Por Alain Badiou, via Regards, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
Esta é a tradução de uma entrevista do filósofo francês Alain Badiou realizada em função do lançamento de seu livro “Metaphisique du Bonheur Reel” (editora PUF, 2015), em que realiza uma análise acerca da concepção atual de felicidade. Para ele, a felicidade estaria em nossos tempos, na ideologia dominante, ligada à ideia de conforto e segurança, da não assunção de riscos.
Contrapondo-a a uma felicidade da “exceção”, Badiou retoma neste livro o engajamento político que lhe é peculiar, afirmando que é possível uma felicidade diferente, real, como diz, ligada não à realização pessoal, mas ao entusiasmo de trabalhar em função de um evento, de um ruptura na ordem estabelecida, e assim poder dar corpo a uma novidade no mundo.
Regards: Porque é preciso interrogar novamente a categoria da felicidade? E falar de felicidade “real”?
Alain Badiou: A categoria da felicidade, para dizer a verdade tal como nós a usamos hoje, é uma categoria largamente banalizada como aquilo que eu chamaria de satisfação. Isso quer dizer uma figura de felicidade que, no fundo, consiste em se perguntar como preservar um lugar designado, um lugar no mundo tal como ele é. É por causa disso que eu acentuo a palavra “real” (a felicidade real), por relação a uma felicidade que me parece imaginária; uma felicidade que não comporta, tanto quanto for possível, nenhuma aventura, e sobretudo nenhum risco. Eu acredito que a concepção moderna de felicidade é, no fundo, de não tomar riscos, uma felicidade acompanhada de uma segurança. A palavra de ordem desse novo marketing da felicidade é “harmonia”: uma relação harmoniosa com o mundo, seus amigos, seu casal, etc. O ideal da felicidade, aqui, é um pouco o que eu chamei, outra vez, a “paz das famílias”. Quando no entanto cada um sabe bem que o casal é, ao contrário, uma aventura difícil e perigosa. No fundo, a felicidade se reduz a ocupar um lugar instituído: um trabalho que lhe agrada, um cônjuge agradável, crianças. Nós não saberíamos, certamente, desejar a quem quer que seja conhecer a experiência do desemprego. Isso seria perfeitamente idiota. Somente, e esse é o ponto estratégico, se a filosofia deve entrar em cena, nós podemos reduzir a felicidade à satisfação?
Regards: É um gesto clássico na filosofia. Em que ele traz qualquer coisa de novo?
Alain Badiou: Eu refaço lá um gesto, é verdade, clássico, que afirma a existência de uma ligação entre filosofia e felicidade. É uma tese evidentemente presente desde as sabedorias antigas, como Platão e os estóicos. Mas aquilo que nos devemos reter, aquilo que resta intempestivo nesse gesto, é a ideia de que a filosofia vem perturbar, deslocar a concepção espontânea, isso quer dizer na verdade a socialmente dominante, de felicidade, uma vez dito que a espontaneidade é largamente codificada, e aquilo que é espontâneo, é aquilo que a sociedade nos faz ter por evidente. É mesmo porque a filosofia, desde que ela faça da felicidade um problema, entra em conflito com a felicidade dominante. Tal como ela era estruturada pelos sofistas na época de Platão. Tal como ela é, hoje, pelas revistas e manuais de psicologia. Isso que faz com que ela seja discutida, disputada pela filosofia, é que ela é um problema compartilhado, diferentemente de muitos outros problemas filosóficos. De fato, se você coloca questões como “O que é do ser enquanto ser?” “Existe uma verdade matemática?”, você não discutirá, no geral, a não ser com seus colegas. Não que eu despreze sua história, sua necessidade teórica, ao contrário: elas constituem mesmo um arsenal e uma armadura teórica indispensável para abordar as questões de ordem mais geral. Mas a filosofia não saberia ficar ali; é-lhe preciso afrontar os problemas comumente compartilhados que são o amor, a felicidade, etc. A filosofia deve, no fim dos fins, preocupar-se com questões que revelam as aspirações gerais, sem o que ela permanece uma disciplina acadêmica, que discute, entre colegas, os problemas inscritos dentro do espaço da filosofia. É que a filosofia se constitui como uma linha de fronte. Em conflito com as ideias dominantes.
Regards: Porque recorrer, para definir a felicidade, à categoria de exceção?
Alain Badiou: Desde que você entre em um exame firme da concepção de felicidade, você vai certamente entrar também na questão de seu estatuto de exceção. Como é que a felicidade real, aquela que não se reduz às satisfações ordinárias, não seja a lei geral da existência, mas seja constituída pelas escolhas, pelos momentos, que a inscrevem em estatuto de exceção? No fundo, a consciência comum, mesmo se ela se mascare ou se oculte, compartilha essa concepção, bastante difundida, da raridade da felicidade. De onde, me parece, de extrema importância, que eu não hesitaria de chamar de lírica, do amor nessa questão. O amor, a paixão, o encontro, são concebidos como os momentos excepcionais da existência, e cada um sabe bem que são esses momentos que fazem sinal daquilo que nós chamamos, verdadeiramente, de felicidade. É evidentemente desejável não ser infeliz. Mas é preciso muito para que fosse possível declarar que não ser infeliz é a felicidade real. A felicidade não saberia ser uma simples negação da infelicidade, é um presente, um dom da vida que excede a ordem da satisfação. É uma escolha existencial importante: ou bem uma vida aberta somente à satisfação, ou bem uma vida aceitando o risco da felicidade, aqui compreendida como exceção. É também uma questão política: ou bem as pessoas que não concordam a não ser em recusar a infelicidade (é a tese conservadora daqueles que nós chamaríamos de “novos filósofos”), ou bem as pessoas que se arriscam a querer a felicidade. Segundo essa tese conservadora, a concordância das pessoas não saberia ser feita senão contra a infelicidade, e não em vista da felicidade. Saint-Just declarou, ao contrário, de maneira realmente revolucionária, que a felicidade era uma ideia nova na Europa.
Regards: É por isso que você liga, a maneira de Benjamin, a ideia de felicidade a de um outro tempo?
Alain Badiou: Benjamim propõe uma concepção fibrosa do tempo, segundo a qual existem vários tempos: não há tempo único, comum, existem temporalidades emaranhadas, às vezes mesmo contraditórias. E é evidente que o tempo da felicidade, aqui incluída a política, é um tempo que excede, e em um sentido destrói a temporalidade ordinária. O século XX (com Bergson, a teoria da relatividade), foi, filosoficamente, um momento de exploração da multiplicidade temporal. É neste quadro que tem lugar a questão da felicidade. O tempo próprio das verdades, quer elas sejam matemáticas, artísticas, políticas ou amorosas, o tempo da subjetivação feliz, é o tempo das consequências do evento, daquilo que não é situável no curso do tempo ordinário; e é necessariamente um tempo de corte, de ruptura, de tempo de exceção. Aceitar as consequências desta exceção temporal significa tecer um tempo diferente. Isso é o que o senso comum quer dizer no fundo, quando ele declara que os apaixonados estão sozinhos no mundo. Sozinhos no mundo, isso quer dizer sozinhos no tempo que constitui esse casal, o qual não compartilha, ou não compartilha mais, o tempo ordinário. É uma característica geral da felicidade real; isso seria verdade, igualmente, de um matemático que resolve um problema em sua solidão. Como se constitui, nessas condições, uma felicidade coletiva? Se o entusiasmo é o afeto que corresponde à felicidade política, é que ele designa o compartilhamento de um novo tempo. O entusiasmo nomeia o momento onde os indivíduos subjetivam que eles podem fazer história, que a história lhes pertence e, que, como o declara Françoise Proust, ela não esta acabada. É o compartilhamento de uma intensidade, de uma manifestação – como nós o vimos sobre as praças públicas árabes – mas também a manutenção de um estado de exceção, no labor que constitui isso que nós chamamos propriamente de ativismo político (as reuniões intermináveis, os folhetos redigidos na madrugada). A felicidade política, é preciso dizer, eu posso testemunha-lo, se esgota também. É por isso ela tende igualmente, infelizmente, a produzir os revolucionários em tempo completo, às vezes mesmo quadros profissionais…
Regards: No entanto você mesmo escreve que esse trabalho, essa prática organizacional requer uma disciplina….
Alain Baidou: É preciso nós colocarmos de acordo. Eu evidentemente utilizo essa palavra por provocação. Da mesma forma que eu utilizo a palavra “comunismo” porque ela é a palavra mais detestada do léxico político contemporâneo. Eu entendo que nós procuremos resguardar a força evental da política. Mas me parece que a construção de uma política rígida requer uma disciplina de exceção, uma continuidade temporal para a qual a energia dada pela ruptura política não pode bastar. Por consequência é preciso substitui-la pelas invenções que supõe uma criação, criação que obedece a uma disciplina. Se você quiser, é preciso entender a palavra disciplina no sentido em que o pintor, na experimentação, na criação, impõe a si mesmo uma disciplina mesmo em sua solidão. Tal como um matemático se impõe uma disciplina implacável na resolução de um problema. Desde que você se situe na exceção, você será necessariamente levado a criar suas próprias regras, suas próprias disciplina, e é nesse sentido que a disciplina é indiscernível da liberdade. Esta disciplina é a inventar cada vez.
Regards: Porque você utiliza , da mesma forma, a palavra e o conceito de “fidelidade”? Não é um conceito mais ético que político?
Alain Badiou: A palavra fidelidade tem uma significação negativa: não trair. Para mim a fidelidade não é definível pela não-traição, por sua negação. Ser fiel a um evento – a fidelidade sempre é a fidelidade a uma ruptura inaugural, e não a um dogma, uma doutrina ou linha política -, é inventar ou propor qualquer coisa de novo que faça, por assim dizer, vir novamente a força de ruptura do evento. É tudo salvo um princípio de conservação; é um princípio de movimento. A fidelidade designa a criação contínua da ruptura ela mesma. A fidelidade conservadora consiste, ao contrário, em declarar que alguém deve ser considerado como um inimigo, deve ser excluído, senão mesmo eliminado em função de sua não-conformidade no sentido do evento inicial. Somente essa conformidade supõe que compartilhamos, na fidelidade, uma espécie de objetividade no sentido do evento, neutro e indiferente ao engajamento subjetivo que requer a fidelidade a um evento. Nesse sentido a fidelidade é um conceito mais lógico que ético: ser lógico ou coerente com um engajamento inicial, mas que passa por uma discussão coletiva entre pessoas que consideram umas as outras como amigos em política. Isso não é muito diferente, nesse sentido, da comunidade de matemáticos que possuem um problema compartilhado, mas igualmente possuem os procedimentos que permitem definir e discernir o verdadeiro do falso. A essência da política não é um afrontamento com os inimigos senão sobre a condição, preliminar, do acordo entre amigos. A fidelidade significa que aqueles que entram nesta discussão comum tem por dever considerar que se há uma contradição entre eles, essa contradição não deve em nenhum caso ser identificada com a contradição com os inimigos.
Regards: Isso é a origem daquilo que em política, nós chamamos de terror?
Alain Badiou: A identificação de toda contradição a contradição antagônica, à contradição de classe, com o inimigo de classe, é sempre uma catástrofe. O mal terrorista próprio ao século XIX [1] é de ter considerado que não havia senão uma só contradição, a contradição de classe. É preciso ao contrário, lembrar constantemente que a discussão deve durar o tempo que for preciso, para que nós compreendamos que uma contradição política é sempre interna a um coletivo, e deve ser resolvida entre amigos. A impaciência, em política, é, desse ponto de vista, nefasta. O terror próprio ao comunismo do século XX tem menos das pessoas elas mesmas (um suposto caráter cruel) do que uma confusão, bastante antinômica com a felicidade, de impaciência e de prudência, de desconfiança extrema. É suficiente pensar em Stalin empenhado com uma violência extrema na coletivização das terras, e vendo, ao mesmo tempo, os inimigos por toda parte…. É preciso, ao contrário, na ordem da política como em outras, saber ser confiante e paciente – saber dar sua chance à paciência e ao tempo.
[1] Alain Badiou volta mas precisamente sobre esta questão em À la recherche du réel perdu (Fayard, 5 euros), onde se interroga sobre o emprego reacionário da palavra real, e dá igualmente uma bela leitura do poema de Pasolini, As cinzas de Gramsci.
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