Por Slavoj Žižek, via RT, traduzido por Rodrigo Gonsalves.
O barulho da sabre e a dura retórica do atual impasse nuclear na península coreana devem lembrar a humanidade de algo que nos esquecemos. Armas atômicas são coisas terríveis, e falar em usá-las deve ser um assunto tabu.
Há uma semana atrás ou mais, me vi lendo o 80º e o penúltimo livro de Agatha Christie, “Passageiro para Frankfurt”, e a sua atual relevância me chamou a atenção. O livro, que foi publicado em 1970, com o subtítulo “uma extravagância”, é um fracasso total e muitas vezes foi caracterizado como uma “confusão incompreensível”; entretanto, essa “confusão” não se deve à velhice ou senilidade de Christie: ao invés disso, suas causas são claramente políticas.
O “Passageiro para Frankfurt” é o romance mais pessoal, mais intimamente sentido e, ao mesmo tempo, o mais político romance de Christie. Ele expressa sua confusão pessoal, seu sentimento de estar totalmente perdida com o que estava acontecendo no mundo no final da década de 1960 – as drogas, revolução sexual, protestos de estudantes, assassinatos, etc. Por isso, não é de se admirar que o “Passageiro para Frankfurt” não seja um romance de detetive. Não há assassinato, não há lógica e nem dedução. Esse sentimento do colapso do mapeamento cognitivo elementar, esse amedrontador medo do caos, é representado precisamente na introdução de Christie ao romance:
“Levante um espelho na frente de si em 1970 na Inglaterra. Olhe para aquela primeira página todos os dias por um mês, faça anotações, considere e classifique. Todos os dias há uma morte. Uma menina estrangulada. Uma mulher idosa atacada e roubada de suas poucas economias. Jovens ou meninos atacando ou sendo atacados. Edifícios e cabines telefônicas amassadas e destruídas. Contrabando de drogas. Roubo e assalto. As crianças desaparecidas e crianças mortas com cujos os corpos não se encontravam longe de suas casas. Pode ser a Inglaterra? A Inglaterra é realmente assim? Ainda não, mas poderia ser. O medo está despertando, o medo do que pode ser. E não apenas em nosso próprio país. Existem parágrafos menores em outras páginas que dão notícias da Europa, da Ásia, das Américas, de notícias do mundo inteiro. O sequestro de aviões. Seqüestro. Violência. Revoltas. Ódio. Anarquia. Tudo tornando-se mais forte. Todos parecem levar a adoração pela destruição, prazer em crueldade. O que significa tudo isto?”
Então, o que tudo isso significa? No romance, Christie dá a sua resposta – uma terrível conspiração mundial que tem algo a ver com Richard Wagner e “O Jovem Siegfried”. Aprendemos que, no final da Segunda Guerra Mundial, Hitler foi a uma instituição mental, se encontrou com um grupo de pessoas que achavam que eram Hitler e trocou de lugar com um deles, assim, sobrevivendo à guerra. Ele então escapou para a Argentina onde se casou e teve um filho que foi marcado com uma suástica em seu calcanhar – “O Jovem Siegfried”. Enquanto isso, no presente do livro, as drogas, a promiscuidade e os protestos estudantis são todos causados secretamente por agitadores nazistas que querem trazer anarquia para que possam restaurar a dominação nazista em escala mundial.
Delírio Global
Esta “terrível conspiração mundial” é, certamente, a fantasia ideológica em seu estado mais puro: uma estranha condensação do medo da extrema direita e da extrema esquerda. O mínimo que podemos dizer em crédito à Christie é que ela localiza o coração da conspiração na extrema direita (neo-nazis) e não em nenhum dos outros habituais suspeitos (comunistas, judeus, muçulmanos e etc.). A ideia de que neo-nazis estavam por trás dos protesto estudantis e luta de libertação sexual de 68, com sua óbvia loucura, no entanto, testemunha a desintegração de um mapeamento cognitivo consistente ao nosso predicamento.
Christie é compelida a refugiar-se em um constructo paranoico e louco como a única maneira de introduzir alguma ordem e significado na confusão e no pânico em que ela mesma se encontrava. Mas, seria sua visão realmente louca demais para ser levada a sério? Nossa era com “líderes” como Donald Trump e Kim Yong Un não é tão louca quanto sua visão? Não somos todos nós hoje um grupo de passageiros para Frankfurt? Nossa situação é desordenada de uma maneira muito semelhante à descrita por Christie: um governo de direita que impõe os direitos dos trabalhadores (na Polônia), um governo de esquerda que persegue a política de austeridade mais rígida (na Grécia). Assim, não é de admirar que, para recuperar um mínimo de mapeamento cognitivo, Christie recorra à Segunda Guerra Mundial, “a última boa guerra”, ‘retraduzindo’ nossa confusão em tais coordenadas.
No entanto, deve-se notar como a própria forma da resposta de Christie (um grande agente secreto por trás disso tudo) espelha estranhamente a ideia fascista da conspiração judaica: existe um grande plano nazista por trás em que reside a explicação para tudo. E, hoje, a extrema direita populista propõe uma explicação semelhante à “ameaça” imigrante muçulmana. No imaginário antisemita, o “judeu” é o mestre invisível que secretamente puxa as cordas, e é por isso que os imigrantes muçulmanos NÃO são os judeus de hoje: eles são visíveis demais, não invisíveis. Eles claramente não estão integrados às nossas sociedades, e ninguém afirma que eles secretamente puxam as cordas – se alguém vê em sua “invasão da Europa” uma trama secreta, então os judeus precisam estar por trás disso. Como foi o caso de um texto que apareceu recentemente em uma das principais revistas semanais eslovenas da direita, onde podemos ler: “George Soros é uma das pessoas mais depravadas e perigosas do nosso tempo” responsável pela “invasão do negroide e das hordas semitas e, portanto, pelo crepúsculo da União Europeia… como um típico Talmud-sionista, ele é um inimigo mortal da civilização ocidental, do Estado-nação e do homem branco europeu”.
Seu objetivo é construir uma “coalizão de arco-íris composta por marginais sociais como gays, feministas, muçulmanos e marxistas culturais que odeiam o trabalho’, que então realizariam “uma desconstrução do Estado-nação e transformaria a União Europeia em uma distopia multicultural dos Estados Unidos da Europa”. Além disso, Soros é inconsistente em sua promoção do multiculturalismo: “Ele o promove exclusivamente na Europa e nos EUA, enquanto no caso de Israel, ele, de uma maneira que é para mim totalmente justificada, concorda com seu monoculturalismo, racismo latente e a construção de um muro. Em contraste com a União Europeia e com os EUA, ele também não exige que Israel abra suas fronteiras e aceite ‘refugiados’. Uma hipocrisia adequada ao Talmud-sionista”. [Citado por Bernard Brščič,” “George Soros é uma das pessoas mais depravadas e perigosas do nosso tempo”(em esloveno), Demokracija, 25 de agosto de 2016, p. 15.]
Este é o fim?
Seria essa fantasia nociva que reúne o antisemitismo e a islamofobia, tão diferentes da que foi encenada por Christie? Não seriam ambos uma tentativa desesperada de se orientar em tempos confusos? As oscilações extremas na percepção pública da crise coreana são significativas enquanto tal. Uma semana nos dizem que estamos à beira da guerra nuclear, então temos uma semana de descanso, então a ameaça de guerra explode novamente. Quando visitei Seul em agosto de 2017, meus amigos de lá me disseram que não existe uma ameaça significativa de guerra, uma vez que o regime norte-coreano sabe que não poderia sobreviver a uma guerra, mas agora as autoridades sul-coreanas estão preparando a população para uma guerra nuclear.
Em tal situação, onde o apocalipse está no horizonte, deve-se ter em mente que a lógica padrão de probabilidade já não se aplica, precisamos de uma lógica diferente, descrita por Jean-Pierre Dupuy: “O evento catastrófico está inscrito no futuro enquanto destino, como certeza, mas também enquanto um acidente contingente… se um evento excepcional acontecer, uma catástrofe, por exemplo, não poderia ter ocorrido; não obstante, na medida em que não ocorreu, não é inevitável. É assim, a realização do evento – o fato de que acontece – que cria retroativamente sua necessidade”. [Jean-Pierre Dupuy, Petite metaphysique des tsunami, Paris: Seuil 2005, p. 19.] Dupuy fornece o exemplo das eleições presidenciais francesas em maio de 1995; aqui está a previsão de janeiro do principal instituto de votação: “Se no próximo dia 8 de maio, o (Edouard) Balladur for eleito, pode-se dizer que as eleições presidenciais foram decididas antes mesmo de terem ocorrido“.
Quando aplicado à recente tensão na Coréia, isso significa: SE a guerra explode, será necessária e inevitável; SE a guerra não explodir, foi tudo um alarme falso. Isso, de acordo com Dupuy, também é como devemos abordar a perspectiva de uma catástrofe nuclear (ou ecológica): não para “realisticamente” avaliar as possibilidades da catástrofe, mas aceitá-la enquanto nosso destino, como inevitável e, então, com base nesta aceitação, devemos nos mobilizar para realizar o ato que irá mudar o próprio destino e, assim, inserir uma nova possibilidade na situação. Ao invés de dizer “o futuro ainda está aberto, ainda temos tempo para agir e evitar o pior“, deve-se aceitar a catástrofe como inevitável, e depois trabalhar para desfazer o que já está “escrito nas estrelas” enquanto o nosso destino.
O que é necessário é nada menos do que um novo movimento anti-nuclear global, uma mobilização global que exercerá pressão sobre potências nucleares e agir de forma agressiva, organizando protestos e boicotes em massa, denunciando nossos líderes e seus pares como criminosos. Deve se concentrar não apenas na Coréia do Norte, mas também nos superpoderes que assumem o direito de monopolizar armas nucleares. A própria menção pública do uso de armas nucleares deve ser tratada como uma infração penal. E, mais do que isso, é necessária uma mudança global em nossa posição, o que Peter Sloterdijk chama de “domesticação do animal selvagem chamado cultura”.
Até agora, cada cultura disciplinou e educou seus próprios membros e garantiu a paz cívica entre eles sob a forma do poder do Estado, mas a relação entre diferentes culturas e estados estava permanentemente sob a sombra de uma guerra potencial, com cada estado em paz sendo nada mais do que uma armistício temporário. Como conceituou Hegel, toda a ética de um estado culmina no mais alto ato de heroísmo, a prontidão para sacrificar a vida de alguém pelo estado-nação, o que significa que as relações bárbaras e selvagens entre os estados servem de base à vida ética dentro de um Estado. Não seria a Coréia do Norte de hoje com sua cruel busca por armas nucleares e foguetes para enviá-los a alvos distantes, o exemplo final desta lógica da soberania incondicional do Estado-nação?
No entanto, no momento em que aceitamos plenamente o fato de que vivemos na Nave-mãe Terra, a tarefa que se impõe urgentemente é o da própria civilização civilizadora, de impor a solidariedade universal e a cooperação entre todas as comunidades humanas. Uma tarefa tornada ainda mais difícil com a contínua ascensão do sectarismo religioso e da violência étnica “heróica”, com a prontidão para sacrificar-se (e o mundo) em prol da própria causa específica.