Coerção e forma jurídica: política, direito (internacional) e o Estado

Por China Miéville, traduzido por Pedro Davoglio

Autor de livros de ficção científica e literatura fantástica premiados, como o “A cidade e a cidade”, recentemente publicado no Brasil, China Miéville, é também um reconhecido autor marxista, cuja pesquisa é dedicada ao estudo do direito internacional. Sua tese de doutorado “Between equal rights: A marxist theory of international law” talvez seja o maior cânon marxista sobre o estudo do direito internacional. No presente excerto, que é o capitulo 4 da referida tese, o autor revigora o pensamento de Evgeni Pachukanis, jurista soviético, para determinar as implicações da forma jurídica para o Estado e para o direito internacional.


 1. O problema da política

Muitos críticos afirmam que não há espaço para a política na teoria de Pachukanis: este é, aparentemente, o seu problema mais tenaz. À medida que a “administração” é vista como política, o argumento exposto anteriormente de que tal administração ainda é derivada da própria forma jurídica é uma tentativa de resposta a esta questão. Contudo, ela não é suficiente. Tal integração da administração no interior da teoria da forma-mercadoria contribui de algum modo demonstrando como práticas políticas particulares podem andar de mãos dadas com a forma jurídica, mas deixa intocado o problema de compreender sistematicamente a relação entre a forma e o conteúdo do direito.

O próprio Pachukanis esteve preocupado em destacar a importância de não fetichizar a política, o conteúdo do direito, como a fonte da desigualdade entre as classes. “As categorias jurídicas fundamentais não dependem do conteúdo concreto das normas jurídicas, isto é, elas conservam a sua significação, mesmo quando o conteúdo material concreto se altera de uma ou outra maneira.” (PACHUKANIS, 1978, p. 47 [1988, p. 17]) Ele descreve aqueles marxistas que focam no “conteúdo concreto das normas jurídicas e no desenvolvimento histórico das instituições jurídicas” como não tendo “responsabilidade sobre a jurisprudência” (PACHUKANIS, 1978, p. 54 [1988, p. 20]).

Não obstante, Pachukanis considerou o seu trabalho uma correção à tendência de analisar o conteúdo jurídico isoladamente. Isso não significa que tal conteúdo não seja importante – mas apenas que se deve proceder a partir de uma base correta. Ele aceita como “legítimo, até certo ponto” (PACHUKANIS, 1978, p. 55), focar no conteúdo. Mas, ao fazer isso, explica Pachukanis, “tudo que obtemos é uma teoria que explica a emergência da regulação jurídica a partir das necessidades materiais da sociedade, e deste modo fornece uma explicação do fato de que as normas jurídicas conformam-se às necessidades materiais de classes sociais particulares” (PACHUKANIS, 1978, p. 55). Este não é um ponto de partida ruim. Mas, para superarmos um nebuloso funcionalismo de esquerda, o conteúdo do direito deve ser considerado um conteúdo de uma forma particular.

A teoria de Pachukanis é uma teoria da forma jurídica, mas isso não quer dizer que ela seja hostil ao exame de conteúdos jurídicos particulares[1]. Mesmo um de seus críticos observa que “o trunfo teórico de Pachukanis (…) foi estabelecer uma ligação entre o fetichismo da forma e o fetichismo do conteúdo” (FINE, 1979, p. 34). Contudo, ele deixou por examinar os mecanismos da relação entre forma e conteúdo. É isso que o deixa vulnerável a críticas de que não há espaço para uma política do direito – uma política do conteúdo jurídico – no seu trabalho.

Essa lacuna pode ser mais bem abordada do interior da sua própria teoria. Afinal de contas, enquanto a politização das leis não compromete a compreensão da forma jurídica, apenas com uma compreensão adequada da forma jurídica é que se pode captar o sentido dos processos de “uso político” do direito.

Um dos seguidores modernos de Pachukanis coloca a questão sucintamente:

Pachukanis é criticado por negligenciar o papel do direito como um instrumento de dominação de classe nas mãos da classe capitalista. Contra isso, duas coisas devem ser ditas. A principal forma da dominação de classe no capitalismo, de acordo com Marx, é aquela que resulta da propriedade exclusiva sobre os meios de produção por parte da burguesia, que faz com que o restante da população seja efetivamente proprietário apenas da sua força de trabalho. A teoria de Pachukanis mostra satisfatoriamente como o direito serve a essa forma de dominação ao mesmo tempo em que parece proteger igualmente os direitos de propriedade tanto do trabalhador quanto do capitalista. Não obstante os usos ou abusos de direito perpetrados pelos detentores do poder, Pachukanis visa a nos dar apenas a estrutura geral do direito. Ele não nega que no interior dessa estrutura aqueles que detêm o poder de fazê-lo usarão o direito para servir aos seus próprios fins. (REIMAN, 1995, pp. 134-5)

Jessop é mais direto:

Pachukanis foi atacado por supostamente ignorar o papel decisivo desempenhado pela repressão na ordem jurídica e no Estado burgueses. Essa crítica é injustificada. Pois Pachukanis não apenas subscreve integralmente (não importa se errônea ou acertadamente) a visão marxista-leninista do estado como uma máquina de repressão de classe e enfatiza o papel da raison d’état e da pura conveniência em determinadas áreas de sua operação (…), mas também fornece uma avaliação explícita da aparência contraditória do direito como liberdade subjetiva combinada com regulação externa e, de fato, tende a conferir um peso maior ao papel da violência organizada do que à vontade individual na esfera do direito público… (JESSOP, 1990, p. 60)

Seria excessivamente simplista considerar a teoria do direito de Pachukanis uma garrafa vazia no interior da qual qualquer conteúdo poderia ser derramado. Isso seria conceituar conteúdo e forma separadamente, como qualidades isoladas de uma formação social e, portanto, falhar em compreender a interrelação dialética entre os dois. Como propõe Chris Arthur,

de um ponto de vista dialético uma forma é a forma do seu conteúdo, e devemos objetar desde o início qualquer um que imagine que Pachukanis procurou escrever um tratado sobre as formas jurídicas abstraindo do seu conteúdo. Isso seria uma incompreensão. Ao caracterizar o direito como uma forma burguesa ele claramente está relacionando o direito a um conteúdo material definido – as relações sociais fundadas na troca de mercadorias (ARTHUR, 1978, p. 29).

Mais dois passos precisam ser dados, contudo. O primeiro é lembrar que as relações sociais do capitalismo não são simplesmente “relações sociais fundadas na troca de mercadorias”, mas são também relações sociais de exploração das desigualdades que assumem a forma do assalariamento. Para que se dê conta da forma salário é imprescindível aqui o desenvolvimento da forma jurídica. Argumentei – ao contrário de Pachukanis – que a forma de mercadoria da força de trabalho sob o capitalismo permite que a mercadoria seja subsumida à forma jurídica em si.  Consequentemente, como a forma jurídica encarna o conteúdo concreto das relações sociais fundadas na troca de mercadorias, em que a própria força de trabalho é universalmente mercantilizada, sob o capitalismo a forma jurídica também penetrará as relações particulares de exploração de classe da exploração capitalista. Para que fique claro: não é além de encarnar a igualdade formal abstrata da troca simples de mercadorias, mas ao fazer isso sob as condições particulares do capitalismo, que a forma-salário, local da exploração, é trazida para dentro do reino do jurídico como uma forma-mercadoria.

Essas derivações permanecem, entretanto, em um nível muito abstrato: as relações sociais capitalistas podem se manifestar juridicamente de muitas maneiras. E essa manifestação pode não se dar unilateralmente em favor dos interesses do capital: a luta de classes é intrínseca ao capitalismo, e a tentativa de “domesticar” a resistência significa que leis “progressistas” podem ser aprovadas pela força da classe trabalhadora – embora estas leis possam se converter em vantagem para o capital. A discussão de Marx sobre a legislação que limitava o dia de trabalho, por exemplo, demonstra como, embora as leis tivessem sido feitas por pressão da classe trabalhadora, elas resultaram numa melhoria das capacidades produtivas do capital (MARX, 1976, pp. 604-7)[2].

A discussão de Marx sobre a legislação fabril é importante não apenas quando ele debate a questão de como as leis raramente estão “a favor” ou “contra” uma classe particular. De modo mais crucial, ele estabelece, mesmo que de uma maneira ainda incipiente, uma teoria da imposição de conteúdos particulares à forma jurídica.

O capitalista defende o seu direito de comprador quando ele tenta tornar o dia de trabalho tão longo quanto possível (…).  Por outro lado (…) o trabalhador defende o seu direito de vendedor quando deseja reduzir o dia de trabalho para uma duração normal particular. Há aqui, portanto, uma antinomia, de direito contra direito, ambos igualmente marcados pelo selo da lei de troca. Entre direitos iguais, a força decide. (MARX, 1976, p. 344, ênfase minha)

Marx separou a afirmação de Reiman de que “aqueles com o poder de fazê-lo, usarão o direito para servir aos seus próprios fins” (REIMAN, 1995, p. 135) em dois argumentos separados. Um é o de que é muito provável que os poderosos sejam capazes de acomodar ou cooptar quaisquer intenções progressistas que estejam embutidas numa lei particular. O outro, mais fundamental, é de que comumente são os representantes dos poderosos que de fato fazem as leis, que impõem conteúdos políticos particulares à forma jurídica abstrata. Se, no final das contas, “a força decide”, então não há uma batalha equânime entre capital e trabalho. No interior das fronteiras de um Estado-nação, o capital tem ao seu lado o poder legislativo, como um braço do Estado burguês. Mas é ao flanco judicial do estado que, institucionalmente, dá-se o poder de forçar um conteúdo particular para dentro da forma jurídica.

Por que o estado e o direito tomam o lado do capital? Uma razão óbvia, apontada por Miliband, pode ser a posição de classe do judiciário.

As elites judiciais, como outras elites do sistema estatal, são montadas a partir dos estratos superiores e médios da sociedade: e aqueles juízes que não são provenientes daí claramente passam a integrá-los a partir do momento em que assumem seus cargos. Além disso, a inclinação conservadora que a sua situação de classe está então predisposta a criar é aqui reforçada fortemente pelo fato de que os juízes são (…) também recrutados dentre profissionais jurídicos, cuja disposição ideológica é tradicionalmente talhada em moldes altamente conservadores (…). Além disso, os governos que estão em posição de nomeação e promoção de juízes são mais suscetíveis de favorecerem homens que tenham precisamente essas disposições conservadoras  (…). A razão por que essas disposições ideológicas são importantes é óbvia – elas afetam muito a maneira como a função judicial é desempenhada. É geralmente aceito que juízes não são “máquinas de vender direitos”, ou os prisioneiros indefesos de um conjunto de marcos legais ou meros expositores do direito tal como eles o encontram (…). Há espaço, inevitavelmente, para a discricionariedade do juiz na aplicação do direito e para a criatividade judicial no afazer jurídico contemporâneo (…). Ao interpretar e criar o direito, os juízes não podem deixar de estar profundamente afetados pela sua visão de mundo. (MILIBAND, 1969, pp. 124-6)

Há pouco com que se discordar aqui, por mais longe que se vá. O problema com a posição de Miliband é a implicação pouco convincente de que a natureza capitalista do Estado (e do judiciário) burguês é essencialmente contingente à sua estrutura, e está arraigada exclusivamente ou mesmo primordialmente nas atitudes dos seus agentes.

O apontamento de Miliband de que o judiciário é um local de criação de direito está, contudo, absolutamente correto e encaixa-se perfeitamente à ênfase de McDougal no papel criativo da interpretação dos estatutos de direito internacional. Dentro dos limites de uma nação, é o estado enquanto autoridade suprema e os seus agentes que têm a autoridade final sobre a interpretação – e por isso a criação – do direito. Não é isso que acontece no direito internacional, e as implicações desta diferença se tornarão claras.

Se rejeitarmos a teoria do direito de Miliband, apesar de reconhecermos o monopólio estatal da interpretação jurídica autorizada no âmbito doméstico, a questão de como compreender o estado capitalista torna-se muito importante, tanto para captar o seu sentido como árbitro final do direito doméstico como para compreendê-lo como unidade do direito internacional. O escopo deste debate enorme só pode ser tocado de passagem aqui. Um aspecto do debate do estado, no entanto, é muito importante para este capítulo: o próprio Pachukanis é visto frequentemente como uma figura fundadora de uma teoria particular do Estado.

2. Pachukanis e a teoria da derivação do Estado

Tem-se afirmado que, como uma parte de sua teoria do direito, Pachukanis elaborou uma teoria do Estado burguês. Escritores associados àquilo que é compreendido como a sua posição são conhecidos como escola “lógica do capital” ou da “derivação do estado” – embora os autores abrangidos por essa definição discordem sobre muitos temas, eles estão unidos por um ponto de partida metodológico abstrato.

A principal preocupação da chamada da escola “lógica do capital” é derivar a forma do estado capitalista da natureza do capital e/ou estabelecer os pré-requisitos funcionais da acumulação cuja satisfação deve ser mediada pela atividade estatal. (JESSOP, 1990, p. 52)

A condição de Pachukanis como um padroeiro dessa escola é amplamente aceita, o que quer que se pense propriamente sobre ela[3], porque se afirma que ele “tentou derivar a forma histórica específica do direito burguês e o Estado a ele associado das qualidades essenciais da circulação de mercadorias sob o capitalismo”[4] (JESSOP, 1990, p. 52, ênfase minha).

Se isso estiver correto, então há no coração da própria teoria de Pachukanis um modelo daquele corpo coercitivo com monopólio do poder sobre a regulação jurídica doméstica. Se a forma jurídica é tornada concreta por meio dos poderes coercitivos do Estado burguês, e se o Estado burguês é derivado das mesmas relações sociais que o direito, uma sofisticada circularidade emerge. Isso responderia claramente à acusação de que Pachukanis falha em teorizar o político – isto é, os aspectos coercitivos do direito.

O ponto de partida para muitos dos derivacionistas do estado é a seguinte questão formulada por Pachukanis:

Por que é que o domínio de classe não se mantém naquilo que é, a saber, a subordinação de uma parte da população a outra? Por que é que ele reveste a forma de um domínio estatal oficial ou, o que significa o mesmo, por que é que o aparelho de coação estatal não se impõe como aparelho privado da classe dominante, por que é que ele se separa desta última e reveste a forma de um aparelho de poder público impessoal, deslocado da sociedade? (PACHUKANIS, 1978, p. 139 [1988, p. 95])

O argumento é que Pachukanis deriva o estado burguês, com a sua aparente neutralidade, sua irredutibilidade a um conjunto de interesses particularistas, das necessidades da mercantilização generalizada. Dada a universalização dos indivíduos jurídicos abstratos, apenas um árbitro abstrato em relação às exigências dos competidores – o Estado burguês – pode manter a sua igualdade formal. Jessop resume esta posição admiravelmente. No contexto de sua teoria do sujeito de direito,

Pachukanis tentou derivar a forma do Estado burguês como um aparelho de poder público impessoal distinto da esfera privada da sociedade civil. Ele argumenta que a forma jurídica do Rechtstaat (ou Estado baseado constitucionalmente no princípio da legalidade) característica das sociedades burguesas é exigida pela natureza das relações de mercado entre indivíduos livres e iguais. Estas devem ser mediadas, fiscalizadas e garantidas por um sujeito coletivo abstrato dotado de autoridade para fazer cumprir os direitos no interesse de todas as partes das transações jurídicas (JESSOP, 1990, p. 53).

Muito da teoria “derivacionista” é fascinante e fecundo teoricamente[5]. A questão, entretanto, é se a teoria do direito de Pachukanis e a sua aparente teoria do Estado são realmente inextrincáveis. Nós deveríamos começar examinando aquelas afirmações em que Pachukanis parece “derivar” o estado mais claramente.

A dominação de fato assume um pronunciado caráter jurídico, de direito público desde que, ao lado e independentemente dele, surgem relações que estão ligadas ao ato de troca, isto é, relações privadas por excelência. Na medida em que a autoridade aparece como o fiador destas relações, impõe-se como autoridade social um poder público, que representa o interesse impessoal da ordem. (PACHUKANIS, 1978, p. 137 [1988, pp. 92-3])

Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado estabelece-se, com efeito, como a vontade geral, impessoal, como a autoridade do direito etc. No mercado, como já foi visto, cada consumidor e cada vendedor é um sujeito jurídico por excelência. Nesse momento, quando entram em cena as categorias do valor, e do valor de troca, a vontade autônoma dos que trocam impõe-se como condição indispensável… A coerção, enquanto imposição fundamentada na violência colocando um indivíduo contra o outro, contradiz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mercadorias. É por isso que, numa sociedade de proprietários de mercadorias e dentro dos limites do ato de troca, a função de coação não pode aparecer como uma função social, visto que ela não é abstrata e impessoal. A subordinação a um homem como tal, enquanto indivíduo concreto, significa na sociedade de produção mercantil a subordinação de um proprietário de mercadorias perante outro. Eis a razão por que também aqui a coação não pode surgir sob a forma não camuflada, como um simples ato de oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que é exercida não no interesse do indivíduo donde provém (…) mas no interesse de todos os membros que participam das relações jurídicas. (PACHUKANIS, 1978, p. 143 [1988, pp. 97-8])

A teoria conforme descrita é intuitivamente atraente. Ela faz sentido como uma explicação do porquê é funcional para o capitalismo ter uma autoridade estatal abstrata garantindo a forma jurídica, e que, ao fazer isso, dá a essa forma um conteúdo concreto. Contudo, Pachukanis não vê o estado em si mesmo como logicamente necessário ao capitalismo.

A maioria das afirmações feitas em seu capítulo sobre “Direito e estado” (PACHUKANIS, 1978, pp. 134-50 [1988, pp. 90-103]) é histórica e mais ou menos contingente, em vez de rigorosamente lógica e necessária. Por exemplo: “à medida que o poder feudal assumiu o papel de fiador da paz, indispensável aos contratos de trocas, graças às suas novas funções, ele assumiu um novo caráter público que no começo lhe era estranho” (PACHUKANIS, 1978, p. 136 [1988, pp. 91-2], ênfase no original). Isso pode significar que o novo papel do poder feudal como um Estado abstrato o tenha tornado peculiarmente adequado a ser árbitro do direito, mas isso não é uma afirmação sobre a necessidade ou derivação da forma estatal burguesa.

Há outras formulações como essa: “o Estado moderno, no sentido burguês da palavra, surge no momento em que a organização do poder de grupo ou de classe abrange relações mercantis suficientemente extensas” (PACHUKANIS, 1978, p. 136 [1988, p.92]). “Ao lado do domínio de classe, direto e imediato, nasce um domínio mediato, refletido sob a forma do poder de Estado oficial enquanto poder particular, separado da sociedade.” (PACHUKANIS, 1978, p. 138 [1988, p. 94]) Essas afirmações podem ser verdadeiras. Mas elas são históricas e sugestivas, mais do que uma teoria sistemática da derivação do Estado.

Coisa, aliás, que elas nem pretenderam ser. No exato coração de sua suposta derivação, após ter exposto a “questão clássica” (BLANKE; JÜRGENS; KASTENDIEK, 1978, p. 121) sobre o porquê de a dominação de classe assumir a forma de um mecanismo impessoal, Pachukanis toma teorias inadequadas como objeto:

Não podemos nos contentar com a explicação segundo a qual é vantajoso para a classe dominante erigir um cenário ideológico e camuflar o seu domínio de classe por trás do paravento do Estado. Porque, embora tal explicação seja, sem dúvida alguma, correta, ela não determina a razão para que tal ideologia possa nascer e também, por conseguinte, por que razão a classe dominante pode servir-se dela. (PACHUKANIS, 1978, pp.139-40 [1988, p. 95], ênfase minha)

Assim, no ponto exato em que está exigindo rigor na teorização do Estado, o que ele insiste que precisa ser explicado é como o estado burguês abstrato pode surgir, não como “surgiu” ou como “deve surgir”. Assim, apesar de ele usar o termo “derivação”, esta não é uma teoria “derivacionista” em sentido forte.

Nada disso pretende negar que há um papel funcional poderoso no Estado burguês abstrato, nem que a teoria de Pachukanis faz um excelente trabalho ao demonstrar o porquê. O que se quer é mostrar que não há uma teoria da forma do estado burguês a ser “derivada” da teoria de Pachukanis, e que nem mesmo ele próprio pensou que houvesse.

Consideremos um aparte revelador. Novamente, no coração do seu momento aparentemente mais “derivacionista”, quando Pachukanis pergunta por que o aparelho de Estado não é um “aparelho privado da classe dominante”, mas “um aparelho de poder público impessoal, deslocado da sociedade” (PACHUKANIS, 1980a, p. 94 [1988, p. 95]), uma nota de rodapé chama a atenção.

Em nossa época, em que as lutas revolucionárias se intensificaram, podemos observar como o aparelho oficial do Estado burguês cede lugar às organizações armadas fascistas etc. Isto nos prova ainda mais uma vez que, quando abalado o equilíbrio da sociedade, esta não procura a sua salvação na criação de um poder situado acima das classes, mas na tensão máxima de todas as forças das classes em conflito. (PACHUKANIS, 1980a, p. 130, nota 47 [1988, p. 95, nota 129])

Assim, não há nada de inevitável na forma particular do Estado burguês. Mesmo que destaque a importância do Estado “abstrato” burguês, Pachukanis recorda ao leitor de que em conjunturas históricas particulares o próprio estado procurará alternativas, que incluem métodos menos abstratos para atingir seus fins, sem cessar de ser um estado capitalista: é o “aparelho oficial” que recua, não o Estado em si, que neste caso é o seu próprio corpo “procurando a sua salvação” por meio do recurso ao fascismo.

Admite-se que há momentos em que Pachukanis faz afirmações mais firmes em favor da tese da derivação. A longa passagem acima, em que ele fala sobre a coerção necessária sob o capitalismo e por que ela deve assumir a forma estatal burguesa representam, mais do que quaisquer outras, sua tentativa de derivar lógica e sistematicamente a necessidade de um Estado abstrato. Mas ela está baseada em uma falsa premissa.

“A coerção”, escreve ele, “enquanto imposição fundamentada na violência, colocando um indivíduo contra o outro, contradiz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mercadorias.” (PACHUKANIS, 1978, p. 143 [1988, p. 97]) Isso é absolutamente falso, e é um deslize característico – às vezes o formalismo excessivo de Pachukanis o leva a negligenciar a “riqueza” das contradições dialéticas inerentes às categorias aparentemente estáveis.

Eu argumentei que, contrariamente a algumas afirmações de Pachukanis, a disputa e a contestação são intrínsecas à mercadoria, à medida que a propriedade privada sobre ela implica a exclusão dos outros. De modo similar, a violência – coerção – está no coração da forma-mercadoria e também no do contrato. Para uma mercadoria significar incontestavelmente “minha-e-não-sua” – o que está, afinal, no centro do fato de que ela é uma mercadoria a ser trocada – algumas capacidades estão inevitavelmente implicadas. Se não houvesse nada capaz de sustentar que “o meu é meu”, não haveria nada que o impedisse de ser “seu”, e então ele não seria mais uma mercadoria, já que eu não o estaria trocando. A coerção está implícita. “Se a categoria do contrato, um ato conjunto de vontade fundado no mútuo reconhecimento, é considerada o modus original do direito, então ele é claramente uma forma que não pode existir sem constrangimento.”[6] (BLANKE, JÜRGENS; KASTENDIEK, 1978, p. 123)

E, num nível um pouco maior de concretude, levando a análise do nível individual para o social, a força deve ser uma condição geral para a manutenção das relações mercantis.

A razão é muito simples. As relações de propriedade existentes [i.e., não ainda relações de produção] sistematicamente separam os produtores dos objetos das suas necessidades, em uma base diária e contínua. Na produção de mercadorias, “necessidade” e “direito” permanecem opostos. A organização da sociedade existente constantemente impele os indivíduos, grupos, classes e outras coletividades a (…) “invadir os direitos dos outros”. Os motivos para violar, furtar, invadir, oprimir, roubar e transgredir de maneira geral os direitos de propriedade são continuamente recriados por meio da pressão das necessidades materiais.

Por isso esse sistema de relações sociais de produção gera uma exigência geral e permanente por meios de “defesa”, i.e., por meios de violência e sua organização. Sem uma constante ameaça e/ou aplicação de força, a produção de mercadorias correria o risco de rápida subversão e quebra. (BARKER, 1998, p. 27)

Em outras palavras, e contrariamente à afirmação feita por Pachukanis, a coerção escudada pela força está implicada de forma generalizada (e “é endereçada de uma pessoa a outra” – i.e., por todos os proprietários de mercadorias a todos os outros proprietários de mercadorias) na própria natureza da troca e produção de mercadorias. Para Barker, como a própria violência aparece como mais fundamental – no coração da mercadoria –, “a organização social da força necessária e a questão específica do estado ainda aguardam desenvolvimentos suplementares” (BARKER, 1998, p. 28).

Em outros termos, a passagem anômala em que Pachukanis parece ver o Estado abstrato como necessário é somente uma consequência de sua afirmação ocasional e errônea de que a violência não está no coração da mercadoria (eu devo mostrar em algum lugar deste texto que ele mantém uma percepção muito mais persuasiva da violência embutida). Na percepção de que a violência é integral à troca de mercadorias, a “política” – força coercitiva, violência – é trazida para mais perto, mas a sua forma específica – neste caso, o Estado burguês – não é tão fundamental, e certamente não é “necessária”.

Na maior parte do tempo, portanto, Pachukanis expõe explicitamente que a sua posição não é sistematicamente derivacionista, mas apenas o suficiente. E, mais ainda, no momento em que ele de fato tenta derivar a necessidade do Estado, a sua análise se quebra pois suas categorias não estão suficientemente nuançadas. Algumas das leituras mais interessantes de Pachukanis feitas pelos teóricos da derivação do Estado apontam a necessidade da política, mas não implicam a forma estatal burguesa. O seu foco na liberdade e na igualdade dos sujeitos da troca, dizem eles

nos levam (…) à categoria da forma jurídica e à necessidade de uma força que garanta o direito, uma força que se pode chamar de uma força (coercitiva) extraeconômica. Com isso queremos nos referir não tanto ao aparelho organizado (ou instrumento), mas essencialmente apenas a uma função básica que pode ser derivada no nível conceitual da análise da forma. Com isso, de modo algum chegamos “ao Estado”, mas a diferentes formas de relações sociais, nomeadamente relações econômicas e políticas, que são peculiares ao modo de produção burguês (BLANKE; JÜRGENS; KASTENDIEK, 1978, p. 121).

A teoria de Pachukanis implica coerção e política, mas não implica a necessidade de uma forma particular de organização dessa coerção. O Estado certamente “introduz clareza e estabilidade à estrutura jurídica” (PACHUKANIS, 1980a, p. 68), mas esta é uma função secundária.

Essa rejeição da teoria “lógica do capital” do Estado é importante: emerge daí que a ausência de uma teoria da derivação do estado em Pachukanis é a chave para compreender a natureza do direito e do direito internacional.

3. Direito (internacional) e contingência do estado

Longe de ser derivado, para Pachukanis o estado, como um árbitro abstrato, uma autoridade pública, é de fato contingente à forma jurídica. É isto que faz dele um teórico tão vital para o direito internacional: ele torna claro uma vez seguida da outra que a ausência de um soberano não faz do direito internacional menos “direito”. Pachukanis não nega a necessidade da coerção, mas está claro que uma coerção abrangente e abstrata, que “introduz estabilidade” e é funcional ao capitalismo que não está em crise, é extrínseca à forma jurídica em si.

É óbvio que a ideia de uma coerção externa, tanto idealmente quanto na sua organização material, constitui um aspecto essencial da forma jurídica. Quando nenhum mecanismo coercitivo foi organizado, e não se pode contar com a jurisdição de um aparelho especial que permanece acima dos partidos, ele aparece na forma de uma dita “interdependência”. O princípio da interdependência, sob as condições do equilíbrio de poder, representa a base singular, e pode-se dizer, instável, do direito internacional. (PACHUKANIS, 1980a, p. 108)

Nesse ensaio negligenciado sobre direito internacional, Pachukanis execra a jurisprudência burguesa pela quantidade de tinta gasta na questão de se a ausência de uma autoridade suprema significa que o direito internacional não é direito. Ele esclarece que tal autoridade não é necessária ou imanente ao direito.

Não importa o quão eloquentemente a existência do direito internacional seja provada, o fato da ausência de uma força organizacional que possa coagir um Estado com a mesma facilidade que um Estado coage um indivíduo permanece um fato. A única garantia real de que as relações entre Estados burgueses (…) repousam sobre a base da troca de equivalentes, i.e., uma base jurídica (na base do reconhecimento mútuo de subjetividades), é o equilíbrio de forças de fato.[7] (PACHUKANIS, 1980b, p. 179)

Sem nenhuma surpresa, toda vez que Pachukanis destaca a contingência da coerção externa organizada em relação ao direito, o direito internacional é usado como um exemplo. Tome-se a discussão em seu capítulo sobre “Norma e relação”, que é provavelmente a exposição mais rigorosa e cuidadosa do caso.

Nós podemos modificar a proposição mencionada e colocar em primeiro lugar não já a norma como tal, mas as forças objetivas reguladoras e atuantes na sociedade (…) se se entende como tal uma ordem particular, organizada conscientemente que garante e preserva essas relações, o erro lógico torna-se então inteiramente claro. Com efeito, não se pode afirmar que a relação entre credor e devedor seja criada pelo sistema coativo de cumprimento de dívidas existentes no Estado em questão. Esta ordem, existente objetivamente, garante certamente a relação, preserva-a, mas em nenhum caso a cria (…) podem-se imaginar os mais diversos graus de perfeição no funcionamento desta regulamentação social, exterior e coativa, e por conseguinte os mais diversos graus na preservação de certas relações (…) sem que estas relações sofram a menor modificação na sua própria existência. Podemos também imaginar um caso limite em que não exista, ao lado das duas partes que mutuamente entram em relação, uma terceira força capaz de estabelecer uma norma e de garantir a sua observância: por exemplo, um contrato qualquer entre habitantes do Var e os gregos. Contudo, mesmo neste caso, a relação permanece. (PACHUKANIS, 1978, pp. 88-9 [1988, p. 50]. As três primeiras ênfases estão no original, a final é minha.)

Daí Pachukanis segue para uma nota de rodapé reveladora.

Todo o sistema jurídico feudal baseava-se em tais relações contratuais não garantidas por qualquer “terceira força”. Igualmente o direito internacional moderno não conhece nenhuma coação organizada do exterior. Com certeza tais relações jurídicas não garantidas não se caracterizam pela sua estabilidade, mas isso não nos outorga o direito de negar a sua existência. (PACHUKANIS, 1978, p. 89, nota 9. [1988, pp. 50-1, nota 60])

Está claro que Pachukanis vê a autoridade abrangente ou qualquer forma particular de estado como contingente à relação jurídica existente entre duas partes formalmente iguais no contexto de uma relação de troca. No entanto, ele vai mais longe do que isso. Para Pachukanis, o próprio direito – em sua forma embrionária primeva – é um produto precisamente da ausência de tal autoridade.

O desenvolvimento do direito como sistema não foi gerado pelas exigências das relações de domínio, mas pelas exigências das trocas comerciais com aqueles povos que ainda não se encontram aglutinados numa esfera de poder único (…). As relações comerciais com as tribos estrangeiras, com os peregrinos, com os plebeus [em Roma…] originaram o jus gentium, esse modelo de superestrutura jurídica na sua forma pura. Contrariamente ao jus civile e às suas morosas formalidades, o jus gentium rejeita tudo o que não está ligado ao fim e à natureza da relação econômica que o fundamenta (…). Gumplowicz (…) engana-se quando pensa que o sistema do direito privado poderia desenvolver-se (…) derivando do poder público. (PACHUKANIS, 1980a, p. 69 [1988, p. 56], ênfase minha)

Para o estudioso do direito internacional, esta é uma iluminação teórica colossal. O debate considerado por Pachukanis em seu ensaio sobre o direito internacional não foi, depois de tudo isso, deixado para trás. “A preocupação central” desta disciplina, e cuja possibilidade de uma “resposta teórica” foi ‘rejeitada” por grande parte da teoria jurídica moderna[8] (KENNEDY, 1996, p. 400), é como, com a falta de uma autoridade suprema, o direito internacional pode ser direito. Pachukanis resolveu aqui, de passagem, o problema mais tenaz da juridicidade de um sistema jurídico descentralizado.

Para a teoria da forma-mercadoria, o direito internacional e o doméstico são dois momentos da mesma forma. Pachukanis afirma que o (proto-)direito internacional antecede historicamente o direito doméstico, não tendo isto nada que ver com qualquer primado ontológico putativo da esfera internacional: é, em vez disso, porque o direito é promovido por e necessário à relação de troca sistemática de mercadorias, ocorrida entre grupos organizados mas desiguais, que tais relações surgiram[9].

É claro que aí está apenas o gérmen do direito internacional. Para Pachukanis “o Tratado de Vestfália [em 1648…] é considerado o fato básico no desenvolvimento histórico do direito internacional moderno (i.e. burguês)” (PACHUKANIS, 1980b, p. 174). Pachukanis não oferece uma história do direito internacional teoricamente informada – as suas proposições históricas são úteis, mas esquemáticas. Ele esclarece, no entanto, que “apenas enquanto Estado burguês é que o Estado se torna completamente o sujeito do direito internacional” (PACHUKANIS 1980b, p. 174).

Em um nível isso é tautológico: a noção moderna do que seja “internacional” é inextrincável do desenvolvimento do Estado-nação, uma forma essencialmente moderna (capitalista). Nesse sentido, o direito internacional é por definição uma forma capitalista. No entanto, o que Pachukanis está enfatizando é que é nesta época que se encontram as mudanças que subjazem “à teoria do Estado como o sujeito solitário da comunidade jurídica internacional” (PACHUKANIS 1980b, pp. 173–4). Em outras palavras, o que nós poderíamos chamar de um proto-direito internacional, a forma jurídica que regula as relações entre grupos sociais organizados, precede o capitalismo e o Estado burguês. Apenas quando o estado burguês se torna o sujeito central dessas relações é que nós podemos com pleno sentido chamá-lo de direito internacional: isto é, quando o “internacional” nasce. Mas a forma das relações já existia.

Enquanto forma separada que coloca a si mesma fora da sociedade, o Estado emergiu em sua forma final apenas no período moderno capitalista burguês. Mas isso não quer dizer que as formas contemporâneas das relações jurídicas internacionais, e as instituições individuais de direito internacional, só surgem em tempos muito recentes. Contrariamente, elas traçam a sua história nos períodos mais antigos das sociedades de classes ou mesmo pré-classes. À medida que, inicialmente, a troca não era feita entre indivíduos, mas entre tribos e comunidades, pode-se afirmar que as instituições de direito internacional são as mais antigas instituições jurídicas em geral. (PACHUKANIS 1980b, p. 175)

Assim, o Estado é central para o desenvolvimento do direito, tanto doméstico quanto internacional, mas não para a forma jurídica em si[10].

4. Direito (internacional), política e violência

Há um problema em Pachukanis. Por um lado ele enfatiza a “juridicidade” das relações jurídicas sem uma autoridade suprema. Por outro, nós vimos que em certo ponto ele declara que a coerção, “enquanto imperativo endereçado de uma pessoa para a outra, e baseado na força”, é prejudicial às relações de mercadoria (PACHUKANIS, 1978, p. 143). O direito, entretanto, claramente exige força, como Pachukanis esclarece[11]. De onde, então, uma violência coercitiva do direito viria se não houvesse um Estado abstrato?

Eu argumentei, contra Pachukanis, que a violência e a coerção são imanentes às próprias relações de mercadoria. Se isso for aceito, o problema desaparece à medida que se torna claro que nos sistemas jurídicos sem autoridades supremas a autotutela – a violência coercitiva dos próprios sujeitos de direito – regula as relações jurídicas. A importância desta solução ao paradoxo de Pachukanis não deve ser superestimada. Mas ela é crucial para que se compreendam os mecanismos de direito internacional e a forma jurídica, e está no coração de uma análise pachukaniana do direito internacional e do imperialismo.

Está claro também que, não obstante os seus próprios comentários ocasionais em contrário, ao longo de todo o seu trabalho – particularmente quando discutiu o direito internacional – Pachukanis entendeu que esta era a natureza da coerção jurídica sem uma força suprema. Ele cita a “interdependência” ou “reciprocidade” “sob condições de equilíbrio de poder” (PACHUKANIS, 1980a, p. 108) ou de “equilíbrio real de forças” (PACHUKANIS, 1980b, p. 179) – um pano de fundo das relações mediadas por força – como a base da regulação jurídica internacional.

Na verdade, a compreensão de Pachukanis sobre a interpenetração entre força coercitiva e forma jurídica é profunda e sistemática, e não está isolada da sua discussão sobre direito internacional. Contradizendo a sua própria afirmação de que a coerção é antagônica à relação de mercadoria ele diz, por exemplo, que

a relação jurídica não pressupõe “por sua natureza” um Estado de paz do mesmo modo que o comércio não (…) impossibilita o roubo armado, mas anda de mãos dadas com ele. O direito e a autotutela, mesmo que pareçam conceitos contraditórios estão, na verdade, intimamente ligados (PACHUKANIS, 1978, p. 134, ênfase minha).

Compreender, como Pachukanis claramente faz, que o roubo (posse não consensual da mercadoria de outrem) anda “de mãos dadas” com o comércio (troca consensual de mercadorias), significa compreender que a violência está implícita na forma mercadoria, e consequentemente na forma jurídica. Se “meu” implica força para evitar que algo se torne “seu”, então o roubo é a falha desta força, e o sucesso de outra. Para Pachukanis, “ordem é na verdade uma mera tendência e um resultado final (jamais perfeitamente conquistado), mas nunca o ponto de chegada e o pré-requisito das relações jurídicas” (PACHUKANIS, 1978, p. 135).

Comparada a isso, e tendo-se em mente que a percepção da centralidade da coerção para o direito não está restrita a teóricos radicais, mas tem sido parte de algumas correntes dominantes da filosofia do direito desde pelo menos o final do século XIX (cf. JHERING, 1924, pp. 176–218 e passim), a incapacidade da maior parte das correntes dominantes do direito internacional de pensarem as sanções e a violência fica patente. Mesmo que obviamente haja exceções, a grande quantidade de escritos sobre este tópico e o reaparecimento repetitivo desse problema é fruto da petulância dos acadêmicos, para quem “a coerção acompanha o direito como uma sombra” (ZOLLER, 1984, p. xi), e de uma concomitante evasão da análise fantasiada de uma recusa de mentes elevadas em serem absorvidas por detalhes vulgares. “Está claro”, diz Shearer, por exemplo,

que uma exposição completa da (…) obrigatoriedade de uma força [no direito internacional], que abranja todos os casos e condições, seria dificilmente praticável. No entanto, há algo de pedante na própria noção de que tal exposição compreensiva é necessária ou desejável (SHEARER, 1994, p. 27).

Esse colapso da análise atinge níveis surpreendentes de crueza.

À parte as sanções e pressões (…) os principais elementos que reforçam o caráter obrigatório das regras de direito internacional são os fatos empíricos de que os Estados insistirão em seus direitos sob tais regras contra Estados que eles consideram que deveriam observá-las, e que os Estados reconhecem o direito internacional como obrigatório a eles (…). As razões derradeiras que impelem os Estados a apoiarem a observância do direito internacional pertence ao domínio da ciência política, e não pode ser explicada por uma análise estritamente jurídica. (SHEARER, 1994, p. 27.)

Shearer alega que a força de obrigatoriedade do direito internacional repousa sobre o fato de que os Estados a observam. Essa afirmação do fato a ser explicado como a sua própria explicação é claramente sem sentido. Como que ciente de que esta explicação não é satisfatória, Shearer descarta de modo débil esta questão como pertencente à ciência política e não ao direito. Ele está absolutamente certo em concluir o seu capítulo observando que “o problema da força de obrigatoriedade do direito internacional resolve-se em última instância juntamente com o problema do caráter obrigatório do direito em geral” (SHEARER, 1994, p. 27), mas como excluiu qualquer exame da sistematicidade da violência no direito ou no direito internacional, ele não pode nem mesmo abordar uma solução. De modo similar, Akehurst afirma que

não é convincente estudar qualquer sistema jurídico em termos de sanções. É melhor estudar o direito como um corpo de regras que geralmente são obedecidas, sem se concentrar exclusivamente no que ocorre quando as regras são quebradas. Não se deve confundir a patologia do direito com o próprio direito (AKEHURST, 1987, p. 7, ênfase minha).

Aqui o fracasso da análise é resoluto. A noção de transgressão do direito, de disputas moderadas pela coerção, é patológica ao direito, é extraordinária, em vez de elemento fundamental do tecido jurídico. Em contraste, Pachukanis casualmente esclarece isso.

A Russkaya Pravda (…) contém 43 artigos (…). Apenas dois artigos não estão relacionados com violações do direito civil ou criminal. Os artigos restantes ou determinam uma sanção, ou então contêm as regras procedimentais aplicáveis quando uma regra foi violada. Por conseguinte, a transgressão à norma sempre constitui a sua premissa. (PACHUKANIS, 1980a, p. 110, ênfase minha)

Direito e violência estão inextrincavelmente ligados como reguladores de reivindicações soberanas. Pachukanis pode, então, esquadrinhar dois pontos de vista aparentemente opostos em Marx. Um é a ênfase na igualdade jurídica e na troca de equivalentes. O outro é a afirmação de que “até mesmo o direito do mais forte é direito”[12] (MARX  apud PACHUKANIS, 1978, p. 134). Mediando essas duas concepções, e uma solução ao paradoxo de Pachukanis apresentado acima, há outra passagem de Marx: “entre direitos iguais, quem decide é a força” (MARX, 1976, p. 344, ênfase minha).

Por um lado, o direito é uma relação abstrata entre dois iguais, por outro, Marx indica a imposição nua do poder como uma forma jurídica. “Isso não é um paradoxo”, esclarece Pachukanis, já que “o direito, como a troca, é um expediente ao qual recorrem elementos sociais isolados em suas relações uns com os outros” (PACHUKANIS 1978, p. 134) – bem como a violência. Na ausência de uma “terceira força” abstrata, a única violência regulatória capaz de defender a forma jurídica, e de preenchê-la com um conteúdo particular, é a violência de um dos participantes.

É por isso que “direito e autotutela (…) estão, na verdade, ligados de modo extremamente íntimo” (PACHUKANIS 1978, p. 134). E é por isso que, aponta Pachukanis, na ausência de um soberano, “o direito internacional moderno inclui um grau muito considerável de autotutela (medidas de retaliação, represálias, guerras e assim por diante)” (PACHUKANIS 1978, p. 134).

A violência é intrínseca ao direito, mas é na ausência de um soberano que a violência preserva o seu caráter particularista, em vez de um caráter abstrato impessoal (Estado). Pachukanis expressa isso nesta passagem extremamente importante.

O sujeito jurídico, com toda a esfera de domínio jurídico, foi morfologicamente precedido pelo indivíduo armado, ou, com maior frequência, por um grupo de homens (gens, horda, tribo), capaz de defender no conflito, na luta, o que para ele representava as suas próprias condições de existência. Esta estreita relação morfológica estabelece uma clara ligação entre o tribunal e o duelo, entre as partes de um processo e os protagonistas de uma luta armada. Porém, com o crescimento das forças sociais reguladoras, o sujeito perde a sua concretização material. No lugar de sua energia pessoal nasce o poder da organização social, isto é, da organização da classe, cuja expressão mais elevada se encontra no Estado. (PACHUKANIS, 1978, p. 118 [1988, p.76])

Onde não há tais “forças sociais reguladoras”, a coerção permanece incorporada nos participantes. A teoria do direito internacional enfatiza a autotutela como o meio de sanção do direito internacional (AKEHURST, 1970, p. 6; KELSEN, 1968, p. 88 e passim). A proximidade morfológica do sujeito de direito e da unidade armada está mais clara no direito internacional do que em qualquer outro lugar.

Não é nenhuma surpresa, dada a proximidade entre direito e força, que “a melhor parte” das normas de direito internacional “refiram-se à (…) guerra (…). Ela assume uma condição de luta aberta e armada” (PACHUKANIS, 1980b, p. 169). Essas leis, destinadas a regular a violência política dos Estados são certamente direito “público”: na verdade, o que é usualmente designado como “direito internacional” é precisamente “o direito internacional público”[13]. Eu mostrei que para a teoria da forma-mercadoria o direito internacional representa de algum modo uma forma simplificada das relações jurídicas, e ainda consiste em direito “público”, que Pachukanis afirma ser secundário e derivado do direito “privado”. Isso pode parecer um paradoxo para a teoria da forma-mercadoria.

Para Pachukanis, contudo, na ausência de uma autoridade soberana, precisamente porque a violência coercitiva inerente às relações de mercadoria/jurídicas entre indivíduos abstratos e iguais deve ser inerente aos próprios participantes, relações políticas “públicas” são relações de comércio. O público e o privado são inextrincáveis aqui. À medida que as unidades das relações jurídicas são formalmente iguais, “a luta entre Estados imperialistas deve incluir o comércio como um de seus componentes. E se as trocas são concluídas, então as formas também devem existir para a sua conclusão” (PACHUKANIS, 1980b, p. 169) – o que significa violência.

Para o direito internacional, portanto, a questão da “derivação” do público a partir do privado é sem sentido. Esta interpenetração ocorre porque “o desenvolvimento do direito de guerra não é nada além da consolidação gradual do princípio da inviolabilidade da propriedade burguesa” (PACHUKANIS, 1980a, p. 128, nota 30).

Sem uma terceira força – i.e., na sua forma mais simplificada – a forma jurídica não poderia atualizar a coerção necessária para a sua existência fora das capacidades coercitivas dos participantes. É verdade, em outras palavras, que o direito privado é a base do direito público, como nós o percebemos a partir do interior de um Estado, separado de todos os outros, mas essa distinção só adquire significado como o resultado de uma superimposição do Estado sobre a forma jurídica. Em sua forma radicular – e no direito internacional – o direito era simultaneamente abstrato e particularista – “público” e “privado”. “Não havia distinção”, diz Pachukanis sobre o direito embrionário, sem uma terceira força, e também sobre o direito internacional, “entre o direito como uma norma objetiva e o direito como poder” (PACHUKANIS, 1980a, p. 44).

4.1 Forma, conteúdo, economia e política no direito internacional

Tentei mostrar como a forma jurídica existe entre os sujeitos de direito internacional. Mas e quanto ao conteúdo do direito internacional?

A afirmação de Chris Arthur de que a forma é a forma do seu conteúdo implica que o conteúdo de um direito doméstico sob o capitalismo seja – em um nível abstrato – aquele da exploração de classe baseada na extração do mais-valor na produção, e da luta de classes concomitante. Estas, contudo, não são as relações entre as unidades do direito internacional, os estados.

Nesse ensaio sobre direito internacional, Pachukanis esclarece o que essas relações são, e portanto qual é o conteúdo social do direito internacional. “Os exemplos históricos aduzidos em qualquer manual de direito internacional proclamam solenemente que o direito internacional moderno é a forma jurídica da luta dos Estados capitalistas entre si pela dominação sobre o resto do mundo.” (PACHUKANIS, 1980b, p. 169, ênfase original) A “luta dos Estados capitalistas entre si” é o “conteúdo histórico real escondido por trás” da forma jurídica (PACHUKANIS, 1980b, p. 169).

O “conteúdo real” do direito nesse nível ainda é muito abstrato. Há vários métodos pelos quais o “conteúdo real” poderia ser concretizado por meio da forma jurídica em leis particulares. Nós devemos aproximar a análise do concreto.

Para Pachukanis a formalização do Estado como um sujeito de direito internacional foi o outro lado da moeda do processo por meio do qual o estado finalmente consolidou o seu papel como uma “terceira força” abstrata que regula a forma jurídica internamente. Se, por um lado, a burguesia “subordinou-se à máquina do Estado” (PACHUKANIS, 1980b, p. 174), ao mesmo tempo esta mesma máquina do estado age em favor do “capital nacional”.

Sobre os interesses perseguidos pelos Estados capitalistas, Pachukanis cita com aprovação (PACHUKANIS, 1980b, pp. 169–70) o Imperialismo, etapa suprema do capitalismo de Lênin (embora sem nenhuma explicação encerre a citação logo antes que ela entre no cerne da questão):

A época do capitalismo contemporâneo mostra-nos que se estão a estabelecer determinadas relações entre os grupos capitalistas com base na partilha econômica do mundo, e que, ao mesmo tempo, em ligação com isto, se estão a estabelecer entre os grupos políticos, entre os estados, determinadas relações com base na partilha territorial do mundo, na luta pelas colônias, na “luta pelo território econômico”. (LÊNIN 1939, p. 75 [1916])

Para Lênin é a interpenetração particular do capital tardio, cartelizado e monopolista com o Estado que leva à expropriação de territórios pelo colonialismo e pela guerra no século XX. As ramificações dessa análise para o direito internacional serão desenvolvidas adiante no Capítulo 6. Aqui eu apenas destacarei brevemente que, apesar das particularidades históricas da teoria de Lênin, é verdadeiro dizer que a luta entre os países capitalistas é baseada na divisão econômica do mundo, e que a divisão econômica é levada a cabo politicamente pelo Estado, que repousa, por sua vez, sobre o sistema econômico capitalista.

É claro que esta não é uma teoria sistemática do Estado capitalista, mas ela é uma justificativa teórica preliminar para a intuição de que a luta entre os estados capitalistas é mais do que uma luta entre Estados que por acaso têm economias capitalistas. Trata-se de uma luta por recursos para o capital. É isso que torna o estado um estado capitalista. Isto não é um retorno à “lógica do capital”, e nem, por outro lado, usar abusivamente a “autonomia” do estado para esquecer-se da sua relação com o capital – a “interdependência estrutural” significa que “as receitas do estado e a sua própria capacidade de se defender contra outros estados depende (…) da continuidade da acumulação do capital” (HARMAN, 1991, pp. 13; 15).

Se concordarmos com Pachukanis, portanto, o “conteúdo histórico real do direito internacional (…) é a luta entre Estados capitalistas” (PACHUKANIS, 1980b, p. 172), uma luta contínua e impiedosa pelo controle sobre os recursos do capitalismo, que, ao passo que envolve partes do processo competitivo (“econômico”) capitalista, frequentemente extravasa em violência “política”.

Mesmo aqueles acordos entre Estados capitalistas que parecem estar dirigidos por interesses gerais são, de fato, para cada um dos participantes um meio de proteger egoisticamente os seus interesses particulares, prevenindo a expansão da influência dos seus rivais, frustrando conquistas unilaterais, i.e., continuando de outra forma a mesma luta que existirá por tanto tempo quanto a competição capitalista exista. (PACHUKANIS, 1980b, p. 170)

O que emergiu é uma circularidade fascinante. O capitalismo é baseado na troca de mercadorias, e eu tentei mostrar que a violência é imanente a tal troca. Contudo, a universalização desta troca tende a levar a uma abstração do Estado como uma “terceira força” para estabilizar as relações. Assim, política e economia foram separadas. No mesmo momento, a contraface desta separação e da criação de um corpo político público foi a investidura daquele corpo – o Estado – como um sujeito daquelas relações jurídicas que existiam já havia um longo tempo entre os entes políticos, e que agora se tornou o direito internacional burguês. Mas esse processo precisava da autorregulação das relações jurídicas internacionais por seus sujeitos; esta autotutela tinha, ao mesmo tempo, uma função “política” e “econômica”. É, portanto, uma manifestação do colapso da distinção entre política e economia existente na própria dinâmica que as havia separado.

Nós identificamos as relações sociais que construíram o conteúdo do direito internacional como sendo a competição entre os Estados capitalistas. Vimos também que o poder faz direito, que a força coercitiva necessária será sustentada pelos participantes das relações jurídicas. E, é claro, que ela não será sustentada igualmente.

O direito internacional burguês em princípio reconhece que os Estados têm direitos iguais, mesmo que na realidade eles sejam desiguais em sua significância e seu poder. Por exemplo, cada Estado é formalmente livre para escolher os meios que considere necessário aplicar no caso de infrações dos seus direitos: “contudo, quando um Estado poderoso faz saber que responderá a uma lesão com a ameaça de, ou com o uso direto da força, um Estado menor meramente oferece resistência passiva ou é compelido a ceder.” Esses benefícios dúbios da igualdade formal não são gozados por aquelas nações que não tenham desenvolvido uma civilização capitalista e que estejam comprometidas com as relações internacionais não como sujeitos, mas como objetos da política colonial dos estados imperialistas.[14] (PACHUKANIS, 1980b, p. 178)

Embora fale aqui de um colonialismo apenas formal, conforme demonstraremos abaixo, pode-se facilmente traduzir a observação de Pachukanis em uma assertiva mais geral sobre o comportamento dos Estados capitalistas em suas interações. O fato é que embora ambas as partes sejam formalmente iguais, elas têm acesso desigual aos meios de coerção, e portanto não são igualmente capazes de determinar nem as políticas nem os conteúdos do direito.

Dado que a forma jurídica é a mesma no direito internacional e no direito doméstico, está claro que a indeterminação previamente apontada é inerente a essa forma tout court, algo sobre o que Pachukanis é claro[15]. A aparente “determinação” do conteúdo jurídico no direito doméstico é unicamente um produto do fato de que internamente o Estado tem o monopólio da violência legítima. E é apenas o direito eficaz que pode ser considerado de fato direito em termos materialistas. O policiamento do direito de acordo com os editos do judiciário estatal quanto aos conteúdos que garantem o monopólio estatal da interpretação legítima é decisivo aqui.

Sem aquela terceira força o policiamento da forma, e portanto a sua interpretação – a sua investidura com um conteúdo particular –, é deixada a cargo dos próprios sujeitos. É por isso que um Estado menos poderoso ou “oferece resistência passiva ou é compelido a ceder”. E é assim que os conteúdos e as normas particulares que atualizam o conteúdo geral das relações sociais competitivas são investidos da forma jurídica.

4.2 O insólito casamento entre Pachukanis e McDougal

As teorias de Myres McDougal – apologista reacionário dos Estados Unidos e jurista profissional – e Evgeny Pachukanis – revolucionário bolchevique (do período inicial) e crítico do direito – têm pontos de conexão fascinantes. Até certo ponto, cada um complementa e preenche lacunas do outro.

Eu não pretendo afirmar aqui nenhuma equivalência teórica. O trabalho de Pachukanis é baseado em um método dialético e histórico, e contribui para uma teoria totalizante, uma conceituação detalhada e rigorosa do mundo; a teoria de McDougal é baseada em noções idealistas e nebulosas de poder e de política, um individualismo reducionista e pré-teórico. No entanto, a teoria de McDougal sobre o direito internacional como um processo é convincente, e está quilômetros acima do manual formalista da maioria dos teóricos do direito internacional. Eu tenho sugerido que muitas das falhas na sua concepção de “interesse nacional” e de “poder”, por exemplo, poderiam ser resolvidas a partir do interior de um paradigma materialista alternativo, que fosse capaz de manter a teoria processual em si. O grande problema na teoria de McDougal, contudo, permanece a questão do por que certos processos políticos reconhecidos se tornam direito – em outras palavras, de onde é que vem a forma jurídica?

Com a teoria jurídica da forma-mercadoria, a ascendência, generalização e tenacidade da forma jurídica é enraizada diretamente nas relações comerciais. Dado que as relações entre Estados soberanos são aquelas relações de igualdade abstrata existentes entre proprietários privados – um fato reconhecido pelo direito internacional dominante desde Grotius[16] –, temos aqui uma resposta à questão de McDougal. A forma jurídica será a forma adquirida pelo processo político de luta entre Estados em que as relações entre esses Estados são baseadas na soberania que significa propriedade privada, domínio sobre o seu próprio território[17]. Essas são, finalmente, as condições necessárias para a troca de equivalentes.

Quanto ao que McDougal pode oferecer à teoria da forma-mercadoria, sua descrição franca de como os processos políticos particulares tornam-se direito é inestimável para compreender a mudança dos conteúdos políticos da forma jurídica abstrata. “Em uma jurisprudência relevante”, diz ele, “o direito internacional será explicitamente concebido como um processo compreensivo de decisão baseada na autoridade” (LASSWELL; MCDOUGAL; PREISNER, 1968, p. 202). Para que uma decisão tenha autoridade – para uma interpretação particular capaz de vencer os rivais – ela deve ser garantida pela força coercitiva mais poderosa em uma relação jurídica particular.

É por isso que o direito internacional é uma forma paradoxal. Ela é simultaneamente uma relação genuína entre iguais, e uma forma na qual os Estados mais fracos não podem esperar vencer[18]. Este é, mais do que qualquer simples colapso do poder político, o significado das palavras de Marx de que “entre direitos iguais, é a força quem decide”.

É claro que, como não há um Estado supremo, o participante mais forte da relação jurídica pode declarar o conteúdo da forma jurídica como sendo uma interpretação particular, e – com a sua força coercitiva superior – pode agir como se assim fosse e estabelecer os fatos, mas isso não significa que a sua interpretação seja aceita universalmente. Onde há um monopólio da interpretação, onde a forma jurídica é tornada manifesta em estatutos publicados pelo Estado, é muito mais difícil questionar a interpretação decidida a partir de direitos particulares.

De modo geral, há dois níveis de política, de coerção, envolvidos na consubstanciação da forma jurídica. O primeiro é dar conteúdo à forma decidindo em abstrato que tipo de ação será legítima ou não; o segundo é decidir, nesta base, se um ato concreto particular é legítimo. No âmbito doméstico, os advogados podem muito bem argumentar com o Estado que os seus clientes não são culpados de um crime particular, mas é virtualmente impossível que eles argumentem que a ação em si não é de fato um crime. Isto, contudo, não opera no direito internacional, em que não há monopólio nem mesmo naquele primeiro nível de interpretação.

Tome-se o exemplo das represálias, discutido no Capítulo 2. O debate entre juristas não é se esta ou aquela ação é uma represália, e portanto, é ilegal, mas se represálias enquanto tais são ilegais. Aqui, a importância da decisão “competente” é chave. Finalmente, a maioria dos escritores concorda que represálias são ilegais. Contudo, à medida que Israel, por exemplo, é capaz de interpretar represálias como legais (cf., por exemplo, BLUM, 1970; DINSTEIN, 1994), de afirmar claramente que suas atividades são represálias, e tem um poder suficientemente forte (com o apoio dos Estados Unidos) para vencer qualquer silêncio ou dissidência, então é sem sentido dizer que as represálias são funcionalmente ilegais[19].

Isso tampouco significa que elas são “legais”: o direito é indeterminado, e a questão da sua legalidade é irrespondível abstratamente. Tudo que se pode decidir é se, em uma conjuntura concreta particular, represálias (ou qualquer outra atividade) são tratadas como ilegais[20]. Portanto, é perfeitamente possível que as represálias sejam funcionalmente “legais” em um conflito e “ilegais” em outro, simultaneamente.

5. Problemas

Os críticos podem afirmar que, aqui, toda a teoria jurídica naufraga. Ao reconhecer que uma mesma ação pode ser simultaneamente legal e ilegal não estaríamos ridicularizando a própria noção de direito?

Essa afirmação, contudo, repousa sobre uma visão já desacreditada de que o direito é um sistema de normas e regras. É a crítica desta posição que constitui o ponto de partida compartilhado por McDougal e Pachukanis. McDougal diz que “a obscuridade fundamental na teoria contemporânea do direito internacional (…) começa na própria definição do direito internacional como um sistema de regras” (MCDOUGAL, 1953, p. 143). Pachukanis diz que “a visão dominante coloca o direito objetivo ou a norma como a base da relação jurídica”, mas “o direito como uma totalidade de normas não é mais do que uma abstração sem vida” (PACHUKANIS, 1980, p. 62; cf. também pp. 62–74). .

Daqui em diante ambos seguem direções opostas. McDougal enfatiza o processo em abstrato e Pachukanis se baseia no processo existente entre os sujeitos de direito, teorizando-o como uma relação. Contudo, ao tratarem a dinâmica como oposta à estática, eles compartilham do entendimento de que as normas particulares são historicamente contingentes. O simples fato da mudança histórica ou a revogação de certas normas jurídicas ilustra este dado.

Uma ordem jurídica não é definida pelo conteúdo das suas normas, mas pelo tipo de relações que ela regula – i.e., aquelas entre unidades abstratas iguais. Nós vimos que o direito é indeterminado, que ele é um processo, que o seu conteúdo é determinado de acordo com o contexto político. A coexistência de normas contraditórias na arena internacional é meramente uma evidência extraordinariamente clara de que conteúdos diferentes podem assumir a forma jurídica.

O conteúdo de uma norma é o produto daquilo que é usualmente chamado, especialmente na jurisprudência politicamente orientada [policy-oriented], “decisão autoritativa” (ver MCDOUGAL, LASSWELL; REISMAN, 1981) e que poderia ser mais bem denominada como interpretação coercitiva. Ele permanece, portanto, em aberto. Onde não há monopólio da interpretação não há qualquer motivo para haver dois conjuntos de afirmações, interpretações contraditórias podem não estar baseadas em uma força coercitiva superior em cada um dos casos. É por isso que, como aponta Pachukanis, “a prática dos diferentes Estados em certo tempo, e a prática do mesmo Estado em tempos diferentes, são muito diferentes uma da outra” (PACHUKANIS, 1980b, p. 182).

Como estamos acostumados a viver em Estados dotados de autoridade suprema, interpretações contraditórias das normas jurídicas nos parecem algo raro: mas elas são um corolário inevitável da teoria da forma jurídica e do processo jurídico. E mais, a arena jurídica internacional está repleta de tais disputas entre juristas e estados. “A fonte das normas de cada direito internacional consuetudinário é formada a partir das opiniões de ‘autores’, ou acadêmicos”, Pachukanis nota sarcasticamente, “que frequentemente diferem decisivamente um do outro em cada questão.” (PACHUKANIS, 1980b, p. 182). O consenso pode emergir, é claro[21], mas a sua ausência não gera um colapso do direito.

Há uma segunda crítica, mais séria, a ser levada em conta por esse tipo de teoria centrada na interpretação. Ela fica clara na crítica de Young a McDougal.

Quando o direito é definido em termos de decisões autoritativas e efetivas (…) o conceito tende a perder seu poder de diferenciação para muitos casos (…). Essa concepção encoraja a inclusão de tantas coisas sob a palavra direito (…) que às vezes torna-se difícil identificar o próprio direito (…) e portanto analisar as conexões entre direito e os vários outros aspectos do sistema social. (YOUNG, 1972, p. 64)

Essencialmente, a questão é: como, nesta teoria, podem-se distinguir relações jurídicas de relações não jurídicas? O mote da análise até aqui foi certamente o colapso das distinções nítidas entre a política e a arena abstrata do “direito”.

No Capítulo 1 argumentei que McDougal não poderia explicar o porquê de as relações sociais tomarem a forma do direito, e isso porque ele não tem uma teoria da forma jurídica. Ao resgatar Pachukanis, portanto, miramos nesta lacuna e talvez tenhamos resolvido o problema. Essas relações são jurídicas à medida que regulam disputas entre indivíduos baseadas na propriedade privada.

Em uma sociedade com relações de produção e troca universal de mercadorias, contudo, é fato que quase todas as relações (inclusive aquelas entre os Estados) poderiam ser vistas como construídas sobre a fundação da equivalência abstrata. A crítica de Young, no entanto, provém do lado oposto. Inicialmente foi dito que McDougal não poderia explicar onde o direito começa; e agora poderia ser dito contra Pachukanis que ele não pode explicar onde o direito acaba. Sem uma compreensão da forma jurídica, a teoria processual de McDougal não poderia explicar por que uma relação tomaria a forma do direito: com a teoria da forma-mercadoria a postos, por um acaso teríamos nos tornado incapazes de explicar por que uma relação não tomaria essa forma?

Pachukanis faz algumas observações que tocam nessa questão. Ele fala sobre a natureza instável do direito internacional e propõe a questão dos seus limites.

Em períodos críticos, quando o equilíbrio de forças flutua muito, quando os “interesses vitais” ou mesmo a própria existência de um Estado entram em questão, o destino das normas de direito internacional torna-se extremamente problemático (…). A melhor ilustração disto é fornecida pela última guerra, de 1914-1918, durante a qual ambos os lados violaram continuamente o direito internacional. Com o direito internacional em uma condição tão lamentável, os juristas burgueses podem ser consolados apenas pela esperança de que, por mais profundamente que o equilíbrio tenha sido perturbado, ele será reestabelecido: a mais violenta das guerras deve em algum momento ser encerrada com a paz (…) os governos retornarão à objetividade e ao compromisso, e as normas de direito internacional encontrarão novamente a sua força. (PACHUKANIS, 1980b, p. 179)

A acusação de que o direito internacional foi “continuamente violado” durante a guerra precisa de um exame mais próximo. Dado que, na análise desenvolvida, o mesmo ato pode ser funcionalmente “legal” e “ilegal” simultaneamente, é difícil ver como essas ações – ou qualquer outra – podem ser definidas como violações ao direito.

Primeiro, contudo, devemos lembrar que Pachukanis não nega que haja algumas normas de direito internacional que são compartilhadas, i.e., interpretações não controversas, embora se deva deixar claro o quão pequeno é este número. Além disso, para ilustrar como a interpretação é geralmente dirigida por conveniência política, um exame da gravação de 1940 da Corte Permanente de Arbitragem da Liga das Nações nos dá alguma ideia de como são poucos os casos “incontroversos”.

Juízes que eram nacionais de partes que estavam mediante a Corte votaram em favor dos seus países em 95% dos casos. Nos quatro casos em que um juiz votou contra o seu próprio país, três foram decididos de maneira unânime. Em outras palavras, a situação jurídica era tão óbvia que teria sido muito difícil desviar da decisão da Corte. (GREWE, 2000, pp. 614–5)

Nesse exemplo, em apenas 3% dos casos a aplicação da norma pareceu autoevidente[22]. É claro que sustentar que o direito é indeterminado não significa que, nesses casos “incontroversos”, o direito tenha de fato encontrado algum limite de “interpretabilidade”, que este seja o “real” significado de uma lei. É apenas uma admissão de que os fatos dos casos particulares variam com a mesma facilidade com que argumentos podem ser construídos, e nesses exemplos nenhum contra-argumento foi estabelecido – não que nenhum contra-argumento poderia ter sido estabelecido. Mas o ponto de Pachukanis é que, em um Estado de crise política como a guerra, os Estados quererão quebrar até mesmo aquelas regras compartilhadas e pactuadas por todos. Portanto, quando há ações políticas que transgridem uma norma incontroversa, nós podemos dizer com razão que essas ações são “puramente” políticas, em vez de legais – e que são de fato funcionalmente ilegais.

O foco na materialidade do direito significa que, se nenhum Estado em nenhum lugar está obedecendo a uma norma particular, há um argumento muito forte de que a norma deixou de existir, já que ela não regula mais nada de modo significativo[23]. Mas, embora a prática de ignorar as normas seja comum nas guerras, ela difere da obsolescência da norma durante tempos de paz em que: i) o contexto político é definido pelos participantes como patológico (mesmo que análises apontem para a imanência da guerra à paz capitalista); e concomitantemente ii) os Estados geralmente reivindiquem estar cumprindo as leis que eles estão violando, alegando que o descumprimento à lei deveu-se a circunstâncias extraordinárias.

Nessa situação, pode fazer muito sentido falar em transgressão do direito internacional. Finalmente, mesmo um foco materialista na efetividade do direito teria que levar em conta padrões de comportamento no tempo como evidência de que um direito não fazia sentido: se por coincidência um grande número de pessoas infringiu uma lei particular por um dia e então passou a obedecê-la novamente, seria muito excêntrico definir a situação como de inexistência e depois de restabelecimento do direito, em vez de defini-la como uma violação do direito. Tal abordagem fetichizaria o foco na “efetividade” do direito tornando-a abstrata: a “efetividade” deve ser julgada de acordo com um contexto político, situada temporalmente.

Durante a guerra, um grande número de violadores proclama firmemente a própria lei que eles violaram. Mesmo a sua ampla infração não pode ser vista imediatamente como se a tornasse obsoleta. Consequentemente, a situação (relativamente rara) de um amplo abuso das normas mais ou menos universalmente compartilhadas pode ser vista como “pura política”.

Enquanto uma guerra representa, contudo, uma situação de ampla quebra do direito, ela é também uma situação de afirmação do direito. As espirais de represálias e contrarrepresálias que tendem a caracterizar o direito são muito frequentemente descritas e justificadas precisamente em termos de “autotutela” jurídica. Em outras palavras, em resposta a uma infração de soberania percebida (uma quebra fundamental do direito, uma falha em respeitar a propriedade privada), um estado exercerá sua interpretação coercitiva, travando uma guerra como um modo de estabelecer a sua reivindicação jurídica de ter tido violados os seus direitos abstratos. Isso põe em movimento contrarreivindicações, também regulados pela força.

Nesse sentido, portanto, quase que por definição, uma guerra moderna é simultaneamente uma violação fundamental do direito internacional por um dos lados na percepção do outro, e o mecanismo regulatório por meio do qual o conteúdo daquela relação jurídica é estabelecido: um choque de coerção por meio do qual a interpretação efetiva do direito em disputa é decidida. Esse é o sentido em que há uma “estreita ligação morfológica (…) uma conexão clara (…) entre as partes de um processo judicial e os combatentes de um conflito armado” (PACHUKANIS, 1978, p. 118).

A guerra é, simultaneamente, uma violação do direito internacional e o direito internacional em ação.

O direito internacional aparece como um meio de luta no coração de uma ordem instável, ao mesmo tempo como lócus e como aquilo que está em jogo (…). Longe de serem opostos um ao outro em princípio (…) o direito internacional associativo e o direito à subordinação revelam-se ambos como complementares e portadores de violência. (ROBELIN, 1994, p. 159)

Não chegamos muito longe na delimitação das relações jurídicas. Dado que Pachukanis vê as normas de direito internacional “encontrando a sua força” em uma situação de paz internacional, “objetividade e compromisso” (PACHUKANIS, 1980b, p. 179), podemos dizer que o comportamento mais claramente “conforme o direito” é aquele em que as normas jurídicas consensuais regulam pacificamente comportamentos e inexiste controvérsia. Em oposição a isso, podemos dizer que há “pura política” naquelas situações muito raras em que normas jurídicas consensuais muito similares são insensivelmente ignoradas em uma crise política. Isso deixa uma vasta zona intermediária de comportamentos e relações. Podemos distinguir alguns desses comportamentos como “não-jurídicos”?

Na sua discussão sobre o legado kantiano da jurisprudência burguesa, Pachukanis esclarece o paradoxo. O direito é limitado de um lado pela “pura política”, e pela “pura moralidade” de outro, mas ao tentar sistematizar a posição jurídica vis-à-vis cada um desses limites, ele desliza necessariamente para dentro do outro.

Quando é afirmada a autonomia do direito com relação à moral, o direto confunde-se com o Estado, por causa da forte acentuação do momento da coação externa (…). Quando o direito se opõe ao Estado, ou seja, à dominação de fato, o momento do dever entra inevitavelmente em cena no sentido de dever-ser (…) e então temos, se assim podemos dizer, uma frente única do direito e da moral. (PACHUKANIS, 1978, p. 164 [1988, p. 115])

Se o direito distingue-se do comportamento “político” então não está claro o que o distingue da moral. Mas, por outro lado, “se a obrigação jurídica não tem nada que ver com o dever moral “interior”, então não há modo de se diferenciar entre a sujeição à lei e a sujeição à autoridade enquanto tal” (PACHUKANIS, 1978, p. 163 [1988, pp. 114-5]). Esta é precisamente a questão do que é e do que não é direito, de como podemos distinguir entre atividade jurídica e não-jurídica. E a teoria dominante não pode nos ajudar. “A filosofia burguesa do direito esgota-se nesta contradição fundamental, nesta luta interminável com as suas próprias premissas.” (PACHUKANIS 1978, pp. 163–4 [1988, p. 115])

De fato, não há saída. “A obrigação jurídica não tem como encontrar significação autônoma em si mesma e por isso oscila eternamente entre dois limites externos: a coação externa e o dever moral ‘livre’.” (PACHUKANIS, 1978, p. 165 [1988, p. 116]) O problema é, de fato, sem solução. Na teoria da forma-mercadoria, o direito é simultaneamente uma forma existente entre dois indivíduos abstratos livres e uma sujeição necessária à coerção. Por essa razão, não há solução elegante. Não é a teoria jurídica que é paradoxal, mas as relações que ela representa.

Como sempre, e igualmente aqui, a contradição do sistema lógico representa a contradição da vida real, ou seja, do meio social que produziu a própria forma da moral e do direito. A contradição entre o individual e o social, entre o privado e o público que a filosofia burguesa do direito, malgrado todos os seus esforços, não pode suprimir, é o fundamento real da própria sociedade burguesa enquanto sociedade de produtores de mercadorias. Tal contradição é aqui sustentada pelas relações reais dos homens, que não podem considerar as suas atividades privadas atividades sociais a não ser sob a forma absurda e mistificada do valor da mercadoria. (PACHUKANIS, 1978, p. 165 [1988, p. 116])

O fato é que as relações jurídicas não podem ser separadas nem da moral nem das relações “políticas” de modo sistemático. Isso não representa o fracasso da teoria, mas a natureza peculiar da modernidade. Assim como a riqueza da sociedade sob o capitalismo aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” (MARX, 1976, p. 125), “a sociedade apresenta-se como uma cadeia infinita de relações jurídicas” (PACHUKANIS, 1980a, p. 62). Assim como a mercantilização estende-se para além dos seus limites imediatos e parece investir-se de valores de troca intangíveis, a forma jurídica romperá as suas próprias margens, conforme mostrei no Capítulo 3, e assumirá novas formas sobre a base da sua forma essencial, tentando regular todas as esferas da vida social.

É por isso que não é apenas por hipocrisia que “cada Estado violador do direito internacional também tenta retratar o assunto como se não tivesse havido qualquer violação” (PACHUKANIS, 1980b, p. 179). A saturação das relações sociais pela forma jurídica é tal que ela impele os agentes sociais a “juridizar” toda e qualquer atividade. Por conseguinte, conforme essas relações sejam levadas a cabo, ao menos até certa medida, sobre a base da igualdade soberana entre as partes, elas têm um caráter jurídico.

O direito não é uma categoria discreta. Nos extremos do comportamento “moral” e “político”, outras dinâmicas podem ser claramente dominantes, mas a grande massa de relações está em algum lugar entre esses dois polos, e é governada ao menos em parte pela lógica jurídica. O fato de que uma lógica “política” também seja discernível não significa que o comportamento não seja juridicamente dirigido. Não há, finalmente, nada como um ato “puramente” jurídico. No exato momento da ação jurídica um sujeito mobiliza uma ação “política” na forma da violência coercitiva direta.

A “impureza” das ações jurídicas e a impossibilidade de discernir quaisquer fronteiras nítidas da sua esfera, qualquer reino hermético do direito, portanto, longe de minar a teoria da forma-mercadoria, justifica-a. Os debates teológicos da jurisprudência dominante sobre uma teoria pura do direito são produto de falta de rigor, uma tentativa de esculpir um reino jurídico independente. Mais do que qualquer coisa, as intuições desse casamento insólito entre Pachukanis e McDougal provam que isto é impossível.

6. A violência da forma jurídica

Tentei fornecer uma teoria sistemática e geral para o reconhecimento do conteúdo no interior da forma jurídica. É claro que, para compreender a dinâmica pela qual leis internacionais específicas são codificadas, deve-se investigar as relações de poder entre Estados naqueles momentos particulares.

Nós não deveríamos cair na armadilha de pensar que a coerção imanente ao direito precisa ser explícita ou física, nem que os participantes diretos e formais dos processos jurídicos são apenas jogadores de um jogo de poder que ele estabelece. As teias de obrigações e imperialismo informal são mais intrincadas do que isso.

Apesar da importância da ONU no direito internacional, não há ali nenhuma autoridade suprema; consequentemente, não há nenhum monopólio internacional da coerção ou da interpretação legítimas. Os únicos corpos capazes de ministrar a coerção necessária ao direito internacional são os seus próprios sujeitos de direito, os estados. Dadas as extraordinárias disparidades de poder entre aqueles estados, e dado que o conteúdo real da regulação jurídica será a luta entre eles, não é de se admirar que o direito internacional materialmente eficaz, ao contrário das frases edificantes e das nobres interpretações dos idealistas, tenha favorecido os estados mais fortes, os seus clientes.

O direito internacional é uma relação e um processo: não é um conjunto fixo de regras, mas um modo de decidir as regras. E a coerção de ao menos uma das partes, ou a sua ameaça, é necessária como o meio pelo qual os conteúdos particulares atualizarão o conteúdo mais amplo da luta em torno da forma jurídica.

A acusação de que Pachukanis não tem uma teoria da política está muito longe da verdade. Na sua teoria, a interpenetração constitutiva do “político” e do “jurídico” é extrema. O político – a violência, a coerção – vive no coração do jurídico, e isso não é mais evidente em nenhum lugar do que no direito internacional.

Por enquanto, argumentei isso em um nível teórico. Tudo se torna ainda mais claro quando a história do direito internacional é examinada.


Notas:

[1] Conforme decorre, por exemplo, de Warrington (1984).

[2] “Os inconvenientes que nós esperávamos que surgissem da introdução dos Factory acts no nosso ramo de fabricação, estou feliz em dizer, não surgiram”, ele cita os dizeres de um industrial. “Eles não interferiram na produção; na verdade, produz-se mais no mesmo tempo” (MARX, 1976, p. 606).

[3] “A escola ‘lógica do capital’ na Alemanha está, talvez, mais diretamente em débito com o trabalho de Pachukanis.” (VON ARX, 1997, p. 6) Para uma revisão geral dos pontos essenciais ver Holloway; Picciotto (1978a); Clarke (1991). Para um breve resumo ver (por exemplo) Barrow (2000, pp. 93-100).

[4]“Pachukanis (…) estava preocupado em derivar a forma jurídica e a forma estatal intimamente relacionada a ela da natureza da produção mercantil capitalista.” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978b, p. 18) Barrow repete a afirmação (2000, p. 99).

[5] Particularmente os ensaios em Holloway; Picciotto (1978a), especialmente Hirsch (1978), Blanke; Jürgens; Kastendiek (1978) e Von Braunmühl (1978).

[6] “Quando um contrato é ‘voluntário’? A resposta é: provavelmente nunca.” (BANAJI, 2003, p. 69) Levado ao extremo, a tal “contrato coercitivo” subjaz a noção praticada no século XIX por “um grande número de defensores da escravidão” do sul dos Estados Unidos, de que a própria escravidão “tinha um caráter quase contratual” (JENKINS, 1935, p. 112). Tais escritores, como Samuel Seabury, Edmundo Bellinger e outros, problematizam essas categorias aparentemente pacíficas (movidos, é claro, por motivações políticas terríveis. Não que seja novo para os marxistas voltar as teorias de escritores pró-escravidão contra as categorias burguesas – ver a invocação por Negri de John Caldwell Calhoun [NEGRI, 1999, pp. 184-5]).

[7] Este ensaio fornece a linha sobre a qual McWhinney fundou seu argumento para afirmar que “Pachukanis (…) concluiu que seria puramente escolástico (…) tentar definir a ‘natureza’ do direito internacional” (MCWHINNEY, 1984, p. 14).

[8] Ele segue adiante para explicar que para a maior parte da teoria jurídica do século XX questões desse tipo “poderiam ser propostas doutrinariamente (…) procedimentalmente (…) ou, mais recentemente, institucionalmente, profissionalmente, praticamente, em última instância pela atenção ao comportamento dos Estados, pela observação pragmática, mas não teoricamente”.

[9] Isso corrobora de modo intrigante a afirmação de Richard Tuck de que para os primeiros autores do direito internacional e da soberania, particularmente Grotius e Hobbes, “os indivíduos heuristicamente assumiram as características dos Estados soberanos” (TUCK, 1999, p. 129), e para aqueles autores “nós podemos compreender melhor os direitos que os indivíduos possuem um vis-à-vis o outro (…) se observarmos os direitos que os Estados soberanos parecem possuir uns contra os outros” (TUCK, 1999, p. 85). Para um comentador simpático, “essa proposição parece exagerada”, e “trata-se de uma questão de estabelecer uma ligação entre a noção de um soberano, como proprietário isolado nas primeiras sociedades modernas, e o soberano como os Estados isolados em construção nesse período (…) mas é outra questão dar prioridade à rivalidade externa dos estados (…). Isso parece um movimento perverso” (GOWAN, 2001, p. 154). Contudo, a referência cruzada com Pachukanis aqui é no mínimo sugestiva. Se concordarmos que a conceituação jurídica do indivíduo é um elemento indispensável na construção da soberania, então a afirmação de Pachukanis de que a unidade jurídica se dá inicialmente entre organizações políticas faz a proposição de Tuck parecer menos “perversa”: o sujeito de direito seguiria de fato (a partir da) juridicidade da unidade política – no tempo desses autores, crucialmente, o Estado (por isso as questões de “derivação” precisam ser nuançadas: sem um sentido da mercantilização subjacente das quais essas formas seriam expressões, há um perigo (mesmo em Tuck) de o processo aparecer como se ocorresse mediante algum tipo de analogia-doméstica-em-reverso autopoiética). Assim, de modo contraintuitivo, olhando primeiro para o nível internacional antes de estreitar o foco para o indivíduo, deveremos fazer avançar o projeto com que Adorno literalmente sonhou de compreender “The transition from the living human being to the legal entity” (HALLEY, 1997, p. 72).

[10] Embora argumentando de uma perspectiva “libertária” radical bastante antipática ao marxismo de Pachukanis, sofrendo de deficiências filosóficas (tais como a aparente coincidência entre “justiça” e “direito”), e filtrando evidências para sustentar uma posição indefensável e utópica de anarcocapitalismo, e que o espaço disponível aqui me proíbe de criticar, Benson (1991) contém muitos exemplos interessantes de sistemas jurídicos sem autoridade hierárquica (estatal), que corrobora sugestivamente a análise de Pachukanis sobre a contingência do Estado.

[11] “A ideia de uma coerção externa (…) constitui um aspecto essencial da forma jurídica.” (PACHUKANIS 1980a, p. 108 e passim)

[12] O original está em Marx (1973, p. 88). Nesta tradução se lê “o princípio de que o poder faz direito (…) também é uma relação jurídica”. Eu escolhi a versão acima por ser uma formulação mais impactante.

[13] Veja por exemplo Akehurst: “Direito internacional (também conhecido como direito internacional público ou direito das nações)” (1970, p. 1).

[14] A citação (em itálico – ênfase minha) é de V. E. Grabar,(1912).

[15]  “O dogma do direito privado não é nada mais do que uma corrente interminável de argumentos pro e contra afirmações imaginárias e fatos potenciais.” (PACHUKANIS, 1980a, p. 59)

[16] “Todo o sistema [de Grotius] depende do fato de que ele considera as relações entre estados relações entre proprietários privados; ele declara que as condições necessárias para a execução das trocas, i.e., troca de equivalentes entre proprietários privados, são as condições para a interação jurídica entre Estados. Estados soberanos coexistem e são contrapostos um ao outro exatamente à medida que são proprietários individuais com direitos iguais.” (PACHUKANIS, 1980b, p. 176)

[17] Deve-se dizer que a troca de fato entre os Estados pode ou não existir. O que é necessário para que as suas relações tomem a forma jurídica é que as relações sejam aquelas necessárias à troca. Sem o reconhecimento da propriedade privada qualquer relação que pudesse ocorrer não seria comércio.

[18] Isso está bem resumido na afirmação de Pachukanis, apresentada anteriormente, de que sem uma autoridade suprema não há distinção “entre o direito como uma norma objetiva e o direito como poder” (PACHUKANIS, 1980a, p. 44).

[19] Essa afirmação corrobora o argumento de Bowett, de que há um “vácuo de credibilidade” criado pela “divergência entre a norma [que condena represálias como ilegais] e a prática real dos estados” (BOWET, 1972, p. 1).

[20] Aqueles autores que caracterizam o direito internacional como um sistema “primitivo”, e veem represálias como uma sanção central desse direito, erram o alvo. É verdade que a “autotutela” é o único mecanismo coercitivo sério no sistema internacional e as represálias são um exemplo de tal autotutela. Contudo, também é verdade que nem todos os Estados podem retaliar uma violação ao direito – Granada pode ter uma tese extremamente consistente de que a invasão dos Estados Unidos contra a sua soberania em 1983 era ilegal, mas era absolutamente incapaz de retaliar. O que é central para o direito internacional é a autotutela coercitiva, mais do que qualquer categoria abstrata de “represálias”.

[21] “Há poucas (…) normas de direito internacional reconhecidas geralmente.” (PACHUKANIS, 1980b, p. 182)

[22] Até mesmo algo tão quase-universalmente condenado pelo direito como os assentamentos israelenses na Cisjordânia e na Faixa de Gaza podem e tem sido defendidos pelo direito internacional (ver os guias políticos do governo israelense publicados em março de 2001).

[23] Se a normatividade fosse sempre negada por práticas contrárias, ou ela não poderia existir ou a sua existência seria sem sentido, já que as normas subsistem e até mesmo prosperam com as suas transgressões (ver FITZPATRICK, 2003, p. 453).


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