O Estado, o marxismo, o comunismo: um debate entre L. Althusser e N. Poulantzas

Por Andrea Cavazzini*, traduzido por Danilo Enrico Martuscelli 

O que resta de todos esses debates é a questão, inevitavelmente deixada em aberto, da relação entre uma política de emancipação e o Estado – a questão, portanto, da relação do Estado com a definição da política.


1) Althusser e a “ditadura do proletariado”

A reconstrução dos debates do final da década de 1970 em torno do comunismo, do Estado e de noções como “Partido”, “revolução”, “ditadura do proletariado”, não pode ser abordada aqui de maneira satisfatória. No entanto, gostaríamos de fornecer ao leitor um fragmento deste ciclo de confrontos teóricos e políticos, retornando primeiro a um texto incomum de Althusser, a brochura 22éme Congrès (Maspero, Paris, 1977),[1] que pertence por direito aos escritos sobre a crise do marxismo em virtude da discussão que figura do conceito de “ditadura do proletariado”, noção “abandonada” como um ato “administrativo” pelo PCF no período da aliança eleitoral com o PS.

Uma das questões da discussão de Althusser sobre essa noção carregada de uma história agora inapropriada foi a legitimação de novas práticas políticas de massa exteriores ao Partido Comunista (e ao referencial estatal do qual o Partido faz parte) – tratava-se de retirar o comunismo enquanto política do monopólio da forma-Partido. É por isso que Althusser lê a palavra de ordem de “união do povo da França” de uma maneira que é de fato aberrante em relação ao significado histórico “objetivo” desta fórmula, mas que visa precisamente contrastar o primado dos aparelhos e as posições em que o eco da Revolução Cultural ainda ressoava:

“Essa palavra de ordem não é empregada com o mesmo sentido da palavra de ordem de união da esquerda. É mais ampla e de natureza distinta: pois não designa somente a união (…) das organizações políticas de esquerda, partidos e sindicatos (…) Por que se dirigir assim às massas populares? Para lhes dizer, mesmo que seja ainda por meias palavras, que precisam se organizar de maneira autônoma, sob formas originais, nas empresas, nos bairros, nas vilas, em torno das questões das condições de trabalho e de vida, em torno das questões de moradia, da escola, da saúde, dos transportes, do meio ambiente, etc., para definir e defender as suas reivindicações, primeiro para preparar o advento do Estado revolucionário e, em seguida, para sustentá-lo, estimulá-lo e condicioná-lo ao mesmo tempo a ‘perecer’[2]. Estas organizações de massa, que ninguém pode definir antecipadamente e no lugar das massas, já existem e procuram atuar na Itália, na Espanha e em Portugal (…) Se as massas se apoderam da palavra de ordem de união do povo da França e a interpretam nesse sentido de massa, reatarão uma tradição viva das lutas populares de nosso país e poderão contribuir para dar um conteúdo novo às formas políticas por meio das quais o poder do povo trabalhador será exercido sob o socialismo. Algo pode amadurecer na união do povo da França, algo que foi destruído pelas práticas stalinistas, que está no cerne da tradição marxista e leninista: algo que diz respeito à relação entre partido e massas: dar a palavra às massas que fazem a história, estar não somente “a serviço das massas” (palavra de ordem que pode também ser reacionária), mas ouvi-las, estudar e compreender suas aspirações e suas contradições, suas aspirações em suas contradições, saber estar atento à imaginação e à invenção das massas” (L. Althusser. 22éme Congrès, Maspero, Paris, 1977, pp. 35-37).[3]

Althusser, portanto, nessas linhas onde parece reproduzir a prosa e a linguagem maoísta, exorta as massas a se apropriarem da iniciativa política propriamente dita, retirando-a do controle dos órgãos do Partido. Ele afirma explicitamente que as experiências surgidas em vários países por fora da política oficial dos aparelhos (partidos e sindicatos) são espaços políticos plenos, capazes de fornecer conteúdo para o exercício do poder sob o socialismo – conteúdo estreitamento ligade à tarefa de “fazer parecer” o Estado. É por isso que Althusser procura requalificar a noção de “ditadura do proletariado”:

“A forma política da ditadura ou dominação de classe do proletariado é a ‘democracia social’ (Marx), a ‘democracia de massa’, a ‘democracia até o fim’ (Lênin). Mas, enquanto  dominação de classe, esta dominação de classe não se reduz unicamente às suas formas políticas: é simultaneamente dominação de classe na produção e na ideologia. É essa nova dominação de classe (ditadura do proletariado para Marx e Lênin) que vai seguir o caminho oposto da dominação de classe burguesa (…): ela transformará pouco a pouco as formas de exploração, as formas políticas e ideológicas burguesas, “destruindo” ou revolucionando a “máquina do Estado” da burguesia, que nada mais é que o Estado da dominação (ditadura) da classe burguesa” (Ibid., pp. 41-42)[4]

Althusser toma a “ditadura do proletariado” como o conjunto das formas pelas quais se torna possível libertar-se da dominação política, da submissão ideológica e, finalmente, da exploração econômica, peculiar do regime capitalista. Isso equivale a alterar qualquer representação “putschista” e sangrenta dessa “ditadura” (reduzida ao seu significado de condução, guia), e fazer das organizações de massa – onde as relações políticas, ideológicas e econômicas são realmente consideradas e modificadas, poderíamos dizer, diariamente – a instância principal desse “guia” do proletariado sobre as relações sociais. Essa reformulação da noção de “ditadura do proletariado” produz efeitos sobre o modo de tratar o problema do Estado – do Estado burguês e do Estado pós-revolucionário:

“Este Estado burguês, instrumento da dominação de classe burguesa, Marx e Lênin repetiram que seria preciso “quebrá-lo” e, ideia mais importante ainda, eles relacionaram essa “destruição” do Estado burguês com o “perecimento” ulterior do novo Estado revolucionário (….) Dito de outra maneira, eles pensaram na “destruição” do Estado também na base do “perecimento” e do “fim” de qualquer Estado. Isso liga-se a uma tese fundamental de Marx e de Lênin: não é apenas o Estado burguês é opressivo, mas qualquer Estado (…) Lênin diz: devemos “quebrar” o aparelho parlamentar burguês. O que propõe Lênin para “quebrá-lo”? 1. a supressão da divisão dos poderes entre o legislativo e o executivo; 2. a supressão da divisão do trabalho sobre a qual ela se assenta (teórica, prática); e, acima de tudo, 3. a supressão do corte burguês que separa as massas populares do aparelho parlamentar. É uma “destruição” muito particular, que, neste caso, não tem nada de aniquilamento, mas que reorganiza e revoluciona um aparelho existente, para que triunfe a dominação de uma nova classe (…) Na verdade, e peço que ponderem bem estas palavras, “destruir” o Estado burguês, para substitui-lo pelo Estado da classe operária e de seus aliados, não é juntar o adjetivo ‘democrático’ a cada aparelho de Estado existente, é muito diferente de uma operação formal e potencialmente reformista, é revolucionar em sua estrutura, em sua prática e em sua ideologia os aparelhos de Estado existentes, suprimir alguns, criar outros, é transformar as formas da divisão do trabalho entre os aparelhos repressivos, políticos e ideológicos, é revolucionar seus métodos de trabalho e a ideologia burguesa que domina suas práticas, é assegurar-lhes novas relações com as massas a partir das iniciativas das massas, na base de uma nova ideologia, proletária, a fim de preparar o “perecimento do Estado”, isto é, a sua substituição pelas organizações de massa. Essa exigência sustenta a teoria marxista do Estado. Para Marx, os aparelhos de Estado não são instrumentos neutros, mas, no seu sentido próprio, os aparelhos repressivos e ideológicos orgânicos de uma classe: a classe dominante. Para assegurar a dominação da classe operária e de seus aliados, e preparar, no longo prazo, o ‘perecimento’ do Estado, não é possível poupar os aparelhos de Estado existentes. É a ‘destruição’. Caso contrário, a nova classe dominante poderia ficar debilitada em sua vitória (…) Se quisermos exemplos em que o Estado não está ‘destruído’ e não está, portanto, em vias de ‘perecimento’, basta observar o lado dos países socialistas e constatar as consequências que daí advêm. Os dirigentes soviéticos declaram: ‘Para nós, o perecimento do Estado passa por seu reforço…’ (…) Insisto: trata-se não somente do problema do Estado burguês, mas também do problema do Estado revolucionário, que é também opressivo (…) Por ter abandonado por razões políticas evidentes, mas sem razões teóricas sérias, o conceito de ditadura do proletariado, ou seja, a ideia simples e evidente de que o proletariado e seus aliados devem abater, isto é, revolucionar, a máquina do Estado burguês para ‘se erigir como classe dominante’ (o Manifesto), devem atacar a substância do Estado burguês que herdaram, o XXII Congresso privou-se simultaneamente da possibilidade de pensar na ‘destruição’ e no ‘perecimento’ do Estado de modo distinto da forma vaga ou edulcorada da ‘democratização do Estado’ como se a simples forma jurídica da democracia em geral pudesse ser suficiente não só para tratar e resolver, mas simplesmente, para colocar de maneira justa os inquietantes problemas do Estado e de seus aparelhos que são problemas de classe, e não problemas de direito” (Ibid., pp. 52-55)[5]

2) Poulantzas e a “crise”

A posição de Nicos Poulantzas – à época engajada na formulação teórica da linha eurocomunista – em relação às últimas proposições de Althusser é altamente controversa. Se Althusser se esforçava para pensar em uma mudança da política comunista, transferindo a iniciativa política para práticas externas ao Partido e ao Estado, Poulantzas, tentava pensar até o fim a via “eurocomunista” para além de uma simples reafirmação do primado do aparelho em um contexto de aceitação irreversível do horizonte parlamentar e estatal. Em primeiro lugar, ele aceita a tese althusseriana – mas isso pertence ao menos  a suas próprias preocupações – do entrelaçamento entre Estado e relações de produção:

“Tentei mostrar em meus trabalhos recentes que, contrariamente às posições iniciais de Althusser, o Estado não pode ser considerado como uma instância ou nível em si mesmo, totalmente distinto das relações de produção e reprodução já existentes e auto-reprodutíveis no essencial (…) O Estado já está presente na própria constituição das relações de produção, e não apenas em sua reprodução, como mais tarde sustentará Althusser em seu artigo Idéologie et appareils idéologiques d’État[6]. O Estado, capitalista em particular, produz-se e se torna real, possui uma positividade eminente. Para entender esse papel do Estado a que Althusser agora parece se referir, é preciso claramente ir além de sua concepção do Estado no artigo em questão e, em sentido mais amplo, de uma concepção tradicional do Estado no marxismo: aquela que esgota sua ação na negatividade, ou seja, no exercício da repressão (o proibido) e na inculcação, que também é material, da legitimação ideológica. O Estado não é igual à repressão + ideologia. Devemos levar muito em conta o papel econômico do Estado em sua materialidade específica, seu papel declarado de organizador político da burguesia, enfim, todos os procedimentos e técnicas de poder disciplinares e regradores do Estado” (N. Poulantzas, “La crise des partis”, entrevista coletada de: Id., Répères, F. Maspero, Paris 1979, pp. 165-166).[7]

O problema da “positividade” do Estado, de sua natureza real e produtora, foi o cerne de uma série de estudos realizados como parte da reflexão sobre a crise do marxismo – as contribuições de C. Luporini e E. Balibar no volume que escreveram com A. Tosel, Marx et sa critique de la politique (Maspero, Paris, 1979)[8], abordavam, com suas respectivas conclusões, a necessidade de reconhecer a tendência presente em Marx de representar as relações de produção capitalistas como uma “esfera” econômica perfeitamente autopoiética (Luporini) e, consequentemente, submeter à crítica a ideia, também marxista, segundo o qual a política seria apenas um reinado das sombras, uma esfera “alienada” e inautêntica, desprovida de realidade material, característica das relações econômicas (Balibar). Mas a exigência de “produzir o conceito” da positividade material própria do Estado poderia deslizar insensivelmente para uma aproximação com a tese de Bobbio, o que significava algo diferente: a saber, a exigência de delimitar formalmente uma esfera estatal definida de certa forma a priori e de limitar o agir político às regras imanentes da definição desta esfera, ao mesmo tempo que recusa qualquer imbricação entre direito, política e economia, entre racionalidade econômica, formas políticas e relações “informais” de poder, equivaliam a negar qualquer relevância à problemática teórica marxista em quaisquer de suas formas históricas. O deslize para essas posições é patente, e assim negado, em Poulantzas:

“[Seguindo Althusser], acabamos não sendo capazes de colocar a questão da manutenção e do aprofundamento necessários, sob o socialismo, das liberdades políticas: o que requer necessariamente instituições específicas (aquelas, radicalmente transformadas certamente, da democracia representativa) que as garantam. Isto implica, então, uma certa separação entre o Estado e as relações sociais, portanto inevitavelmente (…) um certo não-perecimento do Estado. Em suma, sem cair em um neoliberalismo de esquerda, ainda não podemos tratar dessa questão, que é basicamente a questão do Estado de direito, limitando-a (…) a uma simples regra do jogo que organiza o multipartidarismo. Fazer isso, é barrar o caminho para uma análise positiva do exercício do poder na passagem ao e sob um socialismo democrático, uma análise cuja ausência no marxismo foi justamente enfatizada por Bobbio” (Ibid., pp. 168-169).

 Mas, desta forma, o referencial estatal do Estado é reintroduzido como sendo o quadro obrigatório de qualquer política, todo o problema de uma política “socialista” (e não comunista, como Althusser queria) é o de “mudar” as estruturas da democracia representativa. Por isso, a transferência da ação política para instâncias externas ao Estado só pode tornar-se impensável e ser recusada na clivagem entre “social” e “político”, portanto, entre a postulação de uma sociabilidade sem forma e a reintrodução de uma atividade “separada”, não no sentido vazio de separação da sociedade, mas no sentido de uma separação entre direção e execução inerente à divisão estatal do trabalho político.

“Ao contrário do que [Althusser] argumenta, toda luta de classe, todos os movimentos sociais (sindical, ecologista, regionalista, feminista, estudantil, etc.), tanto quanto são políticos, ou melhor, sob seus aspectos políticos, estão necessariamente situados no terreno estratégico que é o Estado. Uma política proletária não pode estar situada fora do Estado, e uma política situada no terreno do Estado, não é por isso inevitavelmente burguesa (…) Superar a fixação estatista-institucionalista da III Internacional, privilegiar até mesmo a importância dos movimentos sociais (‘sociedade civil’) não pode significar atribuir a todos, e a qualquer preço, o suposto título de honra suprema (POLÍTICA), assistir à difusão por toda parte do político e da política”(ibid pp. 171-172).

Isso equivale a pretender estabelecer uma definição prévia de política à luz da qual apreciar o valor dos “movimentos” sociais (dos quais Poulantzas fornece uma lista muito ampla – é realmente plausível considerar o “movimento sindical” como fora da política, especialmente quando se está teorizando o papel ativo do Estado no processo de produção?!): embora seja justo observar que o valor político de uma prática coletiva nunca é nem certo, nem unívoco, essa consideração deveria levar ao reconhecimento de que os espaços onde a política se manifesta são tão raros quanto imprevisíveis. A consciência de que “tudo não é político” deveria ser especialmente importante para a política parlamentar e estatal, de modo a deixar aberta a questão dos “lugares” onde um processo político poderia ser desencadeado. A posição de Poulantzas – com uma reversão total da III Internacional em sua tentativa de desconstituir o conceito de Estado – equivale, em vez disso, a atribuir à política um lugar de escolha, distinto e invariante:

“As lutas populares, em seus aspectos políticos, se situam, repito, sempre no terreno do Estado (…) O partido não poderia se situar em uma posição radicalmente exterior ao Estado. A tomada do poder do Estado refere-se a uma estratégia de longo prazo de mudar a relação de forças no próprio terreno do Estado, apoiando-se em suas contradições internas (…) Agora, mudar o equilíbrio de forças interno ao Estado, mudar radicalmente, além disso, sua materialidade, é apenas um dos aspectos de uma transição democrática para o socialismo. O outro aspecto do processo consiste em se apoiar simultaneamente nos movimentos sociais de base, impulsionando o enxame de focos de democracia direta, em suma, fundando-se nas lutas populares que sempre transbordam e, de longe, o Estado (…) O que está em jogo aqui é a articulação dos dois aspectos do processo: não se trata de “destruir” as instituições da democracia representativa (…) em favor unicamente das lutas por fora do Estado-democracia direta (esta é a solução leninista original, adotada essencialmente por Althusser) ” (Ibid., pp. 173-175).

O que Poulantzas propõe é, portanto, a institucionalização de uma exploração ambígua e “maquiavélica” dos movimentos sociais: os partidos eurocomunistas ou “socialistas” no sentido poulantziano, deveriam manter essas instâncias perpetuamente fora das práticas políticas, usando sua presença ameaçadora para aumentar suas próprias margens de ação dentro dos “lugares” oficiais de decisão política. A solução de Poulantzas será, até hoje (e, temo, para amanhã ainda…), aquela adotada pela quase totalidade das experiências politico-parlamentares “de esquerda”, seja aquelas de experiências governamentais ou de (re)fundações de novos partidos. Essas experiências demonstram que essa oscilação objetivamente “hipócrita” entre movimentismo e parlamentarismo conduz ao desastre e à desmoralização. Do ponto de vista teórico, deve-se notar que esta posição, por sua rejeição precipitada à “solução leninista” (o que equivale a adotar a solução… dos leninistas, isto é, dos aparelhos dos PCs) torna impossível formular perguntas sobre uma transformação da política que não se limitaria a modificar as estruturas atuais, mas que ousaria questionar o lugar de sua “produção”, o status de seus atores e que proporia, finalmente, uma mudança no próprio âmbito de sua definição. Se estes são os problemas dos posicionamentos de Althusser, será fácil notar que eles são os únicos que são coerentes com a hipótese comunista – de fato, essa hipótese é a própria condição de um questionamento radical, e radicalmente orientado por axiomas de emancipação, em relação à natureza de qualquer processo político em geral.

É preciso observar que, se a posição de Althusser se revelasse frágil devido à impossibilidade de formular mais claramente a relação entre as instituições existentes do movimento comunista e as novas formas políticas de massa, Poulantzas estava ciente de uma fragilidade similar de suas próprias propostas – uma fragilidade que emana das transformações do Estado que tornaram dificilmente praticável a solução socialista-democrática:

“Não posso insistir aqui sobre as novas formas repressivas do Estado atual, conotando uma acentuação da violência aberta do Estado (restrições consideráveis de liberdades, arquivamento eletrônico-informático generalizado, perecimento da lei, reimplantação dos aparelhos judiciário e policial em seu arranjo agora consubstancial, etc.) (…) Mas isso é acompanhado por uma reestruturação real da ideologia do direito (…)

Reestruturação cuja originalidade se deve ao arranjo contraditório de várias correntes, algumas das quais são bastante antigas:

a) o irracionalismo peculiar à ofensiva geral contra o marxismo e o racionalismo do iluminismo. Irracionalismo e neo-espiritualismo (…) que cobrem, abrindo caminho para isso, um tipo de racionalidade já antiga que tende a invadir o tecido social inteiro: a racionalidade instrumental e a lógica tecnocrática dos especialistas, relativamente oposta às da lei e da vontade geral:

b) o neoliberalismo, manifesto num discurso antiestatal sob o disfarce da libertação do indivíduo das usurpações do Estado. Embora os defensores deste neoliberalismo se apresentem frequentemente como entusiastas de um “anarco-capitalismo”, não devemos compreender que eles preconizam por isso um retorno real, impossível, ao capitalismo competitivo selvagem: o Estado continua a assumir um papel orgânico na reprodução do capital. O que eles preconizam de fato é a retirada, já bem avançada, das “funções sociais” do Estado Providência (crise do Estado keynesiano), que constituíram uma importante conquista das massas populares;

c) o autoritarismo, ou seja, o novo discurso da lei e da ordem, a segurança dos cidadãos, as restrições necessárias ao abuso das liberdades democráticas (ver Comissão Trilateral), etc.

Essa reestruturação do conteúdo do discurso dominante corresponde, e até mesmo induz e acusa, modificações consideráveis dos canais e aparelhos que o elaboram e difundem. O principal papel ideológico se desloca da escola, universidade, publicação para os meios de comunicação (cf. R. Debray). No entanto, é importante acrescentar que esse deslocamento se refere, dentro dos circuitos estatais, a um deslocamento mais geral dos procedimentos de legitimação, dos partidos políticos à administração do Estado de que eram, portanto, os interlocutores privilegiados ( …).

Tudo isso está na raiz de uma crise e um declínio dos partidos políticos, que até recentemente ainda desempenhavam um papel importante. Embora já não estivessem presentes nos locais efetivos de tomada de decisão, já que estavam abandonando o Parlamento para se instalar no executivo, eles ainda desempenhavam um papel decisivo na organização política e na representação dos interesses de classe diante da administração do Estado de que eram, portanto, os interlocutores privilegiados. Eram, além disso, aparelhos ideológicos de primeira ordem, elaborando e transmitindo no essencial (…) um discurso baseado na vontade geral e subjacente às instituições da democracia representativa, em resumo ao Estado de direito.

Hoje em dia, a administração se erige como a principal organizadora política das classes dominantes e como integradora privilegiada das massas populares: ela se consolida como o principal ponto de decisão, dirigindo-se aos vários grupos sócio-profissionais acima dos partidos (neocorporativismo institucionalizado manifesto notadamente nas diversas comissões tripartites). Isso leva a uma crise de representatividade dos “partidos do poder” em relação às classes e frações que representam. O papel da legitimação se move paralelamente à administração. Assim, o discurso do tecnocratismo autoritário encontra na administração um lugar privilegiado de emissão; este é também o caso do discurso neoliberal (Estado árbitro neutro que apresenta simples regras do jogo para os atores sociais), que se une à forma tradicional de auto-legitimidade do Estado. Este papel da administração também influencia à sua maneira o discurso ideológico dominante: padronização e nivelamento deste discurso, formas de consentimento plebiscitárias-populistas aliadas ao hermetismo da linguagem dos especialistas.

Esta crise do sistema dos partidos certamente diz respeito principalmente aos partidos do poder, aqueles que participam, em uma alternância regular, no governo, incluindo, portanto, vários partidos social-democratas. Mas também diz respeito, em certos aspectos, aos partidos comunistas ocidentais na medida em que, independentemente da sua participação ou não na esfera governamental, eles não são menos presentes no terreno do Estado” (Ibid., pp. 178-181).

Uma análise impressionante que mostra até que ponto a conjuntura política, social e ideológica atual se prolonga diretamente do final da década de 1970, além das euforias efêmeras dos anos 1980 e 1990 – em muitos aspectos, ainda somos contemporâneos desta época, a época da crise das opções comunistas e da reestruturação das formas econômicas e políticas do capitalismo, e é por isso que continua a sofrer um refluxo maciço ou uma desfiguração pseudo-histórica sistemática. Mas essa análise também mostra os limites de uma estratégia política como a proposta por Poulantzas – o acesso ao poder governamental pelos partidos comunistas em uma conjuntura em que a função própria à forma-Partido de garantir a mediação entre o Estado e o capital, por um lado, e os trabalhadores, por outro lado, estava se exaurindo. É verdade que a situação esboçada por Poulantzas também revela um ponto cego no discurso de Althusser: a limitação do primado político da forma-Partido (enquanto forma organizacional principal das lutas das massas exploradas) se realiza como tendência própria ao Estado capitalista, no momento em que abandona gradualmente qualquer estratégia de integração subordinada das massas às instituições estatais e à gestão dos processos econômicos. Claro, sem que isso possa significar uma transferência de poder do Estado para as massas: pelo contrário, o Estado avança pela via de uma auto-legitimação, que salva qualquer transação (cujos partidos e sindicatos de massa eram a forma institucional) com as chamadas massas, e que é análoga à auto-legitimação de um capitalismo que se coloca, a partir dos anos 80, como autopoiético, imaterial, ilimitado, funcionando sem trabalho e, portanto, sem entraves.

O caráter trágico do debate à distância entre Althusser e Poulantzas consiste, portanto, na total ausência de qualquer solução real para os problemas que eles colocaram. As “massas” que Althusser viu como portadoras de uma transformação radical da política e de uma relevância histórica para o movimento comunista, logo caíram no silêncio, e o movimento em questão, incapaz de se desalinhar de sua figura estatal, acabará por esgotar e desperdiçar todos os recursos internos de auto-renovação, no Oriente, como no Ocidente, incapaz de iniciar uma estratégia de reformismo racional, o que o levará a cair nas fileiras do populismo retrógrado ou do neofitismo liberal fanático; por outro lado, os eurocomunistas e, em geral, as “uniões da esquerda” (antes ou depois da queda do Muro de Berlim), nunca conseguiram iniciar modificações democráticas reais dos aparelhos de Estado e sua relação com os “movimentos sociais” será gerida de uma forma tão desastrosa que muitas vezes levará ambas as partes à falência e ao refluxo.

O que resta de todos esses debates é a questão, inevitavelmente deixada em aberto, da relação entre uma política de emancipação e o Estado – a questão, portanto, da relação do Estado com a definição da política. As posições de Althusser a este respeito certamente são problemáticas, e sua validade para o presente está longe de ser óbvia: de fato, a evidência sugere o contrário. Nós apostaríamos em sua atualidade (o que é distinto de lhes conferir um significado prático imediato) apenas porque implicam um questionamento essencial sobre a hipótese comunista – nossa convicção é a de que a reapropriação pelo pensamento desta hipótese constitui a única maneira de repensar as condições atuais de qualquer política.


[1]     Nota do tradutor: Foi publicada uma tradução deste livro em Portugal, ver: O 22o. Congresso. Lisboa, Editorial Estampa, 1978.

[2]     Nota do tradutor: Ao longo do texto, veremos que será frequente o uso dos termos “déperir” ou “déperissement”, que traduzimos, respectivamente, como “perecer” ou “perecimento”, pois diferentemente de outras traduções como definhar ou enfraquecer, é a única que designa a ideia de extinção, no caso em questão: a extinção do Estado. De acordo com o dicionário Le Petit Robert, em seu sentido figurado, o verbo “déperir” significa algo que se encaminha para a ruína ou para a destruição (morrer). É justamente o verbo “perecer” que expressa esse sentido, pois como nos informa o dicionário Houaiss, em sua acepção figurada, “perecer” é sinônimo de “ter fim, acabar-se, extinguir-se”.

[3]     Nota do tradutor: Na tradução portuguesa, essa passagem se localiza nas páginas 33 a 35.

[4]     Nota do tradutor: Na tradução portuguesa, essa passagem se localiza nas páginas 39 e 40.

[5]     Nota do tradutor: Na tradução portuguesa, essa passagem se localiza nas páginas 50 a 54.

[6]     Nota do tradutor: Existem várias traduções deste artigo em português. Salvo engano, no Brasil, a última delas integra a obra póstuma Sobre a reprodução, publicada pela Editora Vozes de Petrópolis, em 1999. Trata-se do último capítulo desta obra: “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (Notas para uma pesquisa)”.

[7]     Nota do tradutor: Desconhecemos a existência de tradução desta entrevista em língua portuguesa.

[8]     Nota do tradutor: Salvo engano, essa obra também nunca foi publicada em língua portuguesa.


*Texto original: “L’État, le marxisme, le communisme : un débat entre L. Althusser et N. Poulantzas”, anexo da brochura: Crise du marxisme et critique de l’État: le denier combat d’Althusser. Champagne-Ardenne: Le Clou dans le Fer, 2009.

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