Resposta a um camarada sobre O Fim da Organização

Via CEII

Resolvemos dar o pontapé inicial à coluna “Associação Livre” respondendo aos interessantes comentários de um camarada – que inclusive trabalha aqui no LavraPalavra – a respeito de um texto escrito pelo CEII e apresentado no colóquio “Psicanálise e a Hipótese Comunista” (USP em Maio de 2016). Além de ser um debate que nos permite sair especulando a torto e a direito, essa proposta também deixa claro logo de saída que emails, críticas e comentários de vocês poderão servir de ponto de partida para outras colunas. É só mandar um email para [email protected] ou [email protected]


Querido camarada,

Foi com enorme prazer que recebemos seus comentários a respeito do texto “O fim da organização: Sobre um fragmento dos Manuscritos de 1844”, que apresentamos lá na USP em Maio – e que foi publicado aqui no blog em seguida. Para os interessados, eu sugiro seguir o vídeo da apresentação, disponível lá no canal do youtube do CEII.

O texto a partir do qual se desenrola o debate é bem curto – tem aí umas seis páginas – então vamos pular um resumo dos argumentos que apresentamos lá e ir direto para o ponto que suscitou seus comentários. A partir daí a gente retoma o fio do assunto, e vemos onde que a coisa toda vai dar.

A uma certa altura do texto, a gente enuncia a seguinte barbaridade, supostamente respaldada pelo Manifesto do Partido Comunista:

“A coisa complica um pouco quando tentamos justapor essa definição do comunismo como a prática efetiva – que, ao invés de antecipar no pensamento um futuro, caminha concretamente em direção a ele – ao embaraçoso fato de que, para Marx e Engels, não existe propriamente política comunista.”

Foi por essa polêmica asserção que você começou sua resposta, sugerindo que “a afirmação da não existência de uma ‘política propriamente comunista’ está fundada em uma interpretação do Manifesto que poderia ser melhor esmiuçada”. Você dá dois argumentos principais para uma contra-leitura (vamos reconstruir na medida do possível os seus comentários não só para que os leitores possam acompanhar o papo, mas também pra você checar se entendemos o que você quis dizer). Ei-los aqui, resumidos:

  1. Ao citarmos o famoso trecho do Manifesto do Partido Comunista que diz que “os comunistas não formam um partido à parte (…) não proclamam princípios particulares” etc, estaríamos deixando de considerar a relação entre essa passagem e outra, também do Manifesto, em que é afirmado que “o objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado”. A capacidade de pensarmos os “fins gerais do movimento proletário”, que o próprio Marx antecipa ali, significaria assim que também podemos antecipar o objetivo final do movimento comunista, já que ambos tem o mesmo objetivo imediato. Para resumir, em O Fim da Organização a gente teria lido a indistinção entre comunistas e proletários como base para afirmar que “não há princípio político ou interesse particularmente comunista”, enquanto você acentuou o aspecto gregário ou unificador dessa indistinção: não existe um objetivo distinto pois o objetivo dos comunistas é o mesmo dos demais partidos operários, etc.
  1. O segundo ponto é o ponto dos “princípios”. De novo, nós partimos lá no nosso texto de uma citação clássica do Manifesto: “[os comunistas] não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretendam moldar o movimento operário”. Em sua resposta, você propõe que não podemos daí tirar a ideia de que não exista um princípio político propriamente comunista pois logo em seguida nossos “Manifestantes” escreveram também que “as concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em ideias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob seus olhos”. Juntando essas duas citações, você argumenta que o que está em jogo aqui é, na verdade, um princípio bem estabelecido, a saber, a necessidade de aprender com as massas as formas de luta concretas que pertencem a cada conjuntura – ou seja, a oposição entre princípios pré-existentes e princípios historicamente determinados, e que o que os comunistas não têm é um princípio fixo e ahistórico, mas aprendem com as lutas concretas e localizadas qual é a forma do próximo passo a ser dado. Uma lição leninista, em suma.

O primeiro ponto argumenta, portanto, que os comunistas têm o mesmo objetivo final que o movimento operário, ainda que a clareza desse objetivo possa ser mais inteligível para os primeiros que para os últimos. O segundo ponto, por sua vez, afirma que a plasticidade tática, o respeito pelas singularidades da luta de classes em cada tempo e lugar, é o princípio comunista por excelência. Da conjunção dessas duas teses, decorre sua conclusão:

“Ou seja: não há, certamente, uma tática propriamente comunista. Os comunistas admitem como válidas todas as formas de luta, sendo sua oportunidade julgada com base na “situação concreta”. Por outro lado, há uma estratégia propriamente comunista, que é o reflexo da questão sobre o ‘objetivo imediato dos comunistas [que] é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários…”

Antes de mais nada, nos parece que as suas colocações são perfeitamente cabíveis, baseadas não só numa leitura detalhada do Manifesto, como de outras fontes importantes do marxismo e do pensamento comunista. Ainda que nosso conhecimento das diferentes correntes do marxismo seja limitado, temos a impressão de que o argumento de que “há estratégia e não tática comunista” é uma posição amplamente aceita e promovida dentro do marxismo, e a proposta de entender o comunista a partir dessa mescla de clareza na visão de futuro com flexibilidade no engajamento local tem o mérito de, ao mesmo tempo, manter viva a “missão histórica” do movimento comunista – seu papel no curso das transformações sociais de amplo espectro – e afastar a ideia de que o comunista é alguém que quer impor de “cima para baixo” os modelos e agentes de luta política sem atenção à realidade de cada conjuntura. Ou seja, é uma posição que separa o comunista do lunático autoritário.

No entanto, o que nos encafifou um pouco em seus esclarecimentos a respeito do aspecto mais positivo – ou propositivo – da orientação comunista foi a total ausência de qualquer articulação entre esse nosso enunciado polêmico e o resto do argumento do texto que apresentamos. Entendemos perfeitamente a necessidade de detalhar melhor o sentido de asserções meio bizarras como “um comunista, em suma, é quem sabe não servir para nada politicamente” – o que é meio estranho é perceber que essa demanda de esclarecimento faz referência apenas ao pensamento de Marx, Lenin ou Gramsci – como se a análise dos textos desses caras pudesse esclarecer o que nós queríamos dizer e pensar – sem nenhuma referência à maneira como os pobres camaradas aqui tentaram ligar essa proposta a uma série de problemas e ideias bastante atuais, ou mesmo ao tal fragmento dos Manuscritos de 1844 que serve de base para o texto.

Por um lado, essa ausência de menção ao nosso texto é bastante compreensível, pois aparentemente nada nos impediria de tratar esse ponto – a questão da tática e da estratégia comunistas – separadamente de outras questões, como o lugar da organização na luta, a questão das inversões entre meio e fim, etc. Mas se a gente faz isso, já admitimos um posicionamento contrário à proposta do texto, que é justamente de que os temas da finalidade da luta e a lógica da organização têm de ser pensados conjuntamente para que ambos se tornem inteligíveis. Assim sendo, vamos tentar responder aos dois pontos que você levantou já pondo em prática a nossa própria hipótese, até pra ver se isso ajuda mesmo em alguma coisa.

O texto O Fim da Organização pode ser entendido como uma tentativa de introduzir uma outra maneira de encarar o “movimento real” comunista, menos calcada na palavra “movimento” e mais orientada por esse “real”. Para tal, procuramos – como bons marxistas – alguma coisa no Marx que fundamentasse nossa proposta. O que encontramos foi um fragmento, lá dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que pareceu tocar num ponto cego da teoria marxista da organização coletiva – e olha que nós não fechamos com o tal do “humanismo radical” e nem mesmo com a teoria da “atividade teleológica” que de fato recheiam esses estudos do “jovem” Marx. Enfim, fica em aberto a questão de por que foi lá, no meio de uma discussão sobre propriedade privada e “carência”, que o Marx fez esse comentário tão enigmático e atual. A citação completa é mais longa – para ler o fragmento todo, bem como nossa análise mais minuciosa, remetemos o leitor ao texto do colóquio – mas essa aqui é a passagem realmente central:

“Quando os artesãos comunistas se unem, vale para eles, antes de mais nada, como finalidade a doutrina, propaganda, etc. Mas ao mesmo tempo eles se apropriam, dessa maneira, de uma nova carência, a carência de sociedade, e o que aparece como meio, tornou-se fim. Este movimento prático pode-se intuir nos seus mais brilhantes resultados quando se vê operários socialistas franceses reunidos. Nessas circunstâncias, fumar, beber, comer, etc. não existem mais como meios de união ou como meios que unem. A companhia, a associação, o entretenimento, que novamente têm a sociedade como fim, basta a eles; a fraternidade dos homens não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho” (Manuscritos, p.145-146)

O que chamamos de “ponto cego”, e que aqui aparece de maneira explícita, é a inversão entre meios e fins do movimento político e o papel fundamental nesse movimento do que Marx chama de uma “nova carência”. Todo o nosso argumento em O fim da organização serve apenas como uma tentativa de propor que o debate sobre meios e fins da luta política seja revisto – ou pelo menos suplementado – pelo ponto de vista introduzido aqui por Marx. Mas qual é esse ponto de vista?

É a ideia – e uma ideia não é muito mais que isso, a invenção de um lugar de onde podemos pensar, e não o conteúdo de um pensamento específico – de que não só é impossível impedir que uma organização orientada por um dado fim venha a usar esse objetivo futuro como um “mero” meio para a reprodução da própria organização, mas que essa inversão é essencialmente ambivalente. Ou seja, desse processo de inversão podem sair coisas horríveis, mas também coisas maravilhosas – “brilhantes resultados”. É justamente o processo pelo qual o movimento em direção a algo toca em algo de real – ou seja, de efetivo no presente – e é por isso que nós somos muitas vezes julgados pelo o que aconteceu nos momentos em que essa inversão se deu na história da esquerda, quando sonhos de emancipação deram origem a pesadelos horríveis (estalinismo), ou quando lutas sem futuro nenhum produziram experiências locais de criatividade e emancipação (comuna de Paris) – de alguma forma, parece que a verdade do processo aparece, estranhamente, nesses momentos de interrupção de sua orientação inicial.

Enfim, essa ideia pode ser decomposta em um argumento de duas partes: primeiro, é necessário desenvolver conceitos para dar conta dessa inversão na teoria marxista, de modo que não precisemos sempre explicar essa reversão em termos morais ou personalistas; segundo, é preciso que tenhamos algo a dizer sobre o que queremos fazer com essa dimensão incontrolável e incontornável da organização – ou seja, é preciso incluí-la na questão de “o que fazer?”

Logo se vê porque fica difícil balizar completamente nossa proposta na análise de textos de Marx ou Lenin, pois nossa tese é justamente a de que há algo aí que permanece impensado até hoje, um desafio que acabou caindo no colo da nossa geração – muito por conta do fato de que somos uma geração que experimenta um “novo tempo do mundo”, como diz o Paulo Arantes. Tornou-se legível para nós, por uma série de razões, que “o passado tinha mais futuro”: essa constatação causa uma perplexidade que nos convida a pensar o que talvez fosse antes impensável.

Em todo caso, essa intuição de que precisamos pensar conceitualmente o problema da inversão entre meios e fins na lógica da organização coletiva realmente encontra nesse fragmento do Marx um suporte interessante. Isso porque o parágrafo que citamos vem logo depois de (mais) uma famosa passagem do cânone marxista, aquela que fala da diferença entre o “comunismo pensado” e a “ação comunista efetiva”, evidentemente puxando sardinha para a segunda. Todo mundo cita essa passagem, que – junto com aquela outra sobre como o comunismo é “o movimento real que supera o atual estado de coisas” – serve normalmente para criticar os filósofos que ficam em casa falando coisas bonitas, e para fundamentar o privilégio da prática efetiva sobre as teorias apriorísticas. Pois bem, logo depois de enaltecer a luta real na direção da transformação do “atual estado de coisas”, Marx vira e fala, com lágrimas nos olhos (bem, pelo menos nós ficamos), dos operários socialistas franceses que transformam as tarefas do movimento real comunista em uma razão para poderem socializar entre si, respondendo a uma carência que eles mesmos não sabiam ter, a “carência de sociedade” – e dizendo que, através dessa inversão, “a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho”. E aí, o que fazer com o fato de que Marx enxergou aí – pelo menos em 1844 – os “mais brilhantes resultados” do movimento prático comunista?

Nossa hipótese é que, após criticar o comunismo “estático” dos filósofos em nome do movimento comunista efetivo, dos militantes, Marx ainda faz uma distinção de acento, entre o movimento real – em oposição à parálise das ideações, mencionadas anteriormente – e o movimento real – agora distinto do movimento também concreto, mas sem ganhos reais para os artesãos comunistas no presente. É à luz dessa leitura que nos debruçamos sobre o Manifesto e sobre as questões que você levantou. Então vamos a elas.

Primeiro, a questão da estratégia.

O ponto que mais chamou atenção em sua resposta – por sua incrível atualidade – não foi tanto a justaposição entre a passagem do Manifesto em que Marx fala que os comunistas “não formam partido à parte” dos partidos operários e a outra em que diz que os “objetivos imediatos” de ambos são os mesmos, mas o fato que, para encontrar uma instância em que essa unidade se deu positivamente – ou seja, em que esse fim estratégico comum significou uma unidade organizacional concreta – foi necessário fazer uma mediação curiosa (e assustadora): você buscou duas citações do Marx que não articulam apenas comunistas e operários – mas comunistas, operários e os reacionários. Saca só:

“Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo.”

E depois:

“Numa palavra: o progresso revolucionário abriu caminho não pelas suas conquistas tragicómicas imediatas, mas, inversamente, por ter criado uma poderosa e coesa contrarrevolução, por ter criado um adversário na luta contra o qual é que o partido da subversão amadureceu, só então se tornando num partido verdadeiramente revolucionário.”

Em ambos os casos, o que Marx sugere é que, sem “uma poderosa e coesa contrarrevolução”, não haveria unidade organizacional entre a classe proletária e “o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo”, não haveria amadurecimento de um “partido verdadeiramente revolucionário”. Em ambos os casos, quem dá nome aos bois, ou coloca todo mundo junto no mesmo saco, são os nossos oponentes: sem o olhar vago e assustado do “partido da ordem”, que se insurge muitas vezes contra ameaças fantasmáticas – contra o “espectro” do comunismo mais do que contra seu avanço real – nós não conseguiríamos olhar para nós mesmos como uma coisa só.

A razão pela qual isso salta à vista é que essa operação, através da qual a unidade da esquerda se constrói pela mediação de um adversário, insiste em se repetir nos momentos mais enigmáticos da nossa história. Por exemplo, na dissolução da Terceira Internacional – no momento em que o Partido Comunista soviético unilateralmente (e paradoxicamente) dissolveu a Internacional em nome da necessidade de lutar contra o avanço do fascismo na Europa. Ou ainda, quando a unidade da esquerda brasileira parece ser tão mais desejada ou possível quanto mais avança o populismo retrógrado, contra o qual nós então nos insurgimos, unidos e de mãos (supostamente) limpas.

Difícil pensar um livro mais importante para estudar a crise da Internacional do que o calhamaço A crise do movimento comunista, do Fernando Claudín. Analisando a estrutura organizacional da Terceira Internacional, não só os pressupostos e limitações teóricas em jogo em sua criação, não só os acertos e erros práticos de seus quadros, mas também os infinitos problemas materiais de organizar um movimento internacional quando cada luta se dá em condições diversas, tanto em termos econômicos quanto culturais, Claudín mostra que o gesto de “boa fé” do regime soviético com os aliados anti-fascistas – assegurando-os que a União Soviética abdicava de um projeto estratégico na luta imediata contra o avanço do Terceiro Reich – não tinha utilidade apenas para os defensores do “mundo livre”, não era apenas uma concessão imperdoável, mas também vinha resolver um impasse interno ao movimento comunista, ele mesmo incapaz de sustentar qualquer coesão real entre suas diferentes frentes de luta. Ou seja, a hipótese de fundo de Claudín é que a unidade produzida pela mediação de um inimigo – em geral, o fascista – é uma das respostas históricas ao fracasso interno ao nosso movimento de produzir uma unidade que seja capaz de suportar a tensão de organizar fragmentos da classe trabalhadora que não se reconhecem nem se identificam entre si. E, vemos pelas citações que você apresentou, que o próprio Marx descrevia o processo de unidade entre comunistas e operários – pelo menos no caso de 1848 – nesses mesmos termos.

Tudo bem que “na luta de classes, os choques com a classe dominante são decisivos à própria definição e organização da classe operária” – até aí estamos só repetindo um velho chavão filosófico que diz que “toda determinação é negação”: ao negar alguma coisa, também nos determinamos nessa negação, algo de nós se torna mais discernível ao discernirmos o que não somos. O problema é quando essa determinação por oposição não vem apenas adicionar uma nova camada de unidade ou coesão a uma parcela do movimento revolucionário, mas serve de solução para os impasses internos que impedem qualquer outra forma mais efetiva de unidade. O crucial é notar que, nesse caso, ocorre um claro deslocamento na questão da finalidade: há unidade concreta e prática entre comunistas e operários, com vistas a um fim comum? Sim e não. Através da constituição do “partido da Ordem” pode até ser mesmo que tenha se criado uma unidade local entre os comunistas e o proletariado, mas para tal foi preciso que a batalha contra um inimigo encarnasse essa finalidade comum, e com isso deslocasse o ponto em comum do futuro para o presente.

Se essa produção de contra-coesão vem trazer ainda mais fôlego para enfrentamos nossos problemas internos, ótimo, mas se vem substituí-los, nos impedindo de pensar por que é que, até a resistência e a “contrarrevolução” se constituírem, não havia unidade ou mediação intrínseca entre comunistas e operários, aí nós temos um problema maior ainda. E pior – a coisa é realmente séria quando vemos que não é apenas que nossos inimigos aparecem todos como obstáculos para a realização das nossas finalidades, mas que é na medida em que se apresentam como obstáculos que se tornam nossos inimigos: não apenas legisladores que tentam passar medidas contra o avanço da classe trabalhadora, não apenas a polícia que impede o movimento livre das pessoas, não apenas o patrão que trata os empregados como meios de enriquecimento e não como fins em si mesmos, mas também líderes e quadros que se utilizam dos ideais de esquerda para fins de enriquecimento e status pessoal, burocratas que valorizam mais os protocolos da organização do que ajudar na realização de seus propósitos, camponeses mais preocupados com a sobrevivência imediata e com a manutenção de sua parca dignidade do que com a criação de um novo mundo para todos, trabalhadores mais preocupados em garantir seus empregos do que com receber imigrantes, etc. Sem um tratamento ambivalente dessa inversão, é impossível distinguir o que Mao Tsé Tung chamava de “contradições antagônicas” e contradições “no seio do povo” – coisa que nem o próprio maoísmo foi capaz de propriamente distinguir, como o resto da história mostrou.

Isso nos traz para o cerne da questão da estratégia, e para a razão “de base” pela qual acreditamos que o tema da finalidade, e sua relação com a lógica da organização militante, precisa ser urgentemente revisto.

A capacidade de antecipar uma finalidade é praticamente a única marca distintiva entre o trabalho humano e a atividade animal que encontramos lá na obra do Marx – aquele papo de que a abelha faz construções de deixar qualquer arquiteto com inveja, mas só o homem antecipa idealmente aquilo que vai construir. Essa diferença entre o homem e a abelha é inclusive mencionada tanto pelo jovem Marx do “ser genérico” quanto pelo Marx do Capital. O ponto é que há uma teoria da transformação implícita ali, a ideia de que o processo de trabalho “independentemente de qualquer forma social determinada”, envolveria invariavelmente uma “atividade orientada a um fim”, na qual estaria contida em potência as determinações que depois serão aquelas do objeto transformado. É um esqueminha – primeiro: o objetivo final idealizado, ou em potência, na nossa cabeça; depois vem a atividade de alteração de um objeto com base nesse objetivo; por fim: o objeto é alterado e carrega as características que a gente tinha idealizado anteriormente. Dá para complexificar esse processo infinitamente, adicionando sub-etapas, composições intrincadas de diferentes “expertises”, separando suas partes pelo globo, entre pessoas que nunca vão se conhecer – podemos até mesmo aceitar que a finalidade antecipada inclui algum espaço pra mudanças, dependendo de como as coisas se derem nas etapas intermediárias, etc. Mas nada disso altera o esquema que liga a potência à atualidade, a idealização do resultado e sua realização, que permanece transhistórico e imutável. E essa teoria da transformação está em jogo na nossa concepção da relação entre estratégia e da tática quando pensamos a primeira como a visão antecipada de um futuro e a tática como o reconhecimento dos meios concretos para a realização desse futuro em potencial.Tem algo de errado nisso? Claro não. Mas quando a gente se liga que estamos dando um caráter quase transcendental a um esquema que tem nome e endereço (pois o trabalho concreto, que esse processo descreve, é uma invenção siamesa do trabalho abstrato – vide o tema da determinação oposta, por negação, etc) abre-se aí uma questão importante.

É  certamente verdade que, como você colocou, “o marxismo exige um exame absolutamente histórico da questão das formas de luta. Colocar esta questão fora da situação histórica concreta significa não compreender o á-bê-cê do materialismo dialético”, mas nos parece que, a luz desse comentário sobre a historicidade das “atividades orientadas por um fim”, essa formulação não vai longe o suficiente. Assim como a especificidade de cada situação histórica não influi apenas sobre os meios de produção, mas também sobre “o trabalho [humano] propriamente dito”, sobre o lugar da potencialidade no processo produtivo, também a história das formas de luta política não poderia ser entendida apenas como a história dos diferentes meios para chegar a uma finalidade pré-estabelecida, mas também como a história das diferentes articulações entre estratégica e tática. Ou seja, é preciso historicizar não só a expressão das contradições e das formas de luta, mas radicalizar essa concepção para que seja possível incluir aí também o fato de que nem sempre a relação entre os meios e a finalidade da luta vai se dar da mesma maneira. Uma coisa que o Hegel já sabia, e que merece um tratamento marxista à altura, por ser um insight profundamente materialista, é que não é só a história que tá dentro do tempo, mas também o tempo que está dentro da história. Pode até ser que no tempo de Marx ou Lenin a relação entre fins e meios, entre futuro e presente, se desse como você descreveu, mas seria necessário incluirmos em nossa análise o por que de ser assim, pois a própria relação entre presente e futuro também pode ser materialmente alterada pela história (ou seja, não é só coisa da nossa cabeça), e isso teria consequências para nossa maneira de pensar o que vem pela frente.

Um bom exemplo de como esse déficit conceitual no materialismo dialético influencia a militância aparece no conceito de “práxis” entendido como “a unidade da teoria e da prática”. Tá certo que a “práxis” nomeia uma atividade que leva em conta as especificidades históricas de cada situação, etc – mas alguém já parou pra pensar que não existe história da própria práxis? É um conceito que postula a necessidade de unir prática e teoria – e, com isso, marcar a diferença entre o trabalho militante e a divisão entre trabalho manual e intelectual no capitalismo – mas que não tem flexibilidade alguma para permitir que essa unidade se dê de maneiras diferentes em diferentes momentos históricos (coisa que a divisão do trabalho no capitalismo tem pra dar e vender – com o perdão do trocadilho). Frente a essa unidade sem   plasticidade histórica, a única maneira de dar conta dos limites dessa conjunção é pedindo ajuda ou pro padre (práxis é transhistórica porque é no fundo um problema ético: mas aí quem não faz o que fala ou pensa comete uma espécie de pecado caprichoso contra a História) ou pros “universitários” (práxis é transhistórica porque é um problema científico: mas aí quem não consegue “aplicar” a teoria revolucionária não estudou o suficiente, etc). Outro bom exemplo seria a maneira como por vezes partidos reproduzem um modelo de exploração do tempo de trabalho de militantes em nome de tarefas cuja finalidade emancipatória deveria redimir o sacrifício material que realizá-las impõe sobre eles – mas vamos deixar isso quieto por enquanto.

Então, primeiro ponto: dizer que “não há princípio particularmente comunista” não é tanto dizer que nunca vamos poder antecipar o que queremos do futuro e agir de acordo no presente, mas sim dar um passo atrás, descolando o movimento comunista desse esquema funcional de orientação por um fim: pode até ser que em alguns casos ele seja válido, mas não vai ser daí que vai sair uma determinação sobre a qualidade do comunista. Outra maneira de dizer isso: em uma dada situação ser “comunista” pode significar um engajamento com os meios conjunturais em nome de uma visão de futuro, mas em outras situações é possível que esse mesmo engajamento não preserve aquilo que a fazia comunista antes.

Quando falamos do papel do inimigo na constituição da unidade do movimento revolucionário – seguindo as suas indicações – mencionamos que o inimigo pode dar um pouco de realidade ao futuro ao interditá-lo. Depois de todo esse papo sobre estratégia e futuro, podemos adicionar uma outra hipótese ao argumento: o inimigo passa a ser essencial para o movimento comunista justamente quando o fim estratégico não tem eficácia ou não é inteligível para nós. Quando o futuro não tem substância o suficiente para ser antecipável na teoria, para mobilizar-nos rumo à “práxis” concreta, o fascista se torna a sua única realidade. Trata-se de uma consequência direta de confrontarmos uma articulação maleável – o futuro nem sempre está lá, os fins nem sempre podem ser idealizados antes dos meios – com um esquema de pensamento e ação baseado na perenidade da eficácia de “atividades orientadas por um fim”. Taí uma leitura possível da brilhante intuição de Walter Benjamin de que “todo fascismo é fruto de uma revolução fracassada” – uma interpretação menos calcada na psicologia das massas pauperizadas e sem futuro, mas nos efeitos possivelmente terríveis de uma esquerda desorganizada em busca de um mediador.

Vamos deixar pra um outro dia o outro lado dessa questão da estratégia, que é o paradoxo de postular a emancipação como um fim. A famosa asserção de que “a emancipação da classe trabalhadora é obra da própria classe trabalhadora” é recheada de paradoxos quando a consideramos do ponto de vista da relação entre meios e fins, como tudo o que envolve a liberdade real: estamos prontos para descobrir que a emancipação real é tão radical que nem mesmo encaixa no conceito que tínhamos de emancipação? E se o novo for tão novo que não cabe no nosso conceito de novidade? Suspender o laço entre finalidade e organização não é desistir do futuro, ou dizer que o comunista não deve ir na direção de alguma coisa, mas tentar separar o suficiente a orientação comunista da orientação rumo a um fim definido para que situações sem nenhuma perspectiva real de transformação – ou situações em que essa transformação frustra os nossos ideais – não signifiquem a desagregação do movimento comunista ou a promoção de uma análise deformada da realidade, através da qual construímos – às vezes de maneira bastante ativa – um inimigo para chamar de nosso.

Quando encontramos na obra de Marx um outro modo de antecipar o futuro, que é a transformação dos meios da luta em fins em si mesmos, encontramos também um outro ponto no qual poderíamos nos unir em momentos de ausência de prognóstico efetivo – sem a necessidade de fazer parecer por aí que sabemos o que estamos fazendo. Vamos deixar também para outra hora o exame detalhado dos diversos méritos desse outro ponto de apoio, nos limitando aqui a apenas listar descaradamente alguns deles:

  1. A organização tomada como um fim em si mesmo – como uma forma de satisfação da “carência de sociedade” daqueles que não tinham nem mesmo essa carência – é absolutamente histórica. Enquanto não existe história das diferentes “unidades da teoria e da prática”, existe a história das formas de organização, que não deixa de ser a história das diferentes experimentações de como articular concretamente teoria (protocolos, princípios, etc) e prática (atividades locais, distribuições de tarefas, reuniões, convívio, etc).
  1. Num contexto em que o capitalismo organiza cada vez menos o trabalho, e mais só o valor, e que até mesmo o fantasma do “estado de bem-estar social” vai se decompondo, slogans como “nada deve parecer impossível de mudar” ganham um ar irônico: a vida já se torna um perpétuo estado de exceção, “chacoalhar” as estruturas em nome de uma outra vida pode até mobilizar as pessoas que ainda experimentam algum tipo de segurança social, mas certamente não soa tão bem para quem está louco atrás de alguma coisa que permaneça estável nessa vida. A organização como um fim, isso é, a prática de manutenção material de um espaço onde as pessoas tem o direito de se associar, passa a ser talvez o único sinal confiável de que outra vida é possível (ou melhor, de que uma vida para além da sobrevivência é possível) aqui e agora. As instituições capazes de responder à total incerteza da vida nas periferias e no campo com a reconstrução mínima do tecido social – com redes de assistência médica, contatos para bicos de emprego, ou seja, aspectos focados na reprodução da vida e menos na realização de um outro futuro – possuem hoje uma capilaridade que as organizações revolucionárias em geral não conseguem ter. O exemplo das igrejas evangélicas entra aqui.
  1. Uma outra vantagem de entendermos a organização tanto como meio quanto como fim – ou ainda: não só como sujeito, mas também como substância, como coisa que se partilha, se usa, etc – é que podemos também sobreviver à inversão ou contração na relação entre presente e futuro: nesses momentos em que o futuro não pode ensinar sobre os caminhos do presente, é dos experimentos de associação real que iremos tirar lições sobre o que é possível esperar ou mesmo querer do futuro. Como vimos, Marx identifica na inversão própria da lógica da organização não apenas a satisfação de uma carência prévia, mas a criação de novas faltas – não é que os artesãos comunistas tinham a finalidade de comer e beber e usaram a revolução como desculpa pra fazer isso, a organização ensinou-os a desejar de outra forma: criar esse problema novo para eles – “como nos encontramos semana que vem?” – é o mais brilhante resultado da luta revolucionária. Isso significa que ao invés de entender a organização como uma solução para problemas que pre-existem a ela, podemos também entender a organização como um processo que cria problemas que nos pertencem, problemas pelos quais vale a pena viver (uma analogia com o amor aqui poderia ajudar: amar não resolve problemas da vida da pessoa que estava solteira, mas inventa problemas novos, de casal, que pertencem à intimidade dos amantes). E a verdade é que um pensamento só é independente quando é capaz de resolver problemas que ele mesmo criou – enquanto o comunismo for a teoria de “soluções não-capitalistas para problemas capitalistas” toda solução poderá ser acusada de compactuar silenciosamente com a reprodução do mundo como é (uma vez que a forma do valor é justamente uma forma que media a relação entre o valor e o não-valor). Por outro lado, hoje em dia, sem uma perspectiva de unidade que seja suficientemente indiferente ao futuro ou à finalidade determinada, é um deus nos acuda quando aparece um problema realmente criado por nós: alguma coisa externa ao nosso percurso deve ter dado errado – e o dedo coça para apontar quem se desviou do caminho.

O que nos traz ao segundo ponto, o problema da tática, que está ligado ao tipo de plasticidade nas formas de luta com as quais nos permitimos nos confundir ou nos associar.

Na hora de falar sobre a flexibilidade tática dos comunistas, você mencionou aquela passagem sobre “as concepções teóricas dos comunistas” e como elas são “a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente”. Ou seja, o comunista faz teoria a partir de constatações da realidade, seu princípio é não sair aplicando manuais de revolução advindos de outras épocas e situações. Mas a “expressão geral das condições reais” não inclui apenas aquilo que se altera positivamente, mas também aquilo que não cessamos de fracassar em mudar. É importante marcar esse ponto porque há uma área totalmente abandonada da teoria política marxista, que é a que faz a “análise concreta da situação concreta” das nossas próprias organizações coletivas.

Estamos acostumados a depreender da realidade traços do que seria a organização como “sujeito”: olhar o que quer esse ou aquele movimento popular, escutar as críticas que esses articulam das formas de organização do passado, analisar se suas táticas são adequadas ou não, etc. Mas considerar a maneira como as organizações fracassam frente aos seus objetivos mais concretos, os impasses que retornam apesar da “vontade política forte” dos militantes, isso é, considerar a organização como algo material, e reconstruir a história de como lidamos com essa matéria – isso aí a gente não sabe fazer muito bem. E é engraçado, principalmente num momento como o nosso, em que existem infinitas concepções de sujeito político informando infinitos coletivos e partidos diferentes, cada um indo pra um lado e rachando com o outro por conta dessas desavenças, às vezes quase impronunciáveis, mas o fato é que todas essas organizações, correntes e tendências esbarram nos mesmos problemas na hora de marcar uma reunião, fazer uma atividade, organizar um congresso, criar interlocuções com outras organizações e com o povo, respeitar as limitações materiais de seus militantes, etc. Ou seja, pode muito bem ser que hoje o sítio em que alguma coisa de comum aparece entre as diferentes formas de luta atuais seja menos nas lutas contra os outros e mais na luta contra nós mesmos, contra aquilo que não estamos conseguindo resolver em nenhuma das posições divergentes que tomamos.

Para efetivamente apreender a “expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente”, a flexibilidade tática não poderia portanto ser definida de saída como a escuta daquilo que funciona (ou seja, de meios adequados ao fim geral que conhecemos de antemão) nas organizações e formas de luta locais, mas tem que poder ser também a escuta do que não funciona – pois o princípio de unidade de uma dada conjuntura poderia se apresentar de ambas as formas. Mas se a organização for incapaz de construir e preservar uma unidade mínima perante os problemas sem solução, caso esses problemas realmente sejam o que temos em comum hoje, como é que poderemos acolher coletivamente os “problemas candentes do nosso movimento”? Ou ainda, termos base para, seguindo as Notas de um Publicista, “começar do começo de novo”?

Nosso segundo ponto: caso aceitemos que há um processo de inversão/obstaculização das organizações que é imanente a sua lógica, de modo que o negativo da luta é parte da luta, então o pensamento tático precisaria capaz de incluir na análise da conjuntura não apenas as novas formas positivas que os meios tomam em cada contexto histórico, as novas formas de luta, mas também àquilo que essas formas evitam ou não conseguem resolver. A gente pode tanto apoiar e “impulsionar” a unidade da esquerda em uma dada situação histórica encontrando aquelas lutas que positivamente unem as diferentes frentes de batalha da classe trabalhadora quanto aqueles pontos de impasse que produzem uma unidade igualmente local e real.

Podemos agora juntar os dois pontos, um sobre a estratégia (a relação entre presente e futuro pode se alterar historicamente) e outro sobre a tática (o negativo da luta pode ser o ponto de unidade de uma conjuntura) e ver no que dá.

Tudo isso, na verdade, influencia a nossa leitura do que Marx descreve como qualidade dos comunistas. Pra relembrar, aqui vai a passagem do Manifesto:

“Os comunistas se distinguem dos outros partidos operários somente em dois pontos: (1) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade; (2) Nas diferentes fases do desenvolvimento por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto. Na prática, os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do movimento proletário.”

Marx enumera aqui as características distintivas dos comunistas: (1) destacar o caráter internacional e comum de lutas que se expressam de maneira nacional e diversas, (2) representar os interesses da totalidade em um movimento cujas partes estão em diferentes fases de desenvolvimento. E ainda: (3) na prática, serem os mais resolutos (isso é, que não param na frente dos obstáculos) e os que impulsionam os demais (se esforçam para motivar e subjetivar), e (4) na teoria, compreender o melhor possível as condições, o curso e os fins gerais do movimento.

O que tentamos fazer em O fim da organização, e de novo aqui, foi propor uma releitura dos pontos (1), (2) e (3) a partir de uma expansão do que “condições, curso e fins gerais” quer dizer – expansão que propusemos a partir de um confronto entre o Manifesto e o fragmento dos Manuscritos que citamos lá em cima. À luz do que Marx sugere naquele fragmento, as “condições” do movimento não poderiam significar apenas o aspecto positivo de uma conjuntura, deveriam também incluir o que é impensável ou problemático numa dada situação. O “curso” não poderia significar apenas os instrumentos e movimentos políticos na medida em que esses têm uma função intermediária ou produtiva: precisaria ainda significar a possibilidade da inversão entre meios e fins, que transforma a vocação da organização coletiva de meio produtivo em um fim de reprodução da vida, ou mesmo em puro desvio da rota pré-estabelecida. E “fins gerais” não poderia significar apenas “finalidade” no sentido de objetivo futuro, mas precisa ser um conceito “geral” o suficiente para reconhecer “a nobreza da humanidade” na manutenção de um espaço onde os “artesãos comunistas” se apropriam de “novas carências”, ainda que essa atividade seja efetivamente sem propósito, ainda que não adicione nada ao progresso revolucionário.

Esse parágrafo aqui – o último do nosso texto – é o que condensa a maneira com que essa falta de propósito ou negatividade pura, que precisaria ser incluída na “compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do movimento proletário”, abriria uma nova perspectiva na qualificação do que é um comunista:

“Agora, munidos de uma teoria da “inutilidade” como uma dimensão importante da organização coletiva, podemos retomar as propriedades que definem o comunista lá no Manifesto (…) e perceber que a única maneira de entender a conexão interna entre todos esses pontos é justamente através da dimensão sem propósito da atividade política. Isso é, aquilo que excede a dimensão local de uma luta ou organização não é um “plano maior” ou uma “visão de cima”, mas é aquilo que não serve para nada nessa luta. Esse ponto de vista de uma certa indiferença às determinações locais é que toca no ponto de vista global. É também o supérfluo da convivência – a associação como um fim em si mesmo – que toca no que é comum a todas as diferentes pautas, muitas vezes incongruentes entre si. O ponto de vista do conjunto é também o ponto de vista que parte da “carência de conjunto”, digamos – da falta de atravessar fronteiras na socialização, carência a qual somos expostos através da própria organização. Além disso, é possível reformular a teoria da motivação para a luta no momento em que temos acesso à uma concepção ambivalente da inutilidade das organizações, ou seja, uma concepção menos devedora da teoria do trabalho funcional e produtivo para pensar a disciplina, o sacrifício, etc.”

O que tentamos mostrar aqui é que a tal “inutilidade” – categoria essa que está excluída do esquema do trabalho concreto, que baliza nossa teoria atual do que é realizar uma tarefa que sustenta o propósito de uma organização – pode ser capaz de oferecer um ponto de contato mais imanente às diferentes frentes de luta do que a expressão positiva de uma visão comum. Uma análise materialista e histórica da substância das organizações (e não apenas de seu valor estratégico), revelaria que todas as lutas organizadas, na medida em que estão sujeitas à um excesso sem propósito ou sem direção, sempre conterão uma dimensão separada de si mesmas. Se essa separação de seus objetivos se manifestará como uma separação da própria organização (sectarismo, divisão em outros coletivos, expulsão dos “desviados”, etc) ou se essa “mudança de curso” pode ser acolhida pela instituição ou coletivo, isso aí é de conjuntura, e faz parte da análise e trabalho na singularidade de cada organização. Mas abre-se aí uma dimensão não-nacional, não-diversa, desinteressada, não-parcial, de cada luta – e uma “compreensão” dessa dimensão como parte do “curso” do movimento significaria a expansão do aspecto distintivo “prático” dos comunistas: sua resolução e capacidade de impulsão. Pois aqueles que enxergam na negação da finalidade, ou mesmo nos problemas insolúveis um material ainda passível de socialização e unidade terão ainda mais fôlego para continuar, bem como uma concepção menos heroica ou voluntarista do que pode levar alguém a se engajar em uma organização.

Essa carta ficou já muito longa. Longa demais para comentários sobre um texto de seis páginas. Ainda mais longa se contarmos que isso aqui é uma coluna quinzenal. Com sorte as “colunas” seguintes terão um tamanho mais adequado. Mas a extensão dessa resposta é também fruto do fato que estamos ainda elaborando isso tudo. Em todo caso, esse debate pode ele mesmo servir de teste: ainda que possa se revelar totalmente inútil no “grande esquema das coisas”, como virá a ser significado o esforço – e o prazer – de escrever um longo texto sobre o destino e vocação da política comunista?

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