais, sem dúvida, e sem tantos adornos ou distrações. Será que isso é ruim? O pessimismo, grandeza e fraqueza de Bonassi, não vê saída diante da experiência trágica e só consegue lamentar o beco sem saída – isso fica mais claro em suas entrevistas sobre o livro. Mas podemos dizer, com Marx (que está no livro, seja na epígrafe, seja no relógio da fábrica andando para trás): talvez voltar à dita velha condição operária seja a oportunidade de realizar uma novidade e transformação de fato. Ou: “A situação desesperadora da época na qual vivo me enche de esperanças.”[ii].
[i] Safale, ao comentar o filme Revolutionary Road na palestra “Afeto, Psicanálise e Política”, fala da rotina do “sonho americano” como o trágico no anti-trágico.
[ii] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540154-enfim-o-desespero