Por Jacques Rancière, via Verso Books, traduzido por Hugo Gomes Penaranda
A entrevista com Jacques Rancière sobre o referendo da União Européia no Reino Unido foi conduzida por Guillaume Erner, da France Culture.
Guillaume Erner: “A democracia, levando-se tudo em consideração, é uma boa ideia?”. Depois de verem o resultado do referendo do Brexit, as pessoas têm feitos perguntas sobre isso. Obviamente, isso não é o que eu penso, só estou citando uma frase que todos ouvimos desde sexta-feira, 24 de junho. Nos ataques ao populismo há também uma certa desconfiança em relação ao povo. Esse é um tema que o filósofo Jacques Rancière há muito refletiu, e agora ele se junta a mim. Se você tivesse votado, você teria votado sim ao Brexit em 23 de junho?
Jacques Rancière: Não posso responder a isso já que não sou inglês, não estou na Inglaterra. Conheço pessoas inglesas que considero pessoas avançadas, intelectuais, que dizem estar bastante satisfeitos que tenha sido um voto pelo Sair. Eu acho, com certeza, que você não pode simplesmente reduzir o lado Permanecer para o progresso e universalismo e o lado Sair para o atraso. Eu acho que você tem que entender que com este tipo de voto há muitas razões pelas quais as pessoas podem ter votado. Há uma reação contra os estrangeiros porque eles são estrangeiros, mas, novamente, há dois aspectos muito diferentes sobre a questão europeia. Há a parte que é sobre o poder europeu, o poder excessivo que é responsabilidade de ninguém. Podemos falar de uma negação da democracia, uma negação que a própria burocracia europeia encarna. Então há o aspecto que é sobre se relacionar com o outro, relações com estrangeiros. Então eu acho que nesta situação há dois tipos totalmente diferentes de perguntas. Penso que ter este tipo de referendo é misturar estas questões de uma forma bastante sistemática. Mas é claro que não foram as pessoas de baixo, mas o governo e o Sr. Cameron quem fizeram isso, tentando desviar, podemos dizer, uma aspiração democrática em uma identitária.
GE: Você escreveu vários textos sobre o Tratado Constitucional Europeu [rejeitados pelos eleitores franceses em um referendo de 2005], e durante o referendo de Brexit pensei em como seus textos ainda são tão úteis hoje quanto eram antes. Em última análise, o que você estava atacando era um certo tipo de comentário da mídia que equivalia a querer se livrar do povo. Em um artigo de maio de 2005, você perguntou qual é a importância dessas simulações de votos, essas pesquisas em massa, enormes obras de interpretação que governantes, especialistas e jornalistas dissecam para mostrar à população soberana que eles devem ser loucos se acharem que podem realmente escolher e assim adotar a posição suicida de rejeitar a realidade. Você tem a sensação de estar revivendo as mesmas cenas novamente?
JR: É um pouco diferente porque eu acho que as apostas eram diferentes naquela época. No referendo de 2005 era claramente uma questão democrática e isso estava no primeiro plano. Era uma questão constitucional sobre o tipo de poder e suas relações com o que chamamos de povo, os cidadãos. Então eu acho que foi uma conjuntura bem mais clara. Acho que o Tratado Constitucional era verdadeiramente uma espécie de monstro, onde você é governado por pessoas sem sequer saber quem as escolheu. Acho que o que também foi específico sobre essa votação foi que havia uma espécie de processo democrático e de discussão. As pessoas se transformaram em juristas, e começaram a falar sem se preocuparem em ter as qualificações ou diplomas adequados. Então, o que era interessante, era o fato de termos visto o que eu chamaria de um tipo de intelecto popular, um intelecto democrático, em oposição ao oficial. O oficial é aquele que diz: “Bem, a realidade é esta, não há outra escolha e você tem que entender isso”. E nesse ponto há uma espécie de grande coalizão de governantes, a mídia, a classe intelectual. Eles pensam que há este caminho de progresso e universalismo, e se você não segui-lo, isso deve ser porque você é um pouco ignorante ou atrasado. Revirando-se em torno de si mesmo, este discurso acaba surpreendido quando percebe que a realidade é algo contestável.
GE: Na verdade, você sublinhou a contradição dessa política que consiste em dizer que não há escolha, mas que também oferece uma…
JR: Sim, mas isso é, de certo modo, típico desse tipo de exercício governamental, buscando uma legitimação dupla. Ele diz, somos eleitos pelo povo soberano – isso é uma espécie de legitimidade que o governo obtém de sua eleição pelo povo. Mas, ao mesmo tempo, há essa outra legitimidade que eles conferem a si mesmos, ou que lhes concederam, por causa de seu conhecimento sobre o que é chamado de ciência política. Geralmente, eles tentam e combinam os dois um pouco, prestando homenagem ao povo soberano, mas ao mesmo tempo pensando que (eles estão no direito porque) eles são treinados para isso. Assim, eles sempre tentam e navegam entre os dois. Mas há momentos em que eles cometem erros e são mais ou menos compelidos a permitir que as pessoas que os legitimaram falem. Isso é quando eles percebem que a sua legitimidade não é de fato garantida. E isso naturalmente nos leva à questão de saber exatamente o que é essa “ciência” que os legitima.
GE: Então há questões sobre ciência política, e subjacente a essas questões ainda existem outras sobre o vocabulário a ser utilizado. Elas Incluem questões sobre o termo “populismo” – hoje central no comentário político. Você tem a impressão de que esse termo é necessariamente equivocado? Ou você acha que em casos como o referendo organizado na Grã-Bretanha estamos realmente lidando com o populismo?
JR: Eu penso que o termo “populista” é grande parte desse arsenal usado pelo mundo intelectual, o mundo do dominante. “Populismo” refere-se às pessoas que, sim, são boas o suficiente para votar em nós – obrigado por isso – mas são ignorantes, atrasadas, obedientes aos seus impulsos mais básicos. Além de seus usos políticos mais precisos – como os que têm sido usados na definição de certos governos na América Latina há algum tempo – o termo “populismo” pertence a uma espécie de visão do século XIX, diante do surgimento do movimento operário. É uma reação que constrói uma espécie de psicologia da multidão como algo perigoso em sua ignorância, sempre propensa a ouvir desordeiros e fraudadores. Efetivamente o termo “populista” é algo que nossos governantes usam para dizer que eles estão sabendo, enquanto o resto de nós somos imbecis. E, de fato, o que é interessante neste caso [a votação do Brexit] é que este referendo foi apresentado não por algum líder populista, mas por um político fazendo uma manobra dentro dos termos desses jogos em que os políticos são viciados. Misturando um pouco de malícia pessoal no que ele considerava realidades políticas incontestáveis. Então, eu acho que com este referendo, o termo “populismo” pode se referir a nada além das desculpas que nossos governantes criam para si mesmos.
GE: Há outro referendo nas notícias, o referendo sobre o plano de construir um aeroporto em Notre-Dame-des-Landes. O que você acha dessa votação? [O referendo realizado no dia anterior a esta entrevista viu 55% dos moradores votar a favor do aeroporto, mas o terreno ainda hoje é ocupado por ativistas da ação direta “Zadiste”, como tem sido desde 2007]
JR: A questão complicada é que eu acho que nós podemos ver um outro tipo do choque de legitimidade. Há uma espécie de legitimidade que vem das eleições, colocando a questão para o povo – mas o povo permanece, em última análise, em uma forma eleitoral. E então há o que eu chamaria de um processo popular-democrático. No caso de Notre-Dame-des-Landes e de certos pontos focais como esse, está a afirmação de que este tipo de processo democrático é criado, ultrapassando mais ou menos as fronteiras entre grupos diferentes e interesses particulares. Existe a criação de um intelecto coletivo, invenção coletiva, uma decisão coletiva. Neste tipo de situação há um choque entre a legitimidade que vem de um processo democrático vivo e a que vem de um voto. Há um problema, lá. Realmente vemos algo desequilibrado. Mas a política vive de desequilíbrios!
GE: Ela vive de desequilíbrios … Você também está dizendo que ela vive de excessos, ou mais precisamente que ela vive da ideia, inerente à concepção de algumas pessoas do sistema democrático, que, em última análise, é necessário frear os excessos da democracia? O problema com a democracia, diz-se muitas vezes, é que é democrática demais. Isso é algo que ouvimos desde o Brexit, e muito na mídia francesa, inclusive com a ideia de que os ingleses estão lamentando seu voto. Subjacente a isso está a ideia de que é necessário tomar um certo conjunto de precauções para restringir a democracia. Diga-nos quão particular isso é para a nossa própria era.
JR: Bem, é muito particular. Mas, ao mesmo tempo, isso remonta à primeira discussão da democracia, que a representava como uma forma de governo impossível. Em suas Leis, Platão faz uma lista de todas as formas possíveis, todas as formas legítimas de governo. Evidentemente, já existia a autoridade dos mais bem-nascidos que os outros, a autoridade dos mais ricos, a autoridade dos mais instruídos. Aqueles que são melhores do que outros, de maneiras diferentes. E então ele vem para o que resta, aquele governo que não é escolhido nem pelos deuses nem pela sorte: a democracia. E, em última instância, ele considera que não se trata de uma forma legítima de governo, precisamente porque significa governo com aqueles que não têm nenhuma qualificação específica para governar, além de ser governado. Então, para ele, é uma espécie de monstro. Mas, ao mesmo tempo, poderíamos dizer que o monstro é a própria política. Pois quando são os divinamente nomeados ou os velhos ou os ricos ou os sábios que governam, não estamos falando de política. A política só começa quando se trata de uma questão de poder daqueles que não têm nenhuma qualificação particular – aqueles que não são ricos ou nobres ou os sábios. Acho que isso é o que é interessante. E, fundamentalmente, isso é o que significa democracia, não significa governo pelo “grande animal” ou mesmo maioria dos votos. Fundamentalmente significa o poder daqueles que não têm qualquer qualificação específica para tê-lo. É por isso que há política, em geral, porque há um sujeito político. Aristóteles diz que o cidadão é aquele que não tem mais razão de ser governado que de governar. E, de fato, há um tipo de ódio à política que se esconde atrás do ódio à democracia, daqueles que têm seus companheiros, seus especialistas, que pensam que sabem, e se perguntam “quem é esse bando, eles não têm competência para governar”. Esse ódio sempre reaparece. Fundamentalmente não é tão diferente do que aconteceu desde o início, pois esses argumentos contra a democracia podiam ser ouvidos até em Atenas, no século IV aC.
GE: Então isso significa que os políticos podem ter uma tendência para destruir a política?
JR: Fundamentalmente sim, eles dependem disso. Eles vivem de destruir a própria ideia de que aqueles sem qualquer competência particular são competentes. Fundamentalmente, as pessoas que chamamos de políticos são aqueles que tentam destruir a própria ideia de política.