O que aconteceu com a Teoria? Humanidades, política e filosofia (1970-2010)

Por Étienne Balibar, via Crisis and Critique,  traduzido por Daniel Fabre.

No presente artigo, o filosofo francês Etienne Balibar aborda os rumos que o trabalho teórico tomou nos últimos anos, problematizando a “crise” das “humanidades” e das ciências sociais e apontando os rumos de uma nova abordagem epistemológica. “Uma teoria que tenta ao mesmo tempo se apoiar nos dois requisitos de cientificidade e engajamento crítico não pode ser apenas a ciência de um objeto, ou de um domínio de objetividade desdobrada entre a generalidade formal das leis causais e a singularidade dos “casos” ou figuras de individualidade, mas precisa também se tornar uma prática de problematização, que ocorre apenas sobre a base de diferenciais de visibilidade e invisibilidade, sujeição e revolta, a normalização e subjetivação inscrita nas situações e relações de força.”


As questões a serem discutidas aqui coincidem com meus primeiros interesses, mas acredito que possa assegurar também que eles tem uma importância objetiva em uma conjuntura que é crítica para as formas de conhecimento reunidas sob o nome “ciências sociais e humanidades” e para as instituições que lhes dão abrigo. É claro, essa relação é circular. Entretanto, o título nos traz cada termo – e especialmente sua conjunção – apresenta um problema. Este é o porque podemos começar considerando as razões alegadas no texto que estava circulando de forma semioficial na universidade como preparação para esta conferencia, e que, eu entendo, fez surgir um certo numero de reações – algumas delas bem vívidas. Escrever o que segue é dizer tanto muito como pouco: “Há muito tempo se acredita que existe uma crise nas ciências sociais e nas humanidades. Depois de 1970, o paradigma marxista ou estruturalista desmoronou diante da realidade do sujeito concreto que ele não pode explicar; e se pensou que outras disciplinas como a economia ou a biologia permitiriam uma melhor compreensão do fato humano nestas duas dimensões da generalidade e da singularidade…” Tudo nessa passagem apresenta um problema: o singular de cada termo, os diferentes usos de “ou” (inclusivo? exclusivo?), a comparação de “paradigma” e “disciplina”, que poderia sugerir uma forte mas arriscada tese epistemológica: as disciplinas entre as quais “distribuímos” o que algumas vezes chamamos de “as humanidades”, algumas vezes “ciências sociais”, são de fato nada mais que explicativas, hermenêuticas ou “paradigmas” pragmáticos, ou de que todo o resto é sustentado por tais paradigmas. Tanto que quando o último desfalece, a própria disciplina pode ser convocada por meio de uma questão. Testemunhe a história da psicologia experimental, sociologia e antropologia nos períodos coloniais e pós-coloniais… Mas também é possível que a finalidade de um autentico paradigma reflexivo é precisamente questionar a legitimidade das leis estabelecidas e programas de pesquisa acadêmica. Isto é o que o marxismo e a psicanálise quiseram mais ou menos fazer, particularmente em seu “encontro” com a ideia estruturalista que marcou a ultima metade de século (porque a psicanálise se abstém disso agora, enquanto os debates sobre sua matéria estão experienciando nesse momento uma nova fase?).

Em 1995, o ano de minha chegada a Nanterre, participei de duas conferências que duraram todo o dia da URA – Unité de Recherche Associé, organizadas pela CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique sobre o tema “Normas da Cientificidade e o Objeto das Ciências Sociais”, no qual apresentei um trabalho intitulado “Estruturalismo: Método ou Subversão das Ciências Sociais?”. Neste trabalho desenvolvi a seguinte ideia: apesar de parecer “completa”, a trajetória do estruturalismo permanece a portadora de questões que são importantes para as humanidades, tanto por estender seu campo de conhecimento, como por resistir à liquidação pela qual são ameaçadas hoje em dia de jure e de facto. Para apoiar essa demanda, caracterizei o estruturalismo nem tanto por sua exportação do modelo linguístico, mas por suas tentativas de resolver dilemas herdados da epistemologia do século XIX (reducionismo vs. hermenêutica ou nomologia vs. ideografia) através da constituição do domínio “antropológico” com objetivos autônomos por meio de uma axiomatização das “relações” em que a prática social e suas variações históricas ou transformações dependem. Sobre esta base, eu tentei então demonstrar que o estruturalismo – que não é uma escola unificada de pensamento, mas um movimento contraditório – é uniformemente dividido ao redor do que, seguindo Foucault, poderíamos chamar de “pontos de heresia”. Provisoriamente, identifiquei três pontos: o primeiro, que diz respeito a constituição do sujeito, opõe sua representação como individualidade sobredeterminada à sua representação como falta ou linha de vôo; o segundo, que diz respeito a constituição da objetividade, opõe a ideia de um “corte epistemológico” àquilo de uma “visão distanciada”; o terceiro, que diz respeito a constituição do universal, opõe cognitivismo ao comparativismo, enquanto nos direciona às duas “regulações” da alteridade das culturas. Concluí que o estruturalismo, em uma forma que é igualmente distante tanto do empirismo como da especulação (portanto “crítica”), ignorou a oposição entre filosofia e as disciplinas cientificas (doxa e teoria, de acordo com Milner). Nos necessariamente estreitos limites de minha intervenção neste ano, gostaria de tentar substituir e reviver essas hipóteses para levar em conta uma nova conjuntura.

Faze-lo-ei em dois passos. Primeiro de tudo, retornarei ao significado e à função do termo “teoria”, como foi tratada durante pelo menos uma parte da aventura estruturalista, em particular quando foi sobredeterminada através de sua relação com o marxismo e sobre as razões do porque, mesmo ao custo de profundas revisões, penso que não pode ser feito completamente sem causar danos. Depois, gostaria de examinar (rapidamente) duas questões que hoje me parecem ser estratégicas para a capacidade de intervenção das humanidades na realidade social que tomam dai seus “objetos”, e então para sua eventual renovação disciplinar ao custo de desvio “teorético”: uma que diz respeito ao status da economia como uma ciência social, e a outra que diz respeito às aporias da ideia de “multiculturalismo”, para as quais o simples desenvolvimento dos estudos culturais, como definido atualmente, não parecem ser suficientes. Sem dúvidas não por acidente, veremos que a superimposição dessas duas questões implica em um certo modo de problematizar o fenômeno da violência que acompanha os atuais desenvolvimentos da globalização e que parece requerer a entrada em um regime diferente de “poder-conhecimento”, do que aquele em que as ciências sociais e as humanidades têm trabalhado nos enquadramentos institucionais definidos pelo estado nacional, social, colonial e secularizado.

Deixe-nos começar com algumas reflexões sobre o significado que um referência a “teoria” tem hoje nas disciplinas em que estamos nos debruçando. Sem dúvidas, não escaparemos para uma formulação diferencial ou mesmo oposicional. Mas acredito que isso não é suficiente para tomar novamente as antíteses clássicas entre teoria e prática (ou aplicação) e entre construção teórica e procedimentos indutivos ou empírico-descritivos, os quais não têm uma relação específica com a história das ciências sociais e das humanidades (mesmo se pudermos fazer um esforço para se apropriar delas aqui, o que, em minha visão, diz respeito precisamente a “teoria”). Parece-me que a discussão deve se focar, primeiro de tudo, no status singular dos conceitos em disciplinas “humanas” e “sociais”. Ainda, estes conceitos têm, tanto internamente como externamente, um status “polemico”; e isso é o que também rende muitos problemas de um ponto de vista epistemológico, aumentando a suspeita de que eles são portanto inadequados para a objetividade. Entre as muitas terminologias que poderiam estar a nossa disposição aqui (pois esse caráter foi reconhecido por um grande número de “teoréticos”), proponho reter uma proposta pelo filosofo inglês Walter Bryce Gallie em um famoso, mas já ultrapassado artigo:

“Os conceitos que proponho examinar se relacionam a um numero de atividades humanas organizadas ou semi-organizadas: em termos acadêmicos eles pertencem a estética, a filosofia política, a filosofia da história e a filosofia da religião. Meu principal pensamento em relação a eles é esse. Encontramos grupos de pessoas que discordam sobre o uso adequado dos conceitos (…). Quando examinamos os diferentes usos desses termos e os argumentos característicos em que eles figuram rapidamente vemos que não há um claro uso geral definível de nenhum deles que pode ser eleito como o uso correto ou padrão (…). Agora, uma vez que a variedade de funções é revelada, se pode esperar que as disputas sobre qual conceito deve ser usado terminariam de uma só vez. Mas, de fato isso não acontece (…) cada parte continua a defender seu caso com o que clamam ser argumentos convincentes, evidências e outras formas de justificação.”

Não significa nada que o modo de discursividade descrito então não se caracteriza tal como uma disciplina, provendo um significado para cercá-lo, mas ao contrário define uma transdisciplinariedade, o que poderia ser chamado de “porosidade” das divisões entre disciplinas, que abre as ciências sociais e as humanidades não apenas a teoria política e da história, mas também a filosofia. Por outro lado, poderíamos notar que não é apenas uma questão de característica das disciplinas ou paradigmas (como, por exemplo, podemos dizer que, na perspectiva de Kuhn, todo “paradigma”, cedo ou tarde, terá como destino sua “contestação”) mas também uma modalidade que é característica da própria conceptualização. A sugestão de Gallie, então, é que essa conflituosidade – longe de representar um sinal de fracasso da teoria e em ultimo caso do conhecimento – designa um modo de constituição próprio de certas disciplinas, ou de certos objetos, mas sob uma condição dupla: 1) que a contestação não seja afiliada ao uso partidário, e mutualmente antagônico, de uma teoria preexistente, mas antes que seja verdadeiramente constitutiva de uma “antítese” da razão, ou que retorne do uso para a definição; 2) que a contestação inclua uma dimensão reflexiva, nomeadamente, que leve a determinação do “ponto de vista” (a situação sócio-histórica, mas também o objetivo prático de transformação ou intervenção) a ser inscrito no próprio campo do conhecimento, como uma das condições da possibilidade de seus próprios “julgamentos”.

Essas considerações me parecem corretas, mas elas ainda são um pouco abstratas em relação a tudo o que foi discutido nas décadas recentes. Para dar um passo adiante, proponho agora os usos do termo “teoria” em relação a duas alternativas: de um lado, aquela da ciência e da crítica; e de outro, aquela do objeto e do problema. Além disso, me parece que a primeira inevitavelmente nos leva a segunda. O que chamamos “teoria” (algumas vezes teoricismo) nunca cessa sua oscilação entre um ideal de cientificidade e um ideal de função crítica, pelo que a primeira parece ser privilegiada pelo estruturalismo, enquanto a segunda é sempre atribuída ao marxismo como sendo um traço inerente da ligação que nos propomos a discutir aqui, e da qual deveria ser devidamente contabilizado seu pertencimento a uma conjuntura menos fugaz, em um lugar singular, que deve parecer provincial para nós hoje (mesmo se não puder ser reduzida a “loucura de Nanterre”, onde essa conjunção também não foi muito popular em seu próprio tempo). Mas, o fato de que a teoria ocupa então uma posição instável ou mesmo insustentável, corretamente atesta as relações paradoxais de interdependência entre esses termos. O que está no fundo repetidamente sugerido é que a cientificidade pode avançar apenas pelo meio da crítica, e, reciprocamente, a crítica pode avançar apenas pelo meio da ciência ou pelo menos da conceptualização. Essa unidade de opostos é análoga ao que pode ser observado no campo da física entre a matemática e a experiência, mas que ao mesmo tempo toma o seu lugar. Isso implica que a cientificidade é estabelecida com o objetivo de destacar, em um modo reflexivo, as condições ideológicas de suas próprias questões e consequentemente a historicidade de seus “sujeitos”. Nesse sentido, pode-se ir contra a tese de que “toda ciência é ciência da ideologia”: não a ciência da ideologia dos outros, mas de sua própria ideologia. Reciprocamente, a crítica pressupõe nem tanto uma semântica ou hermenêutica da subjetividade (como uma filosofia da alienação sempre tende mais ou menos ao proposito) como uma pragmática ou uma capacidade de intervenção para a transformação de dadas situações sociais – particularmente situações conflituais – experienciadas como intoleráveis por alguns de seus “sujeitos”. A crítica, dessa forma, toma a forma do que Foucault chama parrhèsia, ou “falar a verdade” em face do poder ou da dominação, mas isso pode ser efetivo somente se estiver de acordo com uma modalidade cognitiva, produzindo um efeito não apenas de “reconhecimento” mutuo, mas também um conhecimento, e assim um distanciamento em relação a experiência, identificando tendências ou relações verificáveis ou descritíveis, revelando determinações igualmente ignoradas pelo dominante e pelo dominado. A este respeito, em 1995 tentei comparar o tema da “visão distanciada” com a questão do “corte epistemológico”.

Então fomos levados ao reverso da situação inicial: a questão não é tanto saber se a “teoria” é tomada como um modelo explicativo, uma construção de um objeto de conhecimento, ou uma manifestação da demanda de emancipação e as forças transformadoras incluídas em uma dada situação; é antes sobre compreender como a natureza “essencialmente contestada” (e assim contestável) de conceitos atesta a posição da teoria no domínio que estamos ocupados: a intersecção de um engajamento crítico e um projeto de conhecimento científico. Também é a condição que inclui uma dimensão que não acidentalmente, mas intrinsecamente autocrítica. Isso pode ser explicado pelo fato de que no campo das ciências sociais e das humanidades a ideia de uma “ciência normal” em um sentido kuhniano significa menos do que no campo das ciências naturais. Podemos nos mover diretamente para a segunda oposição sob consideração: a ciência dos objetos ou a ciência dos problemas. É preciso considerar aqui que o estruturalismo, como bem explicou Milner, em um sentido representado pelo triunfo do ideal clássico de uma “ciência dos objetos”, que vai de Aristóteles à Kant e Husserl (mas também à Bachelard e Lévi-Strauss), construindo a autonomia – de fato, o cercamento semântico – de seu domínio através da definição de um sistema de leis ou relações axiomáticas que poderíamos chamar matèsis. Mas, do inicio, havia no trabalho do estruturalismo uma orientação completamente nova através de Marx, Freud, e finalmente Foucault: o que Lacan chama “ciência conjectural”, Deleuze relaciona a uma relação intrínseca entre crítica e clínica, e Althusser também tentou introduzi-la em sua concepção “teoricista” do marxismo (centrada na correlação entre o sistema de relações e ação reciproca de tendências e contra tendências), estabelecendo como critério de historicidade a “analise concreta das situações” ou a sujeição das atividades do conhecimento às essencialmente imprevisíveis condições de conjuntura. Deixe-nos notar que a ciência não se destina aqui a constituir objetos ou domínios de objetividade, mas antes a identificar problemas (no sentido do que “apresenta um problema” para os autores em uma certa situação, os sujeitos de uma instituição, etc., e então os proíbe de “permanecer no local”, seja um lugar dentro do discurso ou dentro de uma instituição). Uma teoria que tenta ao mesmo tempo se apoiar nos dois requisitos de cientificidade e engajamento crítico não pode ser apenas a ciência de um objeto, ou de um domínio de objetividade desdobrada entre a generalidade formal das leis causais e a singularidade dos “casos” ou figuras de individualidade, mas precisa também se tornar uma prática de problematização, que ocorre apenas sobre a base de diferenciais de visibilidade e invisibilidade, sujeição e revolta, a normalização e subjetivação inscrita nas situações e relações de força. Aqui a pragmática carrega necessariamente a teoria em direção à semântica, pois situações não podem ser definidas a priori, ou simplesmente descritas, mas antes exibem uma característica de eventualidade, urgência e envolvimento (o que Foucault juntou na noção de atualidade). A problematização é o diagnostico da urgência de uma situação. Mas isso pressupõe que ela surge pelo meio da investigação histórica, ou pela interpretação dos discursos e erguendo sua repressão em “condições” que não são tão espontaneamente conhecidas (e em particular não como “partes” existentes em seu acordo institucional). Problematizar não é apenas “tomar uma posição”, é transformar o acordo de posições, é traçar linhas de demarcação, ou a “distribuição do sensível”, como diz Rancière.

Não vamos amalgamar todos os discursos existentes e o campo das humanidades com as relações de cientificidade e crítica (poderíamos até mesmo pensar que toda invenção ou definição de um campo de pesquisa ou de um paradigma disciplinar corresponde precisamente a um modo singular de articulação deles). Mas, nos defenderemos de antíteses superficiais. Por exemplo, em seu recente trabalho De la Critique, que aborda a atual reflexão sobre o status das ciências humanas, Luc Boltanski caracteriza as orientações de uma teoria crítica como uma estratégia de “provocação” com intenção de interromper a continuidade da prática social, realizando tanto um “desvendamento” de suas próprias condições, como uma “exploração” das contradições inerentes a ela, sintomaticamente exibida pela antítese dos discursos e atores. Nesse caso não vejo, em minha opinião, uma incompatibilidade absoluta com o modo que um texto de 1976 dedicado a busca de analogias entre o status do marxismo e da psicanalise (mas basicamente generalizável a um espectro mais amplo do discurso) Althusser propôs um conceito de “ciência conflitual”, sempre já marcada por divisões não apenas em seus desenvolvimentos mas também na própria relação de sua sustentação e seus objetos, que par excellence constituem seu problema. Em ambos os casos, é uma questão de escapar dos dilemas epistemológicos tradicionais que opõe “julgamentos factuais” a “julgamentos de valor”, através do estabelecimento na base das “situações concretas” uma intrínseca dialética do conhecimento e da política, pois cada um desses termos é sempre já presente dentro do outro, mas de acordo com uma modalidade transformável e modificativa.

Na segunda parte de minha apresentação seguirei adiante para examinar, como já anunciei, duas situações estratégicas, sempre um modo programático. A primeira diz respeito ao significado dos debates atuais sobre o uso e a concepção da “teoria econômica” (debates esses que se aplicam particularmente a organização de seu ensinamento). Essa controvérsia, na França assim como nos Estados Unidos, começou pelo questionamento da “neutralidade” (política, epistemológica) do critério de formalização, sob o título de “ciência”, não é mais reconhecido pela “profissão”. Seguindo o inicio da crise financeira de 2008, ela continua questionando a adequação dos modelos econômicos “dominantes” a realidade (cuja contra parte é a suspeita de que esses modelos “irreais” intrinsecamente carregam consigo uma função essencialmente ideológica). Adaptando um modelo crítico proposto há muito tempo por J. T. Desanti, aquele dos “três tipos de problemas” que costumam surgir na história de uma ciência (como atualmente na matemática), poderíamos sugerir que as conflituosidades conceituais em questão são aqui três ordens distintivas e superimpostas, de tal modo que cada nível superior retém o anterior que pareceu a principio ser independente (o que se poderia chamar de ascensão polêmica, justamente como Quine disse da “ascensão semântica).

No primeiro nível, há um questionamento dos paradigmas “dominantes” e a reativação das divisões entre “partidos” ou “orientações disciplinares” que são diretamente atadas aos programas ou a tomada de posições em matéria de economia política (o que faz a economia redescobrir seu nome antigo de “economia política” e não apenas “economia”) Essa controvérsia começa com o confronto entre “neoclássicos” e “neo-keynesianos” em relação a capacidade de auto-regulação pelos mercados financeiros. Continua com o confronto sobre a questão de saber se o funcionamento desses mercados inerentemente especulativos surge da mesma lógica de ajuste entre suprimento e demanda e o retorno periódico ao equilíbrio entre esses dois, que permite modelar a distribuição de bens ou a alocação de capital produtivo. Finalmente, isso diz respeito a univocidade e ou a equivocidade do que entendemos por “mercado”.

No segundo nível, surge outra “contestação essencial” a respeito das noções de equilíbrio, racionalidade dos “agentes” e consequentemente dos mecanismos de regulação. Essa contestação leva certos economistas a reviver questões colocadas por Keynes sobre a situação da incerteza em matéria de desenvolvimento econômico ou de ciclos: relativo ou absoluto, acidental ou intrínseco, endógeno ou exógeno. Para concluir, essa contestação é sobre o postulado fundamental do utilitarismo: aquele sobre a convergência direta ou indireta das atividades econômicas em direção ao bem comum ou à uma alocação optimizada dos fatores econômicos (restringindo obstáculos institucionais ou sociopolíticos). Mas ao mesmo tempo, essa contestação é confrontada com a perspectiva desestabilizadora de uma intrínseca “divergência” da economia financeira, que poderia no melhor dos casos ser limitada temporariamente pelos controles do Estado.

Agora surge o “terceiro tipo” de problema (que Desanti relacionou a necessidade de “romper a aparente estabilidade do núcleo semântico estacionário” do qual a própria definição de um domínio depende): nada é simples aqui, pois, de um lado, vemos formulado o requisito para reintegrar a economia em seu direito ao campo das “ciências sociais” (um requisito que poderíamos chamar de democrático, uma vez que sugere que a economia não pode mais aparecer ao lado das humanidades como se fosse uma disciplina “soberana”, se ela era situada abaixo do “social” em um domínio de condições materiais que são precedentes dos conflitos políticos, ou ela estava além, em um puro espaço formal, tendo de fazer em geral com a logica da ação e sua previsibilidade matemática) Mas, por outro lado, também vemos a tendência da perspectiva da ecologia (já que a ecologia é apresentada simultaneamente em outros domínios, particularmente na antropologia) colocar a questão da ideia de uma autonomia do “social” ou do “humano” em relação a “natureza”. Essa é a questão das externalidades cuja ultrapassagem ou neutralização precisamente ativa a construção de modelos de evolução que forma a priori orientados para o equilíbrio ou regulação. Ainda essas externalidades são de diversos tipos, que não sabemos se é separável ou como podem intervir: tanto o social (por exemplo, o efeito das crises nas desigualdades no padrão de vida e pelas exclusões e seu agravamento), como o meio ambiente (para serem vistos no que talvez seja a maior mudança de paradigma em processo nas “humanidades”: o requestionamento da oposição entre natureza/cultura, ou mesmo – mais restritiva, em minha visão – a revisão da própria ideia de historicidade, que requer a integração dentro do “tempo geológico” de um efeito contrário da atividade humana). Como resultado, a relação entre a história da evolução social e cultural e as transformações dos ecossistemas planetários simultaneamente parecem ser mesmo mais incertas e mesmo mais restritivas: por isso, também, surge imediatamente seu caráter conflitual, não como uma “fase crítica” do conhecimento cientifico mas como uma condição permanente de sua atividade sem um fim previsível. Essas revoluções em curso na concepção de historicidade são totalmente teoréticas, ilustrando o cruzamento de ciência e crítica: elas estão situadas no ponto em que os problemas epistemológicos se encontram em relação com a internalidade ou externalidade das regulações sócio-políticas e a previsibilidade ou imprevisibilidade das tendências que guiam a transformação das sociedades contemporâneas (que obviamente também tem uma dimensão “cultural”)

Somos tentados a confrontar essas hipóteses com aquelas que poderiam ser obtidas de um segundo exemplo sobre o qual devo, por falta de espaço, ser breve. A ideia de “multiculturalismo falhou” foi recentemente trazida ao debate na forma da declaração da Chanceler alemã Angela Merkel – uma declaração que por trás surge a suspeita de manipulação política. Mas por trás desse aparente “problema de opinião” se revela rapidamente um suporte cientifico e crítico fundamental (e assim teorético) sobre a própria noção de cultura: sua “compreensão” e sua “extensão”. Justamente como sempre houve diversos conceitos de “cultura” competindo (cada um tendendo a atribuir às tradições que são “culturalmente diferentes”, que na maioria dos casos significa “nacional”, enquanto – de acordo com a tese de Lenin que era famosa em seu tempo – toda cultura é intrinsecamente dividida em linhas de clivagem que são ortogonais às diferenças nacionais), tanto que no inicio havia diversos conceitos de “multiculturalismo”. É somente através da homonímia que podemos juntar sob o mesmo conceito um “multiculturalismo” como Charles Taylor ou Will Kymlicka, para os quais as culturas são totalidades externas umas as outras, propriedades das comunidades históricas a que se pertencem pela tradição (ocasionalmente pela assimilação), e cuja coexistência pode ser promovida por meios de um pluralismo constitucional, de tal modo que para cada pertencimento comunitário “dele ou dela” permaneça em ultima instância o veiculo de educação e subjetivação; e um “multiculturalismo” como o de Homi Bhabha e Stuart Hall, cujo horizonte ultimo é um incessante processo de interação entre comunidades, levando a ideia de que o que faz sujeitos capazes de individualização e transformação histórica é sua capacidade de transladar e, assim, de desidentificar. Também sabemos que através do tempo as sociedades modernas pós-coloniais não foram bastante receptivas com cada um desses conceitos de multiculturalismo.

A qualquer custo, o fenômeno contemporâneo descrito como o “retorno da religião” ou do “sagrado” irreversivelmente encerra o debate e determina uma crise da ideia de multiculturalismo como uma realização do ideal cosmopolita. Aqui tocamos em uma verdade reprimida das humanidades (incluindo a forma de uma divisão em disciplinas separadas e metodologias, opondo antropologia e historia da religião ou hermenêutica): a incompatibilidade dos objetos é precisamente o sintoma do problema, mas isso não prescreve ainda os modos de problematização. Talvez o ultimo proceda pelo meio de um reconhecimento “critico” do elemento de verdade contido na ideia – mesmo que tendenciosa – de choque de civilizações, proposto por Samuel Huntington no momento da reentrada do império norte-americano no oriente médio, e desde então repetido sob diferentes nomes a serviço de desestabilizar as insurgências nacionalistas protegidas pela noção equivoca de “populismo”. Mas acima de tudo esta a lição do comparativismo estendido, que requestiona os protocolos da “neutralidade axiológica”, fundada no postulado de uma secularização que seria irreversivelmente atada a modernização. Com o duplo vinculo dos conflitos contemporâneos (e sua instrumentalização política), “cultura” e “religião” quase nunca são separáveis (especialmente não na forma de uma “cultura da referência” que desmentiria a instituição ocidental da laicidade). Mas, também eles não podem ser identificados usando uma terminologia familiar, se é verdade que, de um lado, estamos lidando com processos de socialização com os quais, mesmo em uma maneira conflitual, a hibridização ou “crioulização” é a regra, formando a própria condição da invenção e transformação das formas de vida, enquanto, por outro lado, surgem pontos verdadeiros de intransladabilidade, que se referem a irredutível heterogeneidade das representações simbólicas do humano (ou “diferenças antropológicas”: o papel das diferenças sexuais, a comunicação do valor dos corpos, o significado da vida ou da sobrevivência, da doença e da morte, a classificação hierárquica de crimes…).

Vemos claramente hoje em dia que os projetos de “constituição multicultural” de sociedades democráticas consideravelmente subestimaram a violência dos conflitos religiosos (ou ao menos de raiz religiosa) e acima de tudo não reconhecem sua natureza. De fato, esses conflitos não são particularismos opostos (nesse caso a “solução” consistiria tanto em sua separação sob a égide de uma universalidade transcendente, superior, como em sua integração em uma “espiritualidade” sincrética), mas sim universalismos incompatíveis. Entretanto, de nenhuma forma isso implica em que a questão possa ser subsumida sob a alternativa de uma “guerra de religiões” generalizada a ser relegada ao espaço “privado” pelo meio da reiteração do “movimento pela soberania” da instituição do poder publico nacional ou de um “ecumenismo” ou “dialogo inter-religioso” no qual entrariam apenas as vozes daqueles que se definem como uma “comunidade de crentes”, subsumindo a determinação política sob sua auto definição narcisista. O verdadeiro nível político (que em outro contexto pode ser chamado de o desafio da cidadania) aparece quando determinações sociais – que não são estritamente culturais ou religiosas – sobredeterminam cada articulação dos diferentes mecanismos de identificação coletiva. Contrário a representação da mídia dominante, nenhum “conflito religioso” no mundo hoje tem “causas” que são essencialmente religiosas. É por isso que a categoria “marxista” de ideologia, em toda sua abrangência, ao menos, a combinação estrutural de diversas cenas – cada uma delas é uma “causa ausente” para a outra – pode aparecer novamente como um enquadramento heurístico indispensável. Aqui estamos (justamente como com as “externalidades” em economia) no limiar dos problemas do terceiro tipo, transgredindo os limites das disciplinas, enquanto que a busca por categorias com as quais possamos pensar na diversidade cultural pertence ao primeiro tipo, e a incompatibilidade dos “códigos” do comparativismo cultural e religioso pertence ao segundo.

A qualquer custo, meu objetivo aqui não era de “resolver” algum problema que seja, mas apenas de demonstrar que uma determinada “conjuntura” (a que vagamente identificamos pelo nome de globalização ou a segunda globalização: tendo sido a primeira determinada pela expansão europeia e a segunda pela “provincianização” da Europa) faz surgir novamente conflitos de um novo tipo que no fim provavelmente implicarão em profundos questionamentos da atual situação das “disciplinas” e formas de conhecimento: não apenas do suporte de seu paradigma explicativo mas também do suporte de sua “função cosmopolita”, que é responsável em parte por sua divisão acadêmica. Não nos deixemos esquecer que essa revisão tem como suporte a possibilidade de pensar sobre varias formas de violência no mundo contemporâneo, se não de reduzir sua incerteza. Tal revisão precisa talvez de economistas, teóricos políticos e antropólogos de um novo tipo (e portanto formados de forma diferente).


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