Os Três Argumentos Teóricos de Lênin Sobre a Ditadura do Proletariado

Por Étienne Balibar, via Verso Books, traduzido por Aukai Leisner.

Em 1976, o Partido Comunista Francês abandonou formalmente a ditadura do proletariado como fase estratégica na transição para o comunismo na Europa ocidental. “Nada nem ninguém, nem mesmo o Congresso de um Partido Comunista, pode abolir a ditadura do proletariado.  Esta é a conclusão mais importante desse livro de Etienne Balibar,” escreve Grahame Locke, em sua introdução a “Sobre a Ditadura do Proletariado”, que ele traduziu para a edição da Verso, publicada em 1977.

“A razão para tal é que a ditadura do proletariado não é uma política ou uma estratégia que implica o estabelecimento de uma forma particular de governo ou instituição mas, ao contrário, uma realidade histórica. Mais precisamente, trata-se de uma realidade que tem suas raízes no próprio capitalismo e cobre todo o período de transição ao comunismo, a “realidade de uma tendência histórica”, uma tendência que se desenvolve no interior do próprio capitalismo, na luta contra ele (capítulo 5). Não se trata de “uma transição possível para o socialismo,” um caminho que pode ou deve ser “escolhido” sob certas condições históricas (e.g., na Rússia “atrasada” de 1917) mas que pode ser rejeitado em prol de uma opção “diferente”, do caminho “democrático,” na Europa ocidental política e industrialmente “avançada.” Não se trata de uma questão de escolha, de política – portanto, a ditadura do proletariado não pode ser “abandonada,” assim como não se pode abrir mão da luta de classes, a não ser no discurso e ao custo de muita confusão.”

No excerto abaixo, Balibar esboça a arquitetura teórica da concepção leninista da ditadura do proletariado.


Todos sabem que nem Lênin nem Marx e Engels jamais escreveram um “tratado” sobre a ditadura do proletariado (o que veio a ser feito depois). Quanto a Marx e Engels, a razão é óbvia: exceto as breves e fragmentárias experiências das revoluções de 1848 e da Comuna da Paris, cujas principais tendências eles descobriram e analisaram, os dois pensadores nunca tiveram oportunidade de estudar “exemplos reais” dos problemas da ditadura do proletariado. No caso de Lênin, o motivo é outro: o pensamento político confrontou-se pela primeira vez com a verdadeira experiência da ditadura do proletariado. No entanto, essa experiência foi extraordinariamente difícil e contraditória. São as contradições da ditadura do proletariado, como estava começando a desenvolver na Rússia, que formam o objeto da análise e dos argumentos de Lênin. Se esquecemos esse fato, nos tornamos presa fácil do dogmatismo e do formalismo: o leninismo será representado como uma teoria acabada, um sistema fechado – como de fato o foi, por muito tempo, pelos partidos comunistas. Mas se, por outro lado, nos contentarmos com uma visão superficial dessas contradições e de suas causas históricas, se nos limitarmos à ideia simplista e falsa segunda a qual temos que “escolher” entre teoria e história, vida real e prática, se interpretarmos os argumentos de Lênin simplesmente como reflexo de circunstâncias em permanente mutação, tanto menos aplicáveis quanto mais distantes dos eventos históricos que lhes deram origem, então as causas reais dessas contradições históricas tornam-se ininteligíveis e nossa própria relação com elas torna-se invisível. Estaremos, portanto, no domínio da fantasia subjetiva. Nas análises concretas de Lênin, em seus slogans táticos, expressa-se um esforço permanente para compreender tendências históricas genéricas e formular seu conceito correspondente. Se não compreendermos esse conceito, não poderemos estudar, de maneira crítica e científica, a experiência histórica da ditadura do proletariado.

A fim de ser o mais claro possível, examinarei en bloc o que me parece constituir a base de tal teoria como elaborada por Lênin.

A teoria da ditadura do proletariado pode ser resumida, em linhas gerais, em três argumentos, ou três grupos de argumentos, que são incessantemente repetidos e postos à prova por Lênin. Eles podem ser encontrados de forma idêntica, explícita ou implicitamente, em cada página dos textos que cobrem o período da revolução russa, aparecendo, em particular, sempre que uma situação crítica ou um momento decisivo na revolução necessita de retificação no nível da tática, com base nos princípios do marxismo, a fim de realizar a unidade entre teoria e prática. Quais sãos esses três argumentos?

O primeiro deles trata do poder estatal.

Pode-se resumi-lo dizendo que, do ponto de vista histórico, o poder estatal é sempre o poder político de uma única classe, que o detém na sua capacidade de classe dominante. Isso é o que Marx e Lênin querem dizer quando afirmam que toda forma de poder estatal é uma “ditadura de classe.” A democracia burguesa é uma ditadura de classe (a ditadura da burguesia); a democracia proletária da classe trabalhadora é também uma ditadura de classe. Sejamos mais precisos: esse argumento implica que, na sociedade moderna, que baseia-se no antagonismo entre a burguesia capitalista e o proletariado, o poder estatal é controlado de maneira absoluta pela burguesia, que não o compartilha com nenhuma outra classe, nem mesmo entre suas próprias frações. Este fato é verdadeiro quaisquer que sejam as formas históricas particulares em que se realiza a dominação política da burguesia, quaisquer que sejam as formas particulares das quais a burguesia lança mão, na história de cada formação capitalista, a fim de preservar seu poder estatal, que é constantemente ameaçado pelo desenvolvimento da luta de classes.

A primeira tese tem a seguinte consequência: a única alternativa histórica possível ao poder estatal da burguesia é um domínio igualmente absoluto do poder do estado pelo proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados explorados pelo capital. Assim como a burguesia não pode dividir o poder estatal, também o proletariado não pode dividi-lo com as demais classes. E esse controle absoluto do poder estatal é a essência de todas as formas da ditadura do proletariado, quaisquer que sejam suas transformações e variantes históricas. Falar de uma alternativa, no entanto, é bastante impreciso: deveríamos afirmar, ao invés, que a luta de classes conduz inevitavelmente ao estado controlado pelo proletariado. Mas é impossível prever com precisão tanto o momento em que o proletariado será capaz de tomar o poder do estado quanto as formas particulares em que irá fazê-lo. Também não podemos garantir o sucesso da revolução proletária, como se ele fosse automático. O desenvolvimento da luta de classes não pode ser planejado nem programado.

O segundo argumento diz respeito ao aparato estatal.

Podemos sumariá-lo da seguinte maneira: o poder estatal da classe dominante não existe na história, nem pode ser realizado e mantido senão por sua materialização no desenvolvimento e funcionamento do aparato estatal – ou, para usar uma das metáforas de Marx que Lênin toma emprestada a todo momento – no funcionamento da “máquina estatal,” cujo núcleo (o principal aspecto, mas não o único – Lênin jamais afirmou tal exclusividade) é constituído pelo(s) aparato(s) repressivo(s) do estado. São eles: o exército, bem como a polícia e os aparatos legais; de outro lado, a administração estatal ou “burocracia” (Lênin usa os dois termos mais ou menos intercambiavelmente). Essa tese tem a seguinte consequência, com a qual está absolutamente vinculada: a revolução proletária, isto é, a derrubada do poder estatal da burguesia, é impossível sem a destruição do aparato estatal existente, em que o poder estatal da burguesia realiza-se materialmente. A menos que esse aparato seja destruído – o que é uma tarefa difícil e complexa – a ditadura do proletariado não pode se desenvolver e cumprir sua tarefa histórica: a eliminação das relações de exploração e a criação de uma sociedade sem exploração de classe. A menos que esse aparato seja destruído, a revolução proletária será inevitavelmente derrotada e a exploração será mantida, quaisquer que sejam as formas históricas no interior das quais esse fenômeno ocorra.

Está claro que os argumentos de Lênin têm consequências imediatas para ambos o estado e a ditadura do proletariado. Os dois problemas são inseparáveis. Na teoria marxista, não temos de um lado uma teoria geral do estado e de outro uma teoria (particular) da ditadura do proletariado. Há apenas uma teoria.

Os dois primeiros argumentos, examinados acima, já estão presentes de forma explícita em Marx e Engels. Eles não foram descobertos por Lênin, embora o revolucionário russo os tenha resgatado da deformação e censura às quais haviam sido sujeitados na versão da teoria marxista ensinada oficialmente pelos partidos social-democratas. O que não significa que, nesse ponto, o papel de Lênin e da Revolução Russa não tenham sido decisivos. Mas se restringirmos nossa atenção àquele núcleo teórico que venho debatendo, é verdade que tal papel consistiu sobretudo numa aplicação da teoria de Marx e Engels pela primeira vez, de forma efetiva, no campo da prática. A revolução permitiu que houvesse uma fusão entre a prática revolucionária do proletariado e das massas, de um lado, e da teoria marxista do estado e da ditadura do proletariado, de outro – uma aliança inédita. O que significa que, embora tenha havido progressos importantes no movimento trabalhista depois da época de Marx, eles foram acompanhados de uma diminuição considerável em sua autonomia, em sua independência prática e teórica da burguesia e, portanto, em sua força política. Foi a transformação do marxismo em leninismo que permitiu ao proletariado superar essa regressão histórica.

Isso nos leva ao terceiro argumento, que tem a ver com o socialismo e o comunismo.

Trata-se de um argumento com alguns precedentes, com elementos preparatórios na obra de Marx e Engels. Obviamente não é por acaso que Marx e Engels apresentaram sua posição como comunista, e somente adotaram explicitamente o termo “socialista” (e ainda mais o termo “social-democrata”) como uma concessão. Podemos mesmo afirmar que, na ausência dessa posição (e da tese que ela implica), a teoria de Marx e Engels seria ininteligível. Mas eles não tiveram oportunidade de desenvolvê-la plenamente. Essa tarefa coube a Lênin e, ao levá-la a cabo, ele baseou-se no desenvolvimento da luta de classes no período da revolução russa – da qual sua obra é, portanto, o produto, no sentido forte do termo. Tal argumento está agora encontrando o destino a que foram condenados os dois primeiros na época anterior a Lênin e à revolução russa: tem sido “esquecido” e deformado (com consequências dramáticas) ao longo história do movimento comunista e do leninismo, assim como padeceram de esquecimento e deformação, através da história do marxismo, os dois argumentos anteriores.

Uma primeira formulação, bastante abstrata, foi esboçada por Marx no Manifesto Comunista e na Crítica ao Programa de Gotha: somente o comunismo é uma sociedade sem classes, uma sociedade em que todas as formas de exploração desaparecem. E, uma vez que as relações capitalistas constituem a última forma histórica possível de exploração, isso implica que somente relações sociais comunistas, no campo da produção e na vida social como um todo, estão de fato em antagonismo com as relações capitalistas; somente elas são realmente incompatíveis, irreconciliáveis com as relações capitalistas. Isso implica uma série de consequências imensamente importantes, ao mesmo tempo práticas e teóricas. Primeiramente, temos que o socialismo não é senão a ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado não é simplesmente uma forma de “transição para o socialismo,” não é um “caminho de transição para o socialismo” – é, na verdade, idêntica ao socialismo. Não há, portanto, dois objetivos diferentes, a serem alcançados separadamente: primeiro o socialismo e depois – uma vez que o socialismo tenha sido construído, completo, uma vez que tenha se “desenvolvido” (ou “desenvolvido a um estágio elevado”), i.e., aperfeiçoado, uma vez que tenha, como se diz, criado “as bases do comunismo” – em segundo lugar, um novo objetivo, a transição ao comunismo, a construção do comunismo. Há, na verdade, apenas um objetivo, cujo conquista se estende por um longo período (muito mais longo e contraditório, sem dúvida, que imaginado pelos trabalhadores e seus teóricos). Mas esse objetivo determina, desde o princípio, a luta, a estratégia e as táticas do proletariado.

O proletariado, as massas proletárias e toda a multidão que o proletariado arrasta consigo não lutam pelo socialismo como um objetivo independente. Elas lutam pelo comunismo, para o qual o socialismo é somente o meio, não passando de sua forma inicial. Nenhuma outra perspectiva interessa a tais atores, no sentido materialista do termo. Eles lutam pelo socialismo somente porque essa é a maneira de chegar ao comunismo. E lutam pelo socialismo com os meios fornecidos pelas ideias comunistas, pela organização comunista (na verdade, pelas organizações comunistas, já que o Partido é apenas uma delas – embora seu papel seja obviamente decisivo). Em última instância, as massas estão lutando para fortalecer a tendência ao comunismo, que está objetivamente presente na sociedade capitalista, e que o desenvolvimento do capitalismo reforça e fortalece.

Segue-se uma consequência muito importante, que colocarei de forma abstrata: a teoria do socialismo é somente possível quando desenvolvida a partir da perspectiva do comunismo, com base numa práxis comunista. Se deixarmos de lado essa posição, se a perdermos de vista, se as dificuldades extraordinárias para atingi-la nos levarem a ignorá-la ou abandoná-la na prática – ainda que lhe reservemos um lugar em nossa teoria ou que falemos dela como um ideal distante – então o socialismo e a construção do socialismo se tornam impossíveis, ao menos na medida em que representa uma ruptura revolucionária com o capitalismo.

Trata-se agora não de desenvolver todas as implicações desses argumentos mas simplesmente de preparar uma análise mais completa, de explicar a maneira como são formulados, e de opor-se a certas interpretações falsas e objeções infundadas.

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