Votar, ou reinventar a política?

Por Alain Badiou, via Verso Books, traduzido por Aukai Leisner

Grande parte do eleitorado está ainda indecisa sobre o voto para presidente. Eu consigo entender o porquê. Não é tanto que os programas dos candidatos considerados elegíveis sejam obscuros ou confusos. Não é tanto – para usar uma formulação que usei certa vez com Sarkozy e que gozou de certo sucesso – que precisemos nos perguntar “em nome do que eles falam.” Na verdade, tudo isso está bastante evidente.


Marine Le Pen é a versão modernizada – e portanto feminizada – do que a extrema-direita francesa sempre foi. Um incansável petanismo.

Francois-Fillon é um petanista de terno e gravata. Sua filosofia (pessoal ou orçamentária) pode ser reduzida a “poupar cada centavo.” Ele não está tão atento assim à origem de seu próprio dinheiro, mas é obsceno, avarento, intransigente quando se trata de gastos fiscais, em especial do dinheiro destinado aos pobres.

Benoit Hamon é o representante tímido, bastante limitado do “socialismo de esquerda”; algo que sempre existiu, embora seja mais difícil de identificar ou detectar do que aqueles personagens que nunca vemos.

Jean-Luc Mélenchon – certamente o menos repulsivo – é no entanto a expressão parlamentar do que chamamos hoje de esquerda “radical”, na fronteira precária entre o velho socialismo fracassado e um comunismo espectral. Ele mascara a falta de ousadia e clareza de seu programa com uma eloquência digna de Jean Jaurés.

Emanuel Macron, por sua vez, é uma criatura trazida do nada por nossos verdadeiros mestres, os capitalistas tardios, aqueles que compraram todas as cédulas por precaução. Se ele acredita e diz que a Guiana é uma ilha ou que Pireus é um homem, é porque sabe que ninguém em seu campo jamais se comprometeu com o que disse.

Então aqueles que hesitam sabem – ainda que não claramente – que nesse teatro de papéis velhos e conhecidos, a convicção política tem pouquíssimo valor, ou é apenas um pretexto para truques falaciosos. Por isso, é útil começar pela seguinte questão: o que é política? E o que é uma política identificável, declarada?

Quatro orientações políticas fundamentais

Uma política sempre pode ser definida a partir de três elementos. Primeiro, a massa de pessoas comuns, com o que pensam e fazem. Chamemos isso de “o povo.” Em seguida, as várias formações coletivas: associações, sindicatos e partidos – em suma, todos os grupos capazes de ação coletiva. Finalmente, os órgãos do poder estatal – congressistas, governo, exército, polícia – mas também os órgãos do poder econômico e midiático (uma diferença que se tornou quase imperceptível), ou tudo o que chamamos hoje – com um termo ao mesmo tempo pitoresco e opressor – “aqueles que decidem.”

Uma política sempre consiste em perseguir objetivos pela articulação destes três elementos. Assim, podemos ver que no mundo moderno – de modo geral – há quatro orientações políticas fundamentais: fascista, conservadora, reformista e comunista.

As orientações conservadoras e reformistas constituem o bloco parlamentar central nas sociedades capitalistas avançadas: a esquerda e a direita na França, os republicanos e democratas nos Estados Unidos, etc. O que essas duas orientações têm em comum é que afirmam que o conflito entre elas – especificamente a articulação desses três elementos – pode e deve permanecer nos limites constitucionais aceitos por ambas.

O que as duas outras orientações – fascista e comunista – tem em comum, apesar da radical oposição entre seus objetivos, é que elas defendem que o conflito entre os diferentes partidos sobre a questão do poder estatal é tendencialmente irreconciliável: não pode se restringir a um consenso constitucional. Estas orientações se recusam a integrar objetivos que contradizem os seus próprios – ou que sejam simplesmente diferentes dos seus – em sua concepção de sociedade e do estado.

Podemos entender o “parlamentarismo” como o nome para a organização do poder do estado que assegura a conservadores e reformistas uma hegemonia compartilhada – mediada pela máquina eleitoral, os partidos e sua clientela – que elimina em todos os lugares qualquer perspectiva séria dos fascistas ou comunistas tomarem o poder do estado. Tal é a forma dominante de estado no que chamamos de “Ocidente.” Esta configuração mesma requer um terceiro termo, uma poderosa base contratual comum, ao mesmo tempo externa e interna às duas orientações principais. Claramente, em nossas sociedades, o capitalismo neoliberal é essa base. Liberdade ilimitada de empresa e enriquecimento, respeito absoluto da propriedade privada – garantida pelo sistema judiciário e pela polícia – confiança nos bancos, educação dos jovens, competição sob a máscara de “democracia”, apetite de “sucesso”, afirmações repetidas do caráter nocivo e utópico da igualdade: tal é a matriz das liberdades consensualmente estabelecidas. Estas são as liberdades que os tais partidos dominantes mais ou menos tacitamente se comprometem a garantir perpetuamente.

O desenvolvimento do capitalismo pode trazer algumas incertezas quanto ao valor do consenso parlamentar, e à confiança atribuída – durante o ritual eleitoral – aos “grandes” partidos conservadores ou reformistas. Isso é especialmente verdadeiro no caso da pequena-burguesia que tem seu status social ameaçado, ou em regiões de classe trabalhadora devastadas pela desindustrialização. Vemos isso no Ocidente, onde podemos observar uma espécie de decadência em face do poder ascendente dos países asiáticos. Essa crise subjetiva atual favorece sem dúvida orientações pró-fascistas, nacionalistas, religiosas, islamofóbicas, e beligerantes, porque o medo é uma mau conselheiro, e essas subjetividades marcadas pela crise são tentadas a se apegar a mitos identitários. Sobretudo, porque a hipótese comunista emergiu terrivelmente enfraquecida do fracasso histórico de todas as suas versões primeiras, estatizantes, especialmente a URSS e a República Popular da China.

A consequência dessa falha é auto-evidente: uma boa parte da juventude, dos desprivilegiados, dos trabalhadores abandonados, e do proletariado nômade de nossos subúrbios estão convencidos de que a única alternativa a nosso consenso parlamentar é a política fascista de identidades ressentidas, racismo e nacionalismo.

Comunismo, uma libertação da humanidade

Se quisermos nos opor a essa terrível situação, somente um caminho se abre a nossa frente: reinventar o comunismo. Essa grande palavra tão ultrajada deve ser retomada, redimida e recriada. Ela anuncia – como o fez por menos de dois séculos, mas numa grande visão apoiada pelo real – uma libertação da humanidade. Algumas décadas de tentativas inéditas – violentas porque foram brutalmente cerceadas e atacadas, e finalmente condenadas à derrota – não podem convencer ninguém de boa fé de que se deva eliminar essa perspectiva, forçando-nos a desistir para sempre de realizá-la.

Deveríamos, pois, votar? Fundamentalmente, deveríamos ser indiferentes a essa demanda vinda do estado e de suas organizações. A essa altura, deveríamos todos saber que o voto implica reforçar uma das orientações conservadores do sistema existente.

Analisado em seus reais conteúdos, o voto é uma cerimônia que despolitiza o povo. Devemos começar por re-estabelecer em todos os lugares a visão comunista do futuro. Militantes convictos devem discutir seus princípios em todos os contextos populares do mundo. Como propôs Mao, devemos “dar ao povo, em sua especificidade, o que ele nos dá em meio à confusão.” Isso é reinventar a política.

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

2 comentários em “Votar, ou reinventar a política?”

  1. Tese, antítese e síntese: não gosto das coisas. Gosto de gostar e de não gostar das coisas, logo existo. Existo?

    projeto existência – que reforma; que política?

    Precisamos de tantos e onerosos políticos pra garantir o que são incapazes: a realização da FELICIDADE BÁSICA (saúde, educação, mobilidade urbana, moradia, e amparo à velhice)?

    Precisamos nos submeter à políticos, à partidos, à ideologias construídas nos conceitos de certo e errado, de bem e de mal, heróis, assassinos, de justiça que pune o diferente com dor e sofrimento em nome da felicidade do bom, do justo do certo, da nossa felicidade pra exigir FELICIDADE BÁSICA?

    Aliás, o que é política?

    O que é político?

    O que é ideologia?

    E a Democracia é o quê?

    O que queremos?

    Podemos?

    Como não existe certo nem errado cada diferente sente felicidade de um jeito.

    Felicidade às Diferenças.

    facebook/livro – Tese, Antítese e Síntese: Não Gosto Das Coisas. Gosto De Gostar E De Não Gostar Das Coisas, Logo Existo. Existo?
    ISBN 9788568252925

    Responder

Deixe um comentário