Vladimir Safatle, a esquerda elitista e a alma revolucionária

Por L.P.

A defesa de Safatle não é a de uma eruditização da música, mas de um questionamento da política cultural que busca marginalizar a circulação de toda música que não se encaixa na reformada narrativa do desenvolvimento nacional — narrativa esta sustentada no discurso ideológico da harmonia entre as classes sociais, entre Estado e mercado.


Na sua coluna do site do jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 9 de outubro de 2015, o professor livre docente do departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle, tece uma crítica à música brasileira. Na coluna intitulada “O fim da música” o professor afirmou que a partir das eras FHC e Lula houve um arrefecimento do alcance crítico desse segmento artístico brasileiro, sendo hoje apenas a “trilha de fundo da literalização dos nossos horizontes”. Os entendimentos sobre este argumento me parecem ser o ponto central da polêmica levantada em torno do texto.

Muitos acreditaram que Safatle ignorou uma imensa quantidade de artistas brasileiros críticos: desde eternizados sambistas até o movimento Mangue Beat, passando pelo movimento Hip Hop, música caipira e tantas outras expressões artísticas marginais. Acredito que não se trata de um esquecimento ou desdem, mas, sim, que a acusação de Safatle não se dirige centralmente à capacidade crítica desses movimentos, ou ainda, que este texto em específico não é suficientemente consequente com as implicações que o próprio texto abre em relação ao lugar que a cultura marginal ocupa no discurso de esquerda. Tentarei no meu texto abrir uma clareira pelo curto texto de Safatle, tentando propor um entendimento da sua crítica centralizando-a dentro do debate sobre políticas culturais. Após trazer a crítica para o plano dos projetos políticos tentarei apontar o que acredito ser o aspecto limitante das ideias que embasam o descontentamento da esquerda em relação à suposta desconsideração do potencial crítico da cultura produzida pelas margens da sociedade.

Safatle e o elitismo

A interpretação mais comum do texto foi a de que Safatle fez um recorte elitista, principalmente quando fez referência a Villa-Lobos e Mario de Andrade. É importante esclarecer que Safatle fez referência a esses autores dos anos 30 para falar das primeiras experiências em construir — a partir daquilo que era (e ainda é) multiplo e fragmentado dentro do território — uma imagem musical nacional que excedesse a reunião daqueles elementos, produzindo uma experiência produtiva de indeterminação entre o erudito e o popular, o regional e o universal. Em momento algum Safatle faz uma exaltação de Villa-Lobos e Mario de Andrade como sendo os “verdadeiros artistas/pensadores críticos”, de maneira que a produção da música dita erudita e sua alta circulação fossem entendidas como uma espécie de indicativo inequívoco de desenvolvimento econômico e social.

Os apontamentos de Safatle referentes a o que fizeram tais autores reaparecem quando argumenta que no anos 70 e 80 alguns outros autores produziram novamente esta complexificação da música brasileira: mostrando que ritmos, poéticas e narrativas entendidas até então como não originárias do território nacional também poderiam compor o território de identificações possíveis para o Brasil. O potencial disruptivo destas criações participaram de maneira decisiva na indeterminação dos afetos políticos cristalizados que construíram um certo tipo de “bossa do homem cordial”, trilha sonora do mito da democracia racial e do convívio harmonioso entre classes sociais.

É legítimo entender que o movimento Hip Hop, Manguebeat e até mesmo o Rock nacional também produziram tais tensionamentos dentro do território de identificações musicais brasileiras. O caminho que Saftle traçou (nas possibilidades da curta coluna) acredito não ter deixado suficientemente clara a distinção que faz entre a crítica à circulação e crítica à produção musical. Tanto que por isso dedicou uma segunda coluna sobre o assunto, exclusivamente para responder às críticas que recebeu.

Na primeira coluna, Saftle afirma que “a despeito de experiências musicais inovadoras nestas últimas décadas, é certo que elas conseguiram ser deslocadas para as margens”. Creio ser a partir deste momento que Safatle começa a apontar o que entende por “começo da morte da música”. De maneira alguma se trata de diminuir a capacidade crítica dos movimentos musicais do final de sec. XX e início do sec. XXI, mas de questionar a maneira como a circulação de uma certa estética musical crítica foi paulatinamente movendo-se (passiva e ativamente)  para as margens através de uma política cultural de Estado, enquanto ao centro circula um tipo de música que em nada faz frente ao poder. É um erro pensar que Safatle não reconhece a capacidade crítica da música produzida pelos segmentos da classe trabalhadora. Em debate com o professor Pablo Ortellado, Safatle afirma categoricamente que “não há nenhuma razão em não reconhecer aspectos e produções extremamente inovadoras, do ponto de vista formal e da sua capacidade crítica, vindo daquilo que nós chamamos de cultural popular”.

Pensar que a defesa de Safatle não é a de uma eruditização da música, mas de um questionamento da política cultural que busca marginalizar a circulação de toda música que não se encaixa na reformada narrativa do desenvolvimento nacional — narrativa esta sustentada no discurso ideológico da harmonia entre as classes sociais, entre Estado e mercado — põem uma dúvida sobre a recepção tão negativa à crítica apresentada por Safatle. Afinal, se Safatle, logo de início, não desconsiderou o potencial crítico da cultura popular, porque tantos entenderam a crítica desta maneira?

A bela alma revolucionária marginal

Acredito que parte da resposta a essa pergunta foi dada pelo psicanalista Christian Dunker no artigo “A alma revolucionária”. Neste artigo, Dunker aplica sua teoria da lógica do condomínio ao pensamento de esquerda. Tal qual a lógica dos condomínios de direita, os condomínios de esquerda oferecem modos delimitados de lidar com as incompletudes inexoráveis da vida — oferecem modos de sofrer e de sonhar. Dunker identifica que o revolucionário sofre de uma busca incessante pelo verdadeiro e inequívoco posicionamento revolucionário. A bela e pura alma de esquerda se satisfaz em erigir muros que separam revolucionários de pelegos, quem é “de luta” e quem não é, quem está dentro da murada coerência revolucionária e quem está habitando o mundo sujo, covarde e confortavelmente posto na cultura alienante. O sofrimento revolucionário é aquele capaz do estoicismo mais improdutivo. Sendo seu horizonte o culto e a manutenção da pureza até que as forças produtivas sejam completamente desalienadas na chegada da mítica revolução, o revolucionário retira-se de segmentos da vida social em direção aos nichos puros da cultura revolucionária. A contradição entre a voz que impele a promover a consciência de classe entre os iguais e a voz que censura qualquer diálogo com posições que não aquelas já estabelecidas como revolucionárias é o conteúdo da narrativa de sofrimento proposto no condomínio de esquerda: “aqui sofre-se disso, pois esta é nossa bela cruz”.

Em busca de superar a paralisia gerada por tal modo de sofrimento alguns setores do condomínio de esquerda organizaram-se em torno de um refinamento desta posição. Entenderam que a pureza não reside em uma posição específica, mas no lugar de onde ela é produzida, a classe trabalhadora marginalizada. Apesar de ter trazido alívio para o sofrimento de esquerda graças à possibilidade de desenrijecer posições políticas, éticas e estéticas sem perder a coerência, criou-se apenas uma nova versão do mesmo sonho paralisante. Para esta nova visão o caminho da revolução é o fortalecimento das estéticas marginais a partir e dentro da classe trabalhadora marginalizada. A aposta é que sendo resguardada sua autenticidade — como discurso portador de uma essência infensa à cooptação por parte de discursos elitistas, que a oferecem elementos estranhos a uma condição de marginalidade —  teremos um modelo da verdadeira forma do poder popular.

Acredito ser esta última a posição daqueles que viram elitismo na crítica de Safatle, pois, segundo esta lógica, afirmar que a obra de Villa-Lobos foi uma explosão cultural que pôde ter consequências mais impactantes no território brasileiro de identificações do que o RAP nacional dos anos 90 e o funk carioca do anos 2000 é justamente sobrepor uma cultura “do centro” à cultura das margens. Sonhar com o desaparecimento da cultura das margens não pela sua generalização na sociedade como triunfo final do oprimido sobre o opressor, mas pela entrada dos seus produtores dentro do debate de tradições — possibilitando a criação de novas formas estéticas que tensionem a lógica excludente a partir do rompimento interno desta mesma lógica — é um modo de sonhar que não é bem-vindo nos condomínios de esquerda, pois macula a bela alma marginal. O projeto de política cultural que acredito estar implícito no texto de Safatle ameaça alijar a alma revolucionária do que esta acredita ser sua grande garantia, a condição marginal dos produtores desta cultura, que, justamente por sua condição de marginalizados, podem produzir as verdadeiras posições estéticas revolucionárias.

Um argumento recorrente é que a entrada dos produtores de cultura oriundos da classe trabalhadora marginalizada dentro do debate de tradições formais – debate este que ocorre dentro da gramática estabelecida, não da gramática marginal – será apenas mais uma forma de cooptação e colonização cultural. A partir de um caso brasileiro tentarei mostrar como a radicalização desta ideia é justamente o que sustenta a estabilidade da exclusão dos sujeitos culturais e econômicos em direção às margens.

O caso dos “batuqueiros” de Nação

As Nações de Maracatu de Baque Virado existem principalmente nas favelas de Recife, Olinda, Igarassu e arredores. O Maracatu de Baque Virado — cortejo percussivo de toadas impactantes e loas que tratam da religiosidade e tensões sociais, a partir do olhar das organizações negras — talvez seja a expressão artística musical de maior potência organizativa para o discurso de esquerda. Muitos são os que aderem entusiasmados aos inúmeros grupos de Maracatu pelo Brasil e pelo mundo. A diáspora do Maracatu de Baque Virado, fortemente impulsionada pelo movimento Manguebeat, pode ser dividida em três momentos. O primeiro momento foi a realização de oficinas de introdução em várias Universidades e Centros Culturais por parte “batuqueiros” vindos de experiências em algumas Nações, não necessariamente tendo vínculo formal com estas. Em um segundo momento vieram os mestres das Nações, pessoas que exercem funções organizativas e religiosas dentro das Nações. O terceiro momento é a vinda de “batuqueiros” de Nação, membros das Nações, referendados e recomendados pelos mestres como detentores de um saber.

A chegada destes “batuqueiros” ao mercado de Maracatu foi encarada com certa desconfiança por boa parte dos produtores de grupos e oficinas. Por mais que estes fossem recomendados pelos mestres alguns interessados em promover o Maracatu inicialmente resistiram em organizar oficinas ministradas pelos “batuqueiros”. Em defesa destes, o mestre da Nação do Maracatu Porto Rico, Chacon Viana, em oficina ministrada na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2012, defendeu que eles não eram “batuqueiros”, mas, sim, músicos! Acredito que nesta defesa de Chacon existe um acordo com a proposta de Safatle e uma denuncia de redução folclórica.

As pessoas que produzem cultura na favela não querem apenas serem reconhecidas dentro do lugar de marginalidade, como músicos de Maracatu. O motivo destes músicos não estudarem e dominarem o conjunto de conhecimentos acumulados pela humanidade na área da música (incluindo Villa-Lobos) não tem nada a ver com uma satisfação da bela alma marginal folclórica, tal como espera deles o condomínio de esquerda.

Primeiramente, é evidente que o desconhecimento de certa tradição tem a ver com a necessidade básica em trabalhar horas a fio, sem tempo para um estudo desta complexidade. Outro motivo claro é a insuficiência de financiamento de estudos: políticas de permanência, bolsas, etc. Para além destes dois motivos é gritante a insuficiência de vagas em escolas públicas de música. O Conservatório Pernambuco de Música abriu para o ano de 2016 pouco mais de 4 vagas em curso técnico de percussão, número totalmente insuficiente para a quantidade de pessoas aptas, capazes e interessadas em produzir rompimentos relativos aos lugares-comuns do que seja a “alta” cultura e a cultura marginal. Estas pessoas não querem girar fora do eixo pelo Brasil dos nichos “alternativos”. Querem tocar óperas-baque de composição própria, inspiradas em toadas da Nação Elefante, temperadas com Beethoven e Brahms, fazendo Vladimir Safatle, Hermeto Pascoal e o fantasma de John Cage ficarem esperançosamente confusos, na platéia da Sala São Paulo e na Noite do Dendê, quando começar o solo de um instrumento que não sabem distinguir se é um agbê ou um piano.

O novo síndico e o triunfo da política cultural da esquerda elitista

Uma imagem como a que acabei de descrever só seria indesejada por dois tipos, que sofrem da mesma idiotia: puristas de esquerda e puristas de direita. Por mais que pareça estranho a um primeiro olhar, entendo que a posição da esquerda em relação às políticas culturais é justamente o que torna essa imagem cada vez menos possível. Inexiste no campo da esquerda brasileira uma crítica e um projeto de política cultural que torne esta imagem possível. A bela alma revolucionária não se opõe formalmente à apropriação dos bens culturais por parte do campo popular, mas está longe de priorizar a maculação da suas virgens produtoras visões estéticas da essência desalienante.

Por mais que esta descrição da posição atual da esquerda frente às políticas públicas de cultura pareça um exagero ela se torna cada vez mais plausível à medida que nos aproximamos da atual situação da crítica a estas políticas. A pergunta que acredito caber neste momento é: porque é tão parca a crítica relativa à adesão de agentes culturais às políticas culturais atuais? Para tentar explicar esta ausência introduzirei mais um elemento da lógica do condomínio de Dunker: a figura do síndico¹.

O síndico é o gestor, aquele que gere os conflitos produzidos pela própria lógica de convivência proposta. No caso da política brasileira atual temos o estranho caso de sucesso de um síndico vindo do campo popular que conseguiu renovar a adesão a uma lógica de subserviência como se fosse uma lógica de subversão recorrendo, para isso, à lógica de marginalização como potência e não como problema. Esta articulação cínica prospera graças a uma estratégia fundamental da lógica do condomínio: a separação entre nós e eles — estratégia que consegue adesão não apenas dentro do governismo, mas dentro de quase todos os setores do campo popular, até mesmo dos que acreditam participar de movimentos dissidentes.

O discurso da (pseudo)polarização atual sustenta-se na crença da essência da posição marginal: “eles são simples consumidores fetichizadores da essência que nós marginais detemos. Eles tem mentiras ideológicas e nós temos a verdade marginal, que, munida de um corpo cheio de cores e nudez, desnuda as inverdades elitistas com verdades tropicais, expondo o fulcro da verdadeira cultura nacional”. Dentro e fora do governismo esta é a posição hegemônica no campo popular.

A gestão do novo síndico é cada vez mais facilmente atacável do ponto de vista econômico, porém esta crítica, relativa às políticas culturais, ainda insiste em não fazer eco no campo popular. Após André Singer introduzir o lulismo como categoria de análise² não são poucos os que procuram explicar o sucesso desta lógica de gestão. Arrisco-me a dizer que o novo síndico triunfou graças à esquerda elitista.

A esquerda elitista não é Vladimir Safatle, mas seus críticos. A crença na marginalidade como horizonte ético, estético e político produz políticas que não só não priorizam a apropriação das riquezas nacionais — onde se inclui o conhecimento musical dito erudito — por parte da classe trabalhadora, mas investem na manutenção da pureza marginal. Nesse sentido o que produzem é o cenário cultural onde a riqueza de elementos estéticos circula foracluída do alcance da classe trabalhadora, elitizando cada vez mais partes da riqueza musical.

A foraclusão — conceito trabalhado por Lacan³ — é uma forma de negação que ao mesmo tempo retira e mantém o conteúdo excluído. É como dizer que algo está dentro do lado de fora. Sendo entendida como não pertencente ao imaginário do campo popular esta riqueza simbólica sempre retorna de modo traumático, mostrando a inconsistência da pureza pretendida — efeito causado pela coluna de Safatle. Do lado de fora do condomínio de esquerda está a elite e é a ela é que a esquerda entrega a riqueza foracluída. A esquerda elitista é o condomínio do campo popular gerido pelo síndico que reformou os muros mantenedores da pureza revolucionária e entrega àqueles do outro lado do muro — aqueles que podem comprar — o acesso a o que se convencionou chamar de erudito.

O capitalismo matou Pachamama: que bom!

Em 2008 o presidente boliviano, Evo Morales, enviou uma carta à XIV Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas. Na carta, Morales afirma que o capitalismo está matando a Mãe Terra. Entendendo que esta afirmação — para além da justa denuncia da exploração irracional dos recursos do planeta — trata-se de uma visão essencialista do que seja a relação das pessoas com a terra, o filósofo esloveno Slavoj Zizek reagiu afirmando: “Que bom! Ao menos uma coisa boa que o capitalismo fez”.

Não se trata aqui de menosprezar a maneira como os aymaras, quechuas, guaranis ou tupi-guaranis relacionam-se com a terra, mas de apontar que a certeza de que certas tradições carregam em si a essência verdadeira de um horizonte intrinssicamente bom e justo é uma mordaça para a criação política, estética e ética.

O horizonte crítico da esquerda só pode expandir-se coerentemente abrindo mão das visões essencialista que habitam (em maior e menor grau) seu discurso. Apesar do louvável esforço de muitos agentes culturais em não deixarem desaparecerem tradições da classe trabalhadora — constantemente ameaçadas pela expropriação das condições necessárias para sua manutenção —  e produzirem novas tradições críticas a partir destas tradições, precisamos apostar no desaparecimento destas tradições pela indefinição produtiva gerada no encontro da classe trabalhadora com toda a riqueza que lhe pertence.


1. DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo. Boitempo: 2015, pg. 76.

2. SINGER, André. Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

3. LACAN, J. (1992). O seminário. Livro 3: As psicoses . Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956)

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2 comentários em “Vladimir Safatle, a esquerda elitista e a alma revolucionária”

  1. Impressionante como essa descrição de Dunker do revolucionário se assemelha àquelas descrições genéricas com pitadas de ressentimento que vemos no facebook quando é feita uma crítica franca a algum tipo de posição endireitada.

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