Slavoj Žižek: “O século XXI será o de Hegel”

Por Slavoj Žižek, via Mariborchan, traduzido por Daniel Alves Teixeira.

O derradeiro argumento anti-helegiano é o próprio fato da ruptura pós-helegiana: o que até o mais fanático partidário de Hegel não pode negar é que algo mudou depois de Hegel, que uma nova era do pensamento que começou já não pode ser explicada nos termos da medição conceitual absoluta. Essa ruptura ocorre em diferentes formas, da afirmação de Schelling sobre o abismo da vontade pré-lógica (vulgarizada mais tarde por Schopenhaeur) e a insistência de Kierkegaard na singularidade da fé e da subjetividade, através da afirmação de Marx do efetivo processo de vida socioeconômico e a total automatização das ciências naturais matematizadas, até o tema freudiano da “pulsão de morte” como uma repetição que persiste além de toda mediação dialética. Algo aconteceu aqui; existe uma clara ruptura entre o antes e o depois. E enquanto alguém pode argumentar que Hegel já anuncia essa quebra, que ele é o último dos metafísicos idealistas e o primeiro dos historicistas pós-metafísicos, não se pode ser realmente um hegeliano após essa ruptura. O hegelianismo perdeu sua inocência para sempre. Agir inteiramente como hegeliano hoje é o mesmo que escrever música tonal depois da revolução de Schönberg.

A estratégia hegeliana predominante que está emergindo como reação para essa imagem de espantalho de Hegel como o idealista do Absoluto é a “esvaziada” imagem de Hegel livre de compromissos ontológicos-metafísicos, reduzido em uma teoria geral dos discursos, de possibilidades de argumentação. Essa aproximação é mais bem exemplificada pelos assim chamados hegelianos de Pittsburgh (Brandom, Mcdowell): não admira que Habermas elogie Brandom, uma vez que Habermas também evita abordar diretamente a “grande” questão ontológica (os seres humanos são realmente uma subespécie de animais? O darwinismo é verdadeiro?), a questão Deus ou Natureza, idealismo ou materialismo. Seria fácil provar que o neo-kantismo de Habermas que evita o comprometimento ontológico é em si necessariamente ambíguo: embora os neo-kantianos tratem o naturalismo como um segredo obsceno que não deve ser publicamente admitido (“é claro que o homem se desenvolveu da natureza, é claro que Darwin estava certo”), esse segredo obscuro é uma mentira; ele cobre a forma idealista do pensamento, o a priori transcendentalismo da comunicação que não pode ser deduzido do ser natural. A verdade aqui está na forma: como no velho exemplo de Marx sobre os monarquistas na forma republicana, o habermasianos secretamente pensam que eles são realmente materialistas, enquanto a verdade está na forma idealista de seu pensamento.

Tal imagem esvaziada de Hegel não é suficiente. Deve-se aproximar da ruptura pós-hegeliana em termos mais diretos. É verdade, existe uma ruptura, mas nesta ruptura Hegel é o “mediador evanescente” entre esse “antes” e esse “depois”, entre o pensamento metafísico e a pós-metafísica dos séculos 19 e 20. Isso é dizer, algo aconteceu em Hegel, uma ruptura em direção a uma dimensão única do pensamento, a qual é obliterada, tornada invisível em sua verdadeira dimensão, pelo pensamento pós-metafísico. Essa obliteração deixa um espaço aberto, que teve de ser preenchido, de modo que a continuidade do desenvolvimento da filosofia pôde ser reestabelecida. Preenchida com o que? O indicador desta obliteração é a ridícula imagem de Hegel como o absurdo “idealista absoluto” que “pretendia saber tudo”, possuir o Saber Absoluto, ler a mente de Deus, deduzir toda a realidade do auto-movimento da (sua) mente – imagem que é um caso exemplar do que Freud chamou Deck-Erinnerung (lembrança encobridora), uma formação fantasistíca destinada a cobrir uma verdade traumática. Nesse sentido, a virada pós-hegeliana para a “realidade concreta, irredutível a mediação conceitual” deve antes ser lida como a vingança póstuma da metafísica, como uma tentativa de reinstalar a metafísica, embora na forma invertida da primazia da realidade concreta.

Em que, então, reside a singularidade de Hegel? O pensamento de Hegel representa o momento da passagem entre filosofia e discurso do mestre, a filosofia do Um que totaliza as multiplicidades e a antifilosofia, que assevera o Real que escapa ao alcance do Um. De um lado, ele claramente quebra com a lógica metafísica do contar-por-Um: de outro lado, ele não permite qualquer excesso exterior ao campo das representações conceituais. Para Hegel, a totalização-em-Um sempre falha, o Um está sempre já em excesso com relação a si mesmo, ele é em si mesmo a subversão daquilo que pretende alcançar; e é essa tensão interna ao Um, essa Dualidade, que torna o Um Um e simultaneamente o desloca, é essa tensão que é o movimento do “processo dialético”. Em outras palavras, Hegel efetivamente nega que não exista nenhum real externo à rede de representações conceituais (pelo que ele é regularmente mal interpretado como um “idealista absoluto” no sentido do círculo auto-encerrado da totalidade do conceito). Contudo, o Real não desaparece aqui no jogo global auto-relativo das representações simbólicas; ele retorna em uma vingança como a lacuna imanente, o obstáculo, em função da qual as representações não podem nunca totalizar elas mesmas, em função da qual elas são “não-Toda”.

Não há, entretanto, um grão de verdade na reprovação mais elementar que se faz a Hegel? Hegel efetivamente não pressupõe que, por mais contingente e aberta que a história possa ser, uma estória consistente não pode ser contada depois? Ou, para colocar em termos lacanianos: o edifício inteiro da historiografia hegeliana não é baseada na premissa que não importa quão confusos sejam os eventos, um sujeito suposto saber irá emergir no final, magicamente transformando não-sentido em sentido, o caos em uma nova ordem? E não é verdade que, se existe uma lição do século 20, é que que todos fenômenos extremos que ocorreram nesse período não podem nunca ser unificados em uma única e abrangente narrativa filosófica? Não se pode simplesmente escrever uma fenomenologia do Espírito do Século XX, unindo progresso tecnológico, a ascensão da democracia, a falha da tentativa comunista com sua catástrofe stalinista, os horrores do fascismo, e o fim gradual do colonialismo.

Mas porque não? Realmente é assim? E se, precisamente, pode-se e dever-se-ia escrever uma história hegeliana do século XX, essa “era do extremos” (como Eric Hobsbawn a chama), como uma narrativa global delimitada por duas constelações de época: o (relativamente) longo e pacífico período de expansão capitalista de 1848 a 1914 como seu ponto de partida substancial cujos antagonismos subterrâneos explodiram com a Primeira Guerra Mundial e a “Nova Ordem Mundial” em andamento emergindo depois de 1990 como sua conclusão, o retorno  para uma novo todo-abrangente sistema sinalizando para algum tipo de “fim da história” hegeliana, mas cujos antagonismos já anunciam novas explosões? Não são as grandes reversões e inesperadas explosões do confuso século XX, suas numerosas “coincidências de opostos” – por exemplo, a reversão da Revolução de Outubro no pesadelo stalinista – o próprio material privilegiado que parece chamar por uma leitura hegeliana? O que Hegel teria feito da luta de hoje do liberalismo contra a fé fundamentalista? Uma coisa é certa: ele não tomaria simplesmente o lado do liberalismo, mas teria insistido na “mediação” dos opostos.

(E, não vamos esquecer que, para o próprio Hegel, sua reconstrução filosófica da história de maneira alguma pretende “cobrir tudo”, mas antes conscientemente deixa lacunas: o tempo medieval, por exemplo, é para Hegel uma grande regressão – sem dúvidas que, em suas leituras da história da filosofia, ele ordena o pensamento medieval inteiro em algumas páginas, negando categoricamente qualquer grandeza histórica para figuras como Tomás de Aquino. Ele nem mesmo menciona a destruição de grandes civilizações como o extermínio mongol ou do mundo muçulmano (a destruição de Bagdá,etc) no século 13. Não existe “sentido” nessa destruição: a negatividade desencadeada aqui não criou o espaço para uma nova forma de vida histórica.)

É por isso que o tempo de Hegel ainda está à frente – o século XXI será o de Hegel.

 

Extraído do original em inglês: Hegel & the Infinite: Religion, Politics, and Dialectic

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2 comentários em “Slavoj Žižek: “O século XXI será o de Hegel””

  1. Parabéns pelo texto, meu amigo. A tradução ficou ótima e a escolha foi excelente. Talvez, em vez de discutirmos “O capital no século XXI”, seja mais apropriado falarmos em “A fenomenologia do espírito do/no século XXI”, então?

    Abraço

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