Resenha “Lacan: Passado e Presente: um diálogo”.

Por Sinan Richards, via Marx & Philosophy, traduzido por Daniel Alves Teixeira

“Para dizer de maneira mais brutal, as neuroses se remetem, em última instância, à psicologia clínica. Todo mundo passa por pequenas histórias de fracassos amorosos, de obsessões incômodas, de impotência latente, histórias terrivelmente idênticas e cansativas. Sempre achei incrível que os psicanalistas consigam passar o dia, mesmo que cochilem um pouco, ouvindo essas confissões sintomáticas. Vejo nisso certa forma de heroísmo, até.”


Alain Badiou é realmente cavalheiro e honesto neste curto livro, que é um diálogo entre ele e a historiadora francesa da psicanálise Elisabeth Roudinesco. Ambos os intelectuais oferecem muitas idéias intrigantes sobre a personalidade e pensamento de Jacques Lacan. No entanto, com algumas exceções, este livro não é muito mais do que uma brincadeira introdutória ao ambiente intelectual e à recepção teórica da psicanálise de Lacan. Contudo, ele oferece algumas coisas interessantes, mesmo para os leitores bem versados. O principal impulso do livro é a defesa de Lacan e da psicanálise, mesmo de sua auto-domesticação, como diz Roudinesco. Badiou eleva ainda mais os argumentos ao intimar que a própria sobrevivência da psicanálise está em questão:

“Os ataques contemporâneos contra a psicanálise me parecem […] ainda mais graves do que os que se fazem contra o marxismo. No fundo, as polêmicas internas e externas fazem parte do próprio marxismo. As contradições e antagonismos que se sentem nele como num elemento natural. O marxismo pressupõe e implica brigas! O que se passa hoje com a psicanálise é bem mais perigoso – é alerta máximo. Afinal, querer erradicar Freud ou Lacan é atacar a concepção moderna de sujeito. Caso seja abolida, a porta estará aberta a ideologias reacionárias da pior espécie.”

Em um ponto relativamente inicial do diálogo, Badiou aproveita a descrição de Lacan como o “Lenin da psicanálise”, argumentando que Lacan constrói a partir de Freud da mesma maneira que Lenin construiu sobre Marx. Badiou diz:

“Lacan se comparava a Lênin, comparando Marx a Freud. Com essas aproximações um tanto metafóricas, ele quis sublinhar que Freud se situava dentro de uma lógica médica de cura, e Marx numa postura de promessa. Lênin deixa de prometer o comunismo: ele decide, age, organiza.”

Badiou mostra que em muitos aspectos as obras de Lacan não são ipso facto políticas, mas que esta emerge de fundamentos que são em si mesmos extremamente políticos. Lacan decide, age e organiza, mas o que a cura lacaniana oferece não é comparável à lógica médica da cura freudiana. Claro, isso não é uma surpresa para aqueles bem versados no pensamento de Lacan. No entanto, o contexto político da cura lacaniana é essencial para a caracterização de Lacan por Badiou: “o tratamento lacaniano, apesar de totalmente apolítico em seu próprio exercício, propõe ao pensamento uma espécie de matriz política.”. O Lacan de Badiou é um leninista na medida em que manipula o contexto político para conseguir não o que Freud desejara na cura, mas antes uma cura que descobre o “sentido profundo […] que visa […] uma abertura do sujeito com relação a um estado original de impotência.” A leitura de Lacan por Badiou, embora talvez fiel à própria visão de Lacan sobre si mesmo, é contrária aos debates contemporâneos que tentam colocar Lacan diretamente em linha com Marx – tornando Lacan não “totalmente apolítico” como Badiou teria feito. Por exemplo, Samo Tomšič argumenta em “Psychoanalysis, Capitalism, and the Critique of Political Economy” que “o uso que Lacan faz da formalização está em continuidade direta com o método dialético de Marx” (Tomšič, 156).

É em relação à subjetividade que Badiou relata sua simpática recepção da obra de Lacan sobre seu próprio pensamento no início de sua carreira. Badiou explica como ele estava, no início dos anos sessenta, em “uma conjuntura particular”, e que, embora fosse um sartreano comprometido, foi inculcado (“com a ajuda de Althusser”) a romper com a fenomenologia. O desejo de Badiou era manter o conceito do sujeito em sua filosofia, ao contrário “dos ‘duros’ estruturalistas como Foucault ou os heideggerianos como Derrida, que consideram a categoria do sujeito como o mero avatar de uma metafísica defunta.” Para Badiou, Lacan quer preservar o sujeito, e “renová-lo profundamente”. É claro que o sujeito lacaniano não é mais reconhecível, como explica Badiou: “O ‘seu’ sujeito certamente estava sujeitado à cadeia significante, dividido, desconhecido de si mesmo, clivdo, exposto a uma alteridade radical”. Mas é esse gesto inicial, o de preservar o sujeito, que Badiou afirma ter atraído-o para Lacan; “Lacan foi quem me permitiu acompanhar o anti-humanismo teórico da época enquanto me mantinha fiel à minha juventude sartriana e à noção de sujeito.”

Indo de um lado para o outro ao longo da carreira de Lacan, ambos os autores sugerem que a cura lacaniana é algo que Lacan oferece e depois lentamente começa a retirar, algo que, ambos enfatizam, é sem precedentes na história do pensamento francês. Roudinesco argumenta, e Badiou concorda, que “era fascinante ver aquele homem desfazer seu pensamento em público”. O gesto final de Lacan, a dissolução, era para Roudinesco um “gesto inaudito, fundamentalmente subversivo, como uma última provocação, um pontapé final na sua suposta onipotência teórica”. Para Badiou, o enigma que Lacan apresenta em seus seminários tardios “poderia ser representado com as características de Édipo em Colono.” Ele continua: “na situação de um homem que desata por conta própria o nó de sua existência e impõe a quem quiser ouvir esse desenlace final.” Há um sentido claro para Badiou e Roudinesco de que a teatralidade nos seminários de Lacan, suas tentativas óbvias de formular sua teoria em etapas incrementadas anualmente, era algo que ele pretendia continuar até sua morte. Roudinesco concorda: “No fim da vida, Lacan se transformou, fisicamente, em Édipo em Colono, pela maneira de andar e gestos. Ele estava engajado em um projeto gigantesco de dissolução.” Badiou diz que: “essa é uma postura obscura, espectral. Mas que realça e condensa a própria tragédia do sujeito.” O projeto de Lacan é muito frutífero para a filosofia, Badiou argumenta: “Nunca deixaremos de nos interrogar sobre esse homem, esse pensamento. De que realmente se tratava no fundo? De psicanálise? Evidentemente. De filosofia? Sim, em um certo sentido.” A idéia de que Lacan voluntariamente desfez seu próprio pensamento é relativamente um lugar comum. O Menos que Nada de Slavoj Žižek explica que Lacan havia formulado um certo impasse em seus seminários tardios. O nó borromeano demonstra a incapacidade de Lacan de fechar completamente o círculo de seus argumentos: “aqui Lacan, bem no final de seu ensinamento, chegou a um impasse acerca do qual, de um modo autenticamente trágico, confessou abertamente” uma admissão de derrota total (Žižek,798-9). O seminário XXVI não publicado “La topologie et le temps”, Lacan diz: “É evidente que eu estava errado, mas eu simplesmente me deixei cair nisso. Isso é perturbador, e é ainda mais do que irritante. É ainda mais irritante que não seja justificado. É assim que as coisas me parecem hoje, e é isso que confesso para vocês. Bem! “(Lacan in Žižek, 799).

O que aprendemos com Badiou e Roudinesco não é a elaboração de como ou por que esse momento trágico ocorre no ensinamento de Lacan, nem em termos técnicos, nem em termos mais gerais. Recebemos antes slogans divertidos que convidam perguntas e suscitam curiosidade. Badiou diz:

“Imagino o último Lacan como alguém que continua indicando com o dedo um real indizível. Só que, no fim, não se podia mais saber o que esse gesto designava e no que implicava realmente. Legou-nos uma espécie de enigma, como a própria morte.”

A elucidação do pensamento de Lacan é alcançada, com grande precisão, por ambos os autores em outros lugares. Aqui, no entanto, somos simplesmente deixados para apreciar as reflexões das duas imponentes figuras da cena intelectual contemporânea francesa. Badiou explica sua afinidade com o maoísmo – “Pode-se, hoje, apenas dizer que Mao faz parte da grande história revolucionária, assim como Robespierre, Saint-Just, Blanqui, Trótski, Lênin e tantos outros” -, mas ele discorda da visão de Roudinesco de que o pensamento de Lacan tenha uma propensão para proliferar a história revolucionária:

“Tem precisamente a ver com conceito lacaniano de sujeito, ao qual não é apenas necessário, como é totalmente coerente, conferir uma dimensão política subversiva, pela filosofia. Entre Lacan, que dizia “não ceda quanto ao seu desejo”, e Mao que dizia “temos razão de nos revoltar”, a passagem, para nós, era evidente.”

No entanto, neste livro, nunca vamos além das declarações ou slogans – que foi talvez o objetivo “heroico” do projeto desde o início.


REFERENCIAS:

  • Lacan, J, Le Séminaire de Jacques Lacan, XXVI: La topologie et le temps – 09-01-1979. Disponível em: http://gaogoa.free.fr/Seminaires_HTML/26-TT/L09011979.htm (Accessado pelo autor em: 04 November 2016). Transcrição não publicada.
  • Tomšič, S 2015, “Psychoanalysis, Capitalism, and the Critique of Political Economy,” Andrej Zevnik and Samo Tomšič (eds.) Jacques Lacan: Between Psychoanalysis and Politics (Interventions), (NY: Routledge).
  • Žižek, S 2012, Less than Nothing, Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism, (London: Verso).

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