A materialidade do capitalismo financeiro: contraponto marxista à concepção pós-moderna da economia

Por Samuel Silva Borges

Resenha crítica da obra de Edemilson Paraná: “A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional”, publicada em 2016 pela Editora Insular, em Florianópolis. [1]


“[Há] algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de ‘compreensão do tempo-espaço’ na organização do capitalismo” – David Harvey

A obra “A Finança Digitalizada – Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional”, deriva da dissertação de Mestrado de Edemilson Paraná. Nela, se investiga a financeirização da economia nas últimas décadas que vem se impondo como lógica dominante no funcionamento da economia capitalista. Suas características gerais são: a autonomização financeira em relação à esfera produtiva e à regulação estatal; o fetichismo das formas de valorização do capital financeiro, altamente abstrato e fictício; e o poder dos seus operadores em influenciar rumos políticos e econômicos em nível global, conferido pela mundialização financeira e suas regras (CHESNAIS apud PARANÁ, 2016, p. 24). O autor também analisa o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação, seu impacto de encurtar o espaço-tempo e outras restrições técnicas à circulação de capitais e à reestruturação produtiva nas últimas décadas hegemonizada pela financeirização (PARANÁ, 2016, p. 29, 33).

A tendência à financeirização do capitalismo, contudo, já é identificada há tempos. Karl Marx identificava a valorização de ações e títulos que buscava se autonomizar da economia real como capital fictício. Ele difere, assim, do capital de empréstimo (ou portador de juros) que se vincula à economia produtiva possuindo o potencial de funcionar como capital, estando “prenhe de mais-valor”. Se aplicado, o empréstimo se converte em capital, produzindo um excedente cuja parte é o juros do empréstimo, reconstituindo o ciclo produtivo. Por sua vez, o capital fictício não é aplicado na economia produtiva e produção de mais-valor. Contudo, ele se apropria da renda criada no setor produtivo, sendo vinculado portanto ao “rentismo”, que é a obtenção de rendas pela posse de ativos[2] e produtos financeiros e não pela produção e circulação de mercadorias, bens e serviços (Ibid). Desta forma:

“o capital fictício só é capital para seu possuidor individual, que obtém renda advinda da sua posse, e apenas temporariamente, enquanto a ciranda de valorização financeira nos mercados for capaz de se sustentar graças a correspondentes injeções de liquidez, advindas, primariamente, da produção real, de modo que o funcionamento regular dos mercados seja capaz de garantir sua conversão em dinheiro e, assim, em riqueza efetiva. Isto posto, torna-se clara a natureza fetichista e contraditória dessa figura: não sendo capital do ponto de vista social, na medida em que não há riqueza suficiente para materializá-lo de modo integral, o capital fictício só pode existir, enquanto tal, na medida em que todos ou muitos de seus possuidores não tentem convertê-lo em dinheiro ao mesmo tempo” (PARANÁ, 2016, p. 62-3).

A expansão financeira, que procura fazer dinheiro através do dinheiro, sem sair da própria esfera financeira, só pode se tornar dominante economicamente com uma série de políticas que ampliaram a liberdade para acumulação e circulação de capital a nível global. Isso se deu através da desregulamentação e flexibilização do espaço financeiro mundial. Tal processo se inicia em meados da década de 70 nos países centrais e se expande, provocando uma reestruturação produtiva global, deslocando a produção industrial do ocidente para a Ásia, intensificando o desenvolvimento tecnológico para economia de tempo, trabalho e matéria-prima, ampliando fortemente o setor de serviços etc. Tal processo liberalizante para os capitais reconfigura também a função do Estado, a quem é incumbido a tarefa de corte de gastos sociais, redução de impostos sobre capital e grandes fortunas, flexibilização do câmbio e da legislação trabalhista, elevação da taxa de juros, privatizações etc. Reformas com o intuito de gerar um cenário mais atrativo ao capital financeiro (Ibid, p. 66-9).

Apesar de se constituir de um processo valorativo altamente abstrato e também depender economia produtiva, esse novo arranjo possibilita que a financeirização econômica se imponha como lógica econômica dominante. Mais do que uma aliança entre finanças e indústria, há uma subsunção desta por aquela, submetendo a lógica produtiva à lógica financeira de retornos vultuosos e de curto prazo aos acionistas. Assim, os grandes conglomerados industriais constituem parte da valorização financeira. Para aumentar ganhos, há um incentivo à especulação financeira, exigindo ainda mais do que a economia consegue fornecer, ampliando a tendência capitalista à crises. Isto pois, o capital fictício necessita se ancorar em uma riqueza objetiva e produtiva para remunerar os seus juros, caso contrário, as chamadas “bolhas” se estouram, deflagrando uma crise (Ibid, p. 72-6).

Depois de debater a financeirização econômica, Paraná passa a discutir a relação entre técnica e sociedade, enfatizando as bases materiais do desenvolvimento tecnológico. Procurando se afastar de abordagens deterministas tecnológicas, sejam elas tecnófobas ou tecnófilas, ou seja, a visão da tecnologia como o motor autônomo do desenvolvimento social, levando inexoravelmente à autodestruição ou ao progresso, Paraná assume também que as técnicas não possuem caráter neutro nem autônomo. Isto é, o desenvolvimento tecnológico possui um conteúdo social, permeado pelas disputas culturais e políticas da sociedade em que se insere. Desta forma, as relações sociais de produção capitalista influenciam a produção científica e tecnológica, condicionando-a aos interesses do controle do trabalho e reprodução do capital  (Ibid, p. 83-4, 91, 93).

Evitando também o determinismo econômico, Paraná resgata Althusser na discussão sobre a autonomia relativa das superestruturas. Para ele, a dialética marxista inverte a noção de contradição de Hegel, não mais restrita à oposição de ideias simples, mas abrangendo contradições sobredeterminadas que incorporam fatores diversos que se interagem e se modificam mutuamente. Aos diferentes arranjos possíveis entre tais fatores correspondem diferentes realidades sociais. Apenas em última instância o aspecto econômico condiciona os demais (Ibid, p. 93-4). Dessa maneira, Paraná assume uma abordagem materialista não determinista da tecnologia, compreendendo-a como “não neutra e parcialmente autônoma, ancorada ontologicamente em seu conteúdo social, e sobredeterminada, em última instância, pela prática econômica” (Ibid, p. 95).

Nos últimos capítulos, o autor discute as crescentes inovações nas Tecnologias da Informação e Comunicação, que criaram a revolução informacional que possibilitou a financeirização econômica. Como o estímulo capitalista leva os investidores a procurarem o maior ganho no menor tempo possível[3], a fronteira tecnológica se tornou um campo prioritário de disputa para maior sucesso financeiro. Isto pois, a tendência nas últimas décadas é de crescente automatização da tomada de decisões financeiras por robôs, a partir da complexa interação entre hardwares potentes e softwares sofisticados, cujos algoritmos de negociação preveem o funcionamento do mercado e realizam operações (técnicas conhecidas como AlgoTrading e High Frequency Trading), atualmente, em até 10 milissegundos (Ibid, p. 212).

A corrida tecnológica impõe, contudo, muitos riscos aos investidores, marginalizando atores com menor poder de inovação. Mesmo competidores de porte médio, pressionados pela constante necessidade de inovação, dificilmente aguentam permanecer no mercado. Segundo Paraná, essa finança digitalizada é desfavorável aos investidores que não dispõem das tecnologias necessárias e, portanto, das informações e oportunidades desfrutadas pelas maiores instituições financeiras. Assim, eles ou abandonam o mercado de capitais ou terceirizam suas decisões para essas poucas grandes instituições financeiras, que concentram cada vez mais poder entre si, em um oligopólio financeiro contemporâneo. São estes que detém o poder de influenciar a política econômica de governos e bancos centrais, impondo a lógica financeira sobre a produtiva[4] (Ibid, p. 36, 169, 172-3).

Para sua pesquisa, Paraná procurou obter seus dados primários com entrevistas com operadores do mercado financeiro, representantes de corretoras, bancos e instituições financeiras, como a Bovespa, além de operadores e reguladores das TCI que permitem o funcionamento digitalizado do sistema financeiro. Sua escolha contrasta com o lugar comum nas ciências sociais que tem como objeto de estudo grupos vulneráveis e marginalizados, que não raramente são acompanhados por uma abordagem que fetichiza a alteridade, o estranhamento com o diferente (KROTZ, 2004), idealizando o oprimido por quem se fala. Ao invés disso, Paraná procura discutir a dominação financeira a partir da discussão com os beneficiários da dominação. Empreitada que, admiti-se, impõe mais dificuldades e incertezas aos pesquisadores.[5]

Sua obra também dialoga com François Lyotard, que em sua interpretação da economia contemporânea afirma que “o cenário pós-moderno é essencialmente cibernético-informático ou informacional, portanto, a riqueza pós-industrial seria alcançada não mais pela produção de mercadorias, mas antes, pela circulação de dados e informações no interior de relatos e metarrelatos” (SILVA, 2008). Segundo Paraná, apesar de haver afinidades eletivas[6] entre a hegemonia financeira e o desenvolvimento das TICs, com forte importância do aparato cibernético-informático, a produção de riqueza ainda é dependente da produção industrial de mercadorias. Contudo, devido à lei tendencial da queda da taxa de lucro típica da produção industrial, a economia financeira busca sua valorização a partir de ações, títulos e outros papeis frutos de inovações financeiras que possibilitam a crescente especulação desproporcional ao crescimento econômico real. Tal desequilíbrio, porém, provoca as crises financeiras. Como explica Maria Mollo:

“o desenvolvimento do capital fictício não pode ser ilimitado, porque sua valorização decorre de demandas sustentadas por rendas provenientes do processo produtivo. […] Se o crescimento da produção se atrasa relativamente à valorização do capital fictício, faltará demanda para sustentar novas valorizações e novos ganhos, o que termina por conduzir seus proprietários a vender seus papéis, desencadeando a espiral deflacionária que explicita a crise. A crise consequente é, pois, a forma brutal de estabelecimento de limites à autonomia de circulação relativa à produção” (MOLLO 2011, p. 19).

Portanto, definir o período pós-moderno como aquele em que a riqueza deriva não da produção de mercadorias mas sim da circulação de dados falha em perceber como, apesar da lógica hegemônica financeira e sua afinidade eletiva com o aparato cibenético-informacional, em última instância há dependência destas para com a produção industrial de mercadorias, sem a qual o capital financeiro não se sustenta.

Por outro lado, convergem a crítica pós-moderna de Lyotard e o materialismo não determinista de Paraná na percepção do caráter não neutro da ciência e das técnicas, condicionando seu investimento conforme sua rentabilidade e denunciando sua instrumentalização para fins de dominação do capital (MARINHO, 2008, p. 18). Afinal: “não se compram cientistas, técnicos e aparelhos para se saber a verdade, mas para aumentar o poder” (LYOTARD, 1993, p. 83). Não há, porém, uma deslegitimação radical da pesquisa e da ciência conforme Paraná, nem mesmo de “metarrelatos” como chave interpretativa da contemporaneidade. Pelo contrário, este defende que deve-se procurar “a compreensão de fenômenos particulares a partir de suas articulações com a totalidade” (PARANÁ, 2016, p. 29), evitando a fragmentação típica de pós-modernos.

Como marxista, engajado na análise concreta da realidade concreta, Paraná propõe a atualização do esforço compreensivo de Marx, que já reconhecia a natureza capitalista da busca pela “valorização do valor” que é reconfigurada na contemporaneidade pela expansão intensiva das finanças cuja operação depende do desenvolvimento de tecnologias poderosas, reconhecendo tanto como a interação é dialética quanto seu viés pró capital (Ibid, p. 37), mas enfatizando a base material na qual a finança digitalizada da “pós-modernidade” depende e se sustenta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LYOTARD, François. 1993. O pós-moderno. José Olympio 4. ed. Rio de Janeiro.

KROTZ, Esteban. 1994. Alteridad y pregunta atropológica. Alteridades 4 (8) pp. 5-11.

MARINHO, Cristiane Maria. 2008. Lyotard e a pós-modernidade. Revista Labor. n.1, v.1. 2008.

MOLLO, Maria de Lourdes Rollemberg. 2011. Capital fictício, autonomia produção-circulação e crises: precedentes teóricos para o entendimento da crise atual. In: Revista Economia, Brasília, v. 12, n.3, p. 4750496. set/dez 2011.

SILVA, Christian Teófilo. 2008 A condição pós-moderna e as Ciências Sociais. Teoria & Sociedade (UFMG), v. 16, p. 320-333.

PARANÁ, Edemilson. 2016. A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional. Editora Insular. Florianópolis.


[1] O autor é Cientista Político e Mestrando em Sociologia pela UnB.

[2] Tal como títulos da dívida pública que se “capitalizam”, se valorizando como se fossem capitais a partir de uma taxa de juros fixa que permite que todo dinheiro possa render algum juro (Ibid, p. 61).

[3] Para se ter uma ideia da fronteira da disputa por velocidade, em 2010 uma empresa investiu cerca de 300 milhões de dólares na construção de uma conexão própria entre os mercados financeiros de Chicago e Nova Iorque para reduzir o tempo de comunicação, ida e volta, entre elas de 16 para 13 milissegundos. Em 2013, porém, tal tecnologia foi superada por outra empresa, que reduziu esse intervalo para 8,5 milissegundos (Ibid, p. 129).

[4] A sobrevalorização financeira e seu caráter fictício em relação à produção é notável levando em consideração que o montante de riqueza fictícia mundial totalizou, em 2008, cerca de quatro vezes o total da renda acumulada pela produção real mundial (Ibid, p. 52).

[5] Como Paraná explica: “Não por acaso, tivemos dificuldade enorme de conversar e entrevistar representantes de grandes bancos que, quando não ignoraram nossas solicitações, foram evasivos e pouco claros nas razões das negativas. Ao conversar com demais pesquisadores e atores do mercado financeiro no âmbito dessa pesquisa, todos confirmaram ser esse um comportamento típico por parte de grandes bancos e fundos, para quem as estratégias de obtenção de ganhos são produzidas e mantidas a sete chaves por meio de uma rígida política de preservação de informações empresarias. De acordo com o relato de alguns, dentre eles um entrevistado no Banco Central, esse padrão de comportamento se intensificou após as grandes crises de imagem ocorridas em razão dos episódios envolvendo bancos durante a crise financeira de 2008. Em alguns casos, contornamos a ausência de entrevistas com banqueiros conversando com ex-gestores/profissionais de grandes bancos”  (PARANÁ, 2016, p. 170)”.

[6] Relação dialética entre duas configurações sociais não redutíveis à uma determinação causal direta (LOWY apud PARANÁ, 2016, p. 197)

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