O paradoxo do autônomo

Por Alexandre Pimenta

“Desde quando autônomo tem sindicato?” Caminhoneiro grevista em grupo de WhatsApp[1]


Com o estopim dado pela alta contínua do óleo diesel nos últimos meses, a recente greve dos caminhoneiros no Brasil se converteu, rapidamente, em evento político de estatura impressionante. Encurralou o governo federal e todo seu aparelho estatal em uma semana. Gerou um efeito contágio inegável, basta olhar a última paralisação nacional dos petroleiros, sem contar paralisações e protestos no setor de transportes de diversas regiões (metrô, escolares, ubers, motoboys etc.). E, mesmo gerando certo nível de desabastecimento por todo o país, o apoio popular ao movimento se mostrou enorme.

Assim como, cinco anos atrás, após um tarifaço, as ruas deram corpo e voz ao descontentamento popular mais ou menos latente à época, que enfim explodira, as rodovias hoje conseguiram materializar a insatisfação de largas parcelas da população. População esta, em sua maioria, sendo devastada pelos efeitos da longa e profunda crise econômica e política na qual o país permanece enfiado[2].

Como todo grande evento político, a greve tem suscitado e reascendido inúmeros debates e disputas. A primeira semana da greve foi também a semana de buscar entender o como, o quando, o quem, o porquê e o para onde vai esse fenômeno – perguntas que ainda, em grande parte, ecoam no ar, não tendo recebido mais que tentativas provisórias de resposta. Afinal, todo o governo, o espectro político e as organizações foram surpreendidos diante da força e adesão da greve.  Entender, nesse caso, é o primeiro passo para tentar disputar as direções e os sentidos desse imenso movimento — ou no caso do governo e do aparelho repressivo do estado (incluindo o judiciário), eliminá-lo. Tal qual, novamente, cinco anos atrás…

No âmbito da esquerda, um dos principais debates têm sido o caráter e a análise de classe desses grevistas e de seu movimento — aliás, a depender da análise feita, se se trata mesmo de uma greve ou conflito trabalhista[3]. A recente intervenção de Gabriel Landi neste site, por exemplo, situa-se nessa discussão[4]. Aqui, buscaremos contribuir com esse campo de análise através do que chamaremos de (duplo) paradoxo do autônomo.

A hipótese que desenvolveremos, no fundo, é bem simples:

1- a condição singular, como veremos, de semi-assalariamento e crescentes possibilidades de proletarização das centenas de milhares de caminhoneiros autônomos potencializou sua degradação em contexto de crise, e consequentemente sua radicalização. Sua obrigação de arcar com crescentes custos da produção (dos quais o diesel, embora importante, é apenas uma parte da história) a partir de valores de fretes praticamente estáveis, ao mesmo tempo em que enfrenta um agravamento da concorrência e das condições de trabalho, compartilhada por todos os caminhoneiros, foi fundamental para gerar um solo para o movimento germinar. Paradoxalmente, sua ideologia mais próxima das camadas médias (meritocracia, por exemplo) o levou ao extremo de se agremiar aos seus semelhantes em uma ação coletiva, organizada, em combate direto com aparelhos estatais.

2- as condições adversas à organização sindical de parcela significativa dos caminhoneiros, no fundo, podem explicar a força dessa greve. Ou seja, sem as amarras geradas (estrutural e conjunturalmente) pelos aparelhos sindicais, em muito idealizados pela esquerda, em plena “crise de representatividade” política e sindical (e por isso mesmo), os caminhoneiros conseguiram ativar repertórios mais radicais e angariar apoio popular de forma bastante eficiente. Na prática, realizaram uma espécie de greve geral, um das principais palavras de ordem do movimento sindical institucionalizado, exatamente ao se distanciar deste último e de sua estrutura.

A nosso ver, refletir sobre essas questões é de fundamental importância. Primeiro, para prosseguir o debate que está na ordem do dia. Segundo, como defende Gabriel Landi, por se tratar de um setor estratégico, cujo peso político e econômico nos últimos capítulos da luta de classes do país se mostrou evidente – só pensar no papel central do transporte público urbano na Greve Geral de 28 de abril de 2017. Por fim, por encarar os problemas dos atuais trabalhadores ditos inorganizáveis[5], frutos das mais recentes reconfigurações das relações de trabalho, e da já conhecida “crise do sindicalismo” das últimas décadas.

Quem são os autônomos?

Como se tem visto no debate público, através de grandes nomes como Ruy Braga[6], Dari Kren[7], Souto Maior[8], Ricardo Antunes[9], dentre outros, a categoria de caminhoneiros no país está imersa em relações de trabalho muito heterogêneas. Nestas se encontram todo tipo de relação fomentada pela “novíssima” gestão do trabalho: empregados ao lado de terceirizados, quarteirizados, agregados, autônomos… Definitivamente, não se está lidando com uma relação de assalariamento típica. Logo, nem com um movimento sindical típico.

Uma grande parcela dessa categoria possui seu meio de subsistência, o caminhão: eis os autônomos. Como mostra o Anuário CNT do Transporte de 2017[10], os autônomos possuem cerca de 550.000 de veículos do transporte de carga. Já as empresas possuem pouco mais de um milhão. Sua relação com outros colegas, sua ideologia (relação imaginária com suas condições reais de vida), seus interesses centrais, sem dúvida, tendem a se diferenciar de um caminhoneiro sem seu meio de subsistência (trabalhador assalariado). O papel da concorrência, do mérito, da preocupação com custos do “serviço”, são muito maiores no caso do autônomo.

Em relação ao estopim e pauta central da greve, o preço do óleo diesel, é uma preocupação que afeta muito mais diretamente o autônomo, por exemplo. São eles os mais impactados com altas de preços de combustíveis e demais custos de manutenção do veículo. Segundo o presidente da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos, em coluna na Folha de São Paulo do dia 03/06/2018, esse item representa cerca de 50% do frete (o “salário” do autônomo). Já em recente pesquisa da CNT[11], vemos que 56,4% dos autônomos consideram o custo do combustível como principal problema na atividade de caminhoneiro. Em contraposição, apenas 24,9% dos “empregados de frota” acham o mesmo. Quanto às reivindicações consideradas importantes para os caminhoneiros autônomos, redução de taxas e impostos no consumo de combustível [termo usado pela entidade patronal da pesquisa] aparece de forma disparada, 74,5%. Esta também aparece, só que em menor porcentagem, como reivindicação dos empregados de frota, 49,9%[12].

A atual crise tem atingido também violentamente os empregados de frota, que, como os demais assalariados, são alvos fáceis de redução de custos empresariais e sentem todo o peso do exército industrial de reserva em suas costas. Afinal, a demanda por frete teve brusca queda e fez cair também o movimento de caminhões nas estradas brasileiras como um todo para aquém de 2003. Isso mesmo com frota de caminhões desde então ter mais que dobrado, como demonstrou matéria da Folha de São Paulo também do dia 03/06/2018[13]. “Entre 2014 e 2016 […], a categoria perdeu quase 72 mil vagas”, fazendo muitos se tornarem autônomos, ou mesmo migrarem para a informalidade, fazendo bicos sem nenhum tipo de contrato.

Como autônomos, além da ampliação dos custos e consequente redução dos ganhos em relação ao passado, eles ainda têm que enfrentar uma concorrência brutal e tendências à monopolização[14]. Como diz Gabriel Landi, em texto já citado:

[…] os efeitos da crise econômica para a concentração dos meios de transporte no setor são visíveis. Entre 2015 e 2016, o número de empresas transportadoras caiu de 156.765 em 2015 para 111.743 em 2016, uma redução de 29%. Já o número de caminhoneiros autônomos apresentou uma queda de 23%, passando de 723.807 para 553.543 no mesmo período.

Muitos dos autônomos, velhos e novos, precisam, nesse contexto, tornar-se “agregados”, um meio termo entre empregados e autônomos, servindo exclusivamente a uma empresa, por exemplo, para sobreviver. Mas isso ocorre sem vínculo empregatício. Como diz Dari Krein, junto com Vitor Araújo, em texto já citado:

Ao invés de contratar trabalhadores formalmente como empregados, empresas que distribuem suas mercadorias ou aquelas especializadas em transporte de carga contratam centenas de milhares de motoristas como se fossem autônomos (via pessoa física ou jurídica). […] No nosso país, com a crise do emprego nos últimos anos, essa forma de contratação tem crescido no conjunto do mercado de trabalho. […] Elas [empresas] contratam e gerem centenas de milhares de trabalhadores para realizar as atividades de distribuição. Para isso, uma parte dos motoristas é admitida como empregado, enquanto outra fatia, provavelmente a maior, é contratada como se não fosse assalariada, a despeito da sua subordinação aos ditames empresarias. […] O pagamento desses motoristas depende exclusivamente do número de fretes realizados, e seu trabalho é meticulosamente monitorado por satélite/GPS. As empresas também dirigem as atividades impondo prazos exíguos e multas para atrasos. Em suma, há uma série de evidências da completa falta de autonomia desses “autônomos”.

Sob a máscara da autonomia, normalmente se escondem grandes dependências e servidões. A liberdade (ou desamparo de legislação trabalhista) do autônomo é também sua danação. Eis um primeiro paradoxo.

Por isso não podemos entender o autônomo como uma figura una. Ele é, no mínimo, uma ambiguidade e em constante movimentação. O fato de possuir seu veículo (para muitos, nem mesmo quitado!), como mostrou a mesma pesquisa da CNT, não o coloca em condições de trabalho e de renda líquida muito diferentes dos “empregados de frota”: ambos se preocupam com as condições das estradas, o risco de acidentes, assaltos e roubos, pontos de parada etc. E volta e meia ambos se mesclam em inúmeras denominações e figuras jurídicas[15], além de se aproximarem concretamente cada vez mais em contexto de crise. As marcas da precarização e da insegurança são constantes para ambos.

Aliás, os autônomos estão em maior endividamento e tendem a ter jornadas de trabalho mais desgastantes que os empregados típicos, sendo pressionados a não cumprir inclusive o mínimo de descanso estabelecido em lei. Como lembra Souto Maior, ainda, “esses ‘autônomos’, aos quais se transferem os custos da produção, recebendo por quilômetro rodado, muitas vezes acabam se vendo obrigados a consumir substâncias prejudiciais a própria saúde para conseguirem trabalhar dias e noites quase sem parar”.

Não seria exagero, assim, afirmar que sua atual condição o aproxima muito mais de uma espécie precariado do que de uma pequena burguesia tradicional[16]. Segundo Armando Castelar (FGV), consultado pela matéria da Folha de São Paulo, “parte deles [caminhoneiros] vive uma situação praticamente de desemprego”[17], e se tratando de uma categoria de baixa escolaridade e idade média alta, torna ainda mais difícil sua inserção em outro segmento do mercado de trabalho, ainda mais em contexto de crise. Outro economista citado na matéria inclusive acredita que a criação de uma espécie de seguro-desemprego (!) era solução que o governo deveria ter adotado.

Nesse sentido, o fundo trabalhista da atual greve é inegável, até mesmo onde esta não aparenta ser — como no caso da pauta do óleo diesel. Vitor Araújo e Krein, falam acertadamente que

o processo de disputa focado no preço dos insumos não é determinístico. Mesmo no assalariamento disfarçado dos motoristas contratados como autônomos, a luta poderia ser por melhores salários. A rigor, a demanda está presente na atual greve, pois a tabela com preço mínimo do frete é apenas um eufemismo para uma espécie de salário mínimo.

Mas, os mesmos autores, criticam a ideologia concreta presente no movimento, que não se vincula explicitamente a outras pautas trabalhistas. Querem, como tantos na esquerda, realizar, sobretudo, um papel de disputa via esclarecimento dos revoltosos, tirá-los de sua escuridão e trazê-los ao campo sindical mais consolidado. Ou mais ainda, tal qual Souto Maior, para a defesa do “Estado Democrático de Direito” – que, ironicamente, respondeu os caminhoneiros acionando um Estado de Exceção.

Como falamos no início, nossa hipótese é que, apenas se afastando desse campo sindical, foi possível essa greve. Vamos ao segundo paradoxo.

O aparelho sindical, seus paradoxos, e uma greve selvagem singular

Para Marx, as organizações sindicais trabalhistas são parte integrante e necessária da relação de assalariamento e sua reprodução. No clássico Salário, preço e lucro, de 1865, ele diz:

[A] resistência periódica que os trabalhadores opõem à redução de salários e suas tentativas periódicas para conseguir um aumento de salários são fenômenos inseparáveis do sistema do salariado e ditadas pelo próprio fato de o trabalho se achar equiparado às mercadorias, por conseguinte submetido às leis que regulam o movimento geral dos preços […]. Os sindicatos trabalham bem como centro de resistência contra as usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a sua força. Mas, são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de ao mesmo tempo se esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado.

Ou seja, o sindicalismo possui um aspecto de resistência importante, mas é cortado por uma deficiência crônica (posteriormente, teorizada por Lenin) e um caráter, em última instância, conservador das relações capitalistas, ao lutar contra os “efeitos” e não as “causas” da exploração e dominação de classe. A rigor, a maioria absoluta das greves e sindicatos trabalhistas não rompe com as posições das classes dominantes (Marx fala da bandeira por “salário justo”, duplamente burguesa), mas nem por isso são esvaziadas de importância à política revolucionária.

Seguindo o trajeto possível a partir de Marx, Althusser, em seus escritos sobre a reprodução, enfatiza o papel paradoxal dos sindicatos na reprodução das relações capitalistas. Ao considerar os sindicatos como uma das “peças” no aparelho estatal capitalista, o franco-argelino indica seu papel regulador do valor da força de trabalho, e por isso mesmo reprodutor das relações de classe em última instância. Isso não excluiria nem mesmo aqueles sindicatos que, como no caso francês, são frutos de uma prolongada luta por legalização. Sua teoria destaca a relação não imediata, e nem necessária, entre sindicalismo e socialismo, apesar de aquele possuir potencial de auxiliar um projeto político das classes trabalhadoras. Essa mera potencialidade fica nítida nos casos latino-americanos de populismo, ou no nazi-fascismo europeu, e suas relações com o sindicalismo.

Edelman, recentemente publicado no Brasil[18], vai além e denuncia que o sindicalismo se torna, quase sempre, nada mais que uma forma de poder e dominação sobre a espontaneidade dos trabalhadores de base, capturando as lutas destes ao terreno da legalidade e da judicialização, tendo, no fim, um papel político desorganizador de fato. Isso porque, o terreno do direito não é neutro e impõe uma linguagem e ideologia burguesas. De forma bem didática, um líder sindical britânico dos setores “inorganizáveis”, em texto deste site já citado, explica-nos a tese edelmaniana:

O ordenamento legal opera contra os trabalhadores, feito sob medida para os gestores, mas também é voltado para a conciliação. Se você rejeita essa estrutura, então você pode atuar de um modo que seja realmente efetivo.

No Brasil, as experiências recentes com os governos do PT evidenciaram em nosso contexto o quanto o aparelho sindical pode servir à dominação burguesa. Tanto via acomodação política e contestatória, visando à manutenção de aparelhos sindicais cada vez mais rentáveis e de um governo supostamente dos trabalhadores (multiplicação de sindicatos/centrais de gaveta, queda na taxa de sindicalização, burocratização, oligarquização etc.). Quanto na metamorfose de sindicalistas em agentes centrais do Estado, gestores de fundo de pensão, participantes de fóruns tripartites etc.

Essa linha política da maioria do movimento sindical, evidentemente, resultaria em seguida numa enorme crise de representatividade e legitimidade — a qual estamos vivendo faz tempo. A confiança nos sindicatos caiu, e estes passaram a não mais serem os instrumentos de vários levantes trabalhistas ou populares, como o de 2013 entre inúmeros outros. Ao contrário, como nos casos rebeliões operárias das obras do PAC, anteriores a este ano, os sindicatos se tornaram um dos alvos dos protestos. Estes, não sem razão, eram entendidos como prolongamento da gestão petista, incapazes de dar corpo e voz ao descontentamento e, muito menos, resolver as contradições sociais geradas àquela época — das quais eram partícipes.

Esse sindicalismo, expulso do governo central em 2016, não tem conseguido minimamente revidar aos ataques diretos a ele dirigidos desde então. Só ver o fim do imposto sindical compulsório, espinha dorsal de seu financiamento, via reforma trabalhista. Após beijarem a mão de Temer em vão, a maioria das centrais e sindicatos agora tenta reverter a questão por meio da judicialização[19]. O que desse sindicalismo da era petista pudemos ver no esvaziado primeiro de maio último, cuja pauta central foi, como de hábito, eleitoreira[20]?

Voltando aos caminhoneiros, sobretudo pelas suas especificidades, sobretudo dos autônomos, uma organização sindical típica se inviabiliza em vários aspectos. Questões geográficas, por exemplo, somam-se ao tipo de relação de trabalho mais individualizada, em constante trânsito, detenção do meio de sobrevivência etc. E isso, aparentemente, fez com que o movimento sindical majoritário do último período não penetrasse de forma sólida nessa imensa categoria.

Soubemos, sobretudo durante a greve, que estes possuem sim “representantes sindicais”, tais como a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos que, segundo Larissa Jacheta Riperti[21], iniciou “oficialmente” a greve; ou a Associação Brasileira dos Caminhoneiros, que também se aponta como responsável pela greve, dentre outros sindicatos, federações e associações. Mas sua representatividade parece muito limitada.

Conforme reportagem da revista Piauí, já citada:

Uma das conclusões do acompanhamento minuto a minuto das mensagens nesses grupos [de Whatsapp de caminhoneiros] é que a liderança dos mais de dois milhões de caminhoneiros do país está longe de se encerrar nos oito representantes que se reuniram com os ministros. São centenas de líderes, não necessariamente ligados a sindicatos.

Isso podemos também averiguar no próprio correr da greve e das negociações. Segundo reportagem do site UOL:

O governo negociou inicialmente com o sindicalismo tradicional dos caminhoneiros, mas a outra parte da categoria não se sentiu representada, rejeitou o acordo e manteve a greve. “Há dificuldade para estabelecer canais de discussão.” [22]

Mesmo após dois “acordos” com entidades representativas, a greve se manteve, no primeiro, bastante forte, e no segundo, começando a agonizar — inclusive com auxílio de desmobilização e perseguição dessas próprias entidades![23]

Arriscaríamos dizer, inclusive, que as redes sociais foram verdadeiras plataformas organizativas, muito mais importantes para esse fenômeno do que as entidades sindicais. A pesquisa da CNT já citada demonstrou que boa parte dos caminhoneiros possui acesso à internet, principalmente via celulares. As redes sociais foram e tem sido muito usadas pelos caminhoneiros, que, distantes geograficamente e em constante trânsito, servem como uma luva sua comunicação, organização, deliberação, debate, propaganda etc. — papéis sindicais, em suma.  Um caminhoneiro grevista de 22 anos de estrada explicou à BBC Brasil[24]:

“A gente viaja o Brasil inteiro e vai conhecendo outros caminhoneiros. Quando chega no posto para dormir, a gente conversa, troca o (número de) WhatsApp. Aí, quando chegou a greve, já havia vários grupos montados e a gente distribuiu a informação […]. O Whatsapp facilitou demais a nossa comunicação. Antes, a gente era desconhecido (um do outro). Agora, o pessoal faz um vídeo e, em dois minutos, já espalhou pelo Brasil […]. Se não tivesse o WhatsApp, eu creio que o governo já tinha enganado a gente há dias. O governo ia na televisão dizer que a greve acabou. Até um caminhoneiro conseguir se comunicar com outro, já tinha tudo mundo ido embora, tinha acabado a greve. Agora, a gente assistiu a nota do presidente e já passou informação para os grupos de WhatsApp: não acabou não”

Aliás, quem cunhou o termo científico desse evento foi o “teórico” Jungmann, que tentou nomear a causa de seu desespero de sindicalismo de/em redes[25], organizado via internet e cuja característica principal é o “aparecimento de lideranças difusas em escala nacional”.

Mas antes dele, outro teórico (de verdade) nos auxilia a ver com mais clareza esse aspecto, que as redes sociais apenas potencializaram: Edelman. A dificuldade de comunicar com os reais representantes dos grevistas, de negociar, de assinar acordos, e, acima de tudo, de reprimir eficazmente, todas elas são explicáveis, de acordo com o autor, pelo fato de, nesse caso, a massa ainda não tomou o formato sindical oficial, não se legalizou. A legalização é um processo não só desorganizador, de mutilação política e ideológica, mas também um processo de exposição ao inimigo. Diz Edelman, em livro já citado:

Os grevistas não constituem nem uma pessoa física nem um agrupamento de direito. Eles não têm razão social, sede social, estatutos… Assemelham-se mais a uma ‘horda selvagem’, sem identidade e sem mestre. Por isso, do ponto de vista estritamente jurídico, sua ‘apreensão’ é impossível […]. Os juristas trabalharão em três direções, e todas terão um denominador comum: a representação sindical. Eles vão, cada um com sua ideologia, cada um com seus argumentos, empenhar-se em reduzir as massas, enquadrá-las, fazer com que se curvem a uma ordem. Alguns de maneira feroz, outros com flores, mas todos com coroas fúnebres.

A greve dos caminhoneiros desnorteou todos os aparelhos de estado (inclusive o sindical) porque ainda se encontrava no nível da turba, da greve selvagem[26]. Encerra-se no “vazio jurídico da existência das massas”, como dizia o autor. E isso só foi alcançada, paradoxalmente, pela distância que tomou do nosso campo sindical há muito legalizado e domesticado na (cada dia mais destroçada) gramática dos direitos.

Há (sobretudo) vida fora do movimento sindical brasileiro

Marx falava que os paradoxos normalmente são apenas aparentes, podendo ser desmantelados pela análise científica. No mesmo Salário, preço e lucro, diz:

Parece também paradoxal que a Terra gire ao redor do Sol e que a águas seja formada por dois gases altamente inflamáveis. As verdades científicas serão sempre paradoxais, se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas.

Diante do exposto, é possível afirmar com mais clareza (e menos estranheza) que o distanciamento dos aparelhos sindicais não significa, estrutural e conjunturalmente,  fraqueza ou ausência de radicalidade e eficácia política para os trabalhadores. Quem nos reforçou essa lição foram os caminhoneiros autônomos deteriorados pela crise, que, ao não se enquadrarem à relação assalariada-sindical clássica, mostrou-nos na prática o quanto a institucionalidade é uma sedutora mas cruel armadilha burguesa.

Nos próximos capítulos da luta de classes no Brasil pós-reforma trabalhista, onde as figuras não típicas do assalariamento-sindicalismo tendem a se ampliar, e os embates estarão cada vez mais violentos, essa lição nos parece fundamental. Tais embates não podem nos fazer recuar para os mesmos erros que nos colocaram nessa dramática situação. A autocrítica e renovação hoje, certamente, são questões de vida ou morte para a esquerda.


[1] Fala presente em reportagem da revista Piauí, disponível aqui: http://piaui.folha.uol.com.br/falta-combinar-no-whatsapp/

[2] Devastação representada, dentre outras tragédias, pela volta de 1,2 milhão ao mortífero (e nada romântico) fogão a lenha em 2017, dada a elevação do preço do gás de cozinha – também derivado do petróleo, assim como o óleo diesel. Ver aqui: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/04/com-alta-do-gas-12-mi-domicilios-apelaram-a-lenha-ou-carvao-em-2017.shtml

[3] Uma parcela da esquerda tem defendido, junto com a imprensa e o governo, a ideia de que não teria se tratado de uma greve mas, fundamentalmente, de um locaute — pela lei, uma “paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados“. Ou, no limite, haveria uma tentativa de desestabilização do governo com interesses (ainda mais) antipopulares e antinacionais. Os fatos que sustentariam essa tese: pauta de interesse ao setor empresarial de transporte (subsídios e redução de impostos, por exemplo); participação e apoio de grupos empresariais; presença de ideologia de direita nos bloqueios e redes sociais (como as famosas faixas por intervenção militar — que, ao menos nas redes, nem de longe foram majoritários: http://www.labic.net/blog/quem-esta-de-carona-na-boleia/).
Não negamos a participação mais ou menos ativa de empresas ou empresários em algum momento da greve, seja com pauta semelhante, seja para surfar no recuo do governo. Mas avaliamos que isso não modifica o caráter central da mesma. Ora, como qualquer greve, reivindicações corporativistas e imediatas em alguns pontos coadunam com certos interesses patronais ou do ramo econômico do qual se trabalha. Aliás, o próprio sindicalismo majoritário brasileiro é especialista nisso, só ver a CUT-FIESP do “Brasil do Diálogo pela Produção e Emprego”. E como veremos, no tocante aos caminhoneiros, o complexo quadro de relações de trabalho, além do caráter diverso e difuso de seu movimento, impede qualquer explicação simplista, seja no âmbito econômico, político ou ideológico. Por fim, a prévia e nítida degradação das condições de trabalho e renda, o caráter de massa do movimento, seu nível de enfrentamento, sua resistência a seguir os conchavos e acordos estabelecidos com o governo, dentre outros fatores, inviabilizam reduzir todo processo a um locaute (aliás, nem há negociação entre empregados e patrões no caso) ou disputa intraburguesa.

A intervenção do Passa Palavra nos parece bastante lúcida: “Dada essa configuração de condições de vida e possibilidades de atuação política visando melhorias nas condições de trabalho, a greve ‘selvagem’ dos caminhoneiros deve ser apoiada pelas forças de esquerda. Seus elementos conservadores e mesmo reacionários, como o propalado apelo por uma intervenção militar e apoio ao candidato fascista à presidência da república, não devem ser vistos por uma ótica rígida, típica de certo marxismo brucutu que torce o nariz para tudo que não encaixa em seus modelos puros. […] Todo movimento de massas é cortado por contradições internas, que devem ser analisadas de perto (se possível ombro a ombro) e não descartadas“. Disponível aqui: http://passapalavra.info/2018/05/119975

[4] Os operários do transporte: setor estratégico do proletariado, disponível aqui: https://18.118.106.12/2018/05/27/os-operarios-do-transporte-setor-estrategico-do-proletariado/

[5] Tema já tratado neste site, também através de uma contribuição de Gabriel Landi, que traduziu o seguinte texto de Tomasz Frymorgen: https://18.118.106.12/2016/10/14/o-levante-dos-inorganizaveis/

[6] https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Infraestrutura-e-Logistica/noticia/2018/05/caminhoneiros-querem-derrubada-rapida-de-michel-temer.html

[7] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579431-a-raiz-da-greve-dos-caminhoneiros-e-a-regulacao-do-trabalho

[8] https://www.jorgesoutomaior.com/blog/voce-realmente-se-preocupa-com-os-caminhoneiros

[9] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44256413

[10] http://anuariodotransporte.cnt.org.br/2017/

[11] Ver pesquisa realizada pela CNT sobre perfil dos caminhoneiros, disponível aqui: http://www.cnt.org.br/Pesquisa/perfil-dos-caminhoneiros

[12] Esses resultados nos afastariam de uma análise purista de que redução de imposto (se considerarmos de fato que o autônomo deseja isso, além da redução do preço final, seja de qual forma for) é uma pauta conservadora e de direita, e seu oposto, em defesa de maior capacidade fiscal do “público” (leia-se: Estado capitalista), é uma pauta progressista, dos trabalhadores e de esquerda. Não se pode pensar apenas que essa reivindicação por parte de assalariados do setor é mera influência político-ideológica patronal, ou de direita. Trata-se, arriscamos dizer, de uma tática para manter seu vínculo empregatício. Afinal, a dificuldade financeira das empresas na qual trabalham, várias muito pequenas e cooperativas inclusive (ver: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/maior-transportadora-do-pais-comecou-com-caminhao-de-verduras.shtml), tem significado demissão. Categorias públicas que buscam repor ou aumentar seu poder de compra, por exemplo, também exigem, indiretamente, do Estado ou das empresas públicas, que realoquem recursos públicos a seu favor – utilizando, assim, forma análoga, o recurso corporativista em tela.

[13] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/recessao-fez-despencar-numero-de-viagens-de-caminhao.shtml

[14] Aliás, com a “benévola” ajuda do Estado visando à formalização (e concomitante monopolização) do setor: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2012/07/15/internas_economia,306097/caminhoneiro-autonomo-esta-bem-perto-da-extincao.shtml

[15] Outra intervenção do Passa Palavra, dessa vez de Manolo, diz que: “por baixo dos “autônomos”/“por conta própria” encontram-se desde o proprietário de uma pequena frota de dois ou três veículos quanto o caminhoneiro pejotizado que encontra em grandes empresas de logística um grupo de compradores oligopsônicos de seus serviços. De modo semelhante, por baixo dos “celetistas” encontram-se tanto os trabalhadores que têm efetivamente garantidos – e não só no papel – todos os direitos previstos em lei [sic] quanto os que são contratados por uma intermediadora de mão-de-obra que pode pô-los a perder com uma simples mudança de CNPJ“. Outro aspecto interessante desse texto é o de evidenciar o desconhecimento da esquerda frente aos caminhoneiros e os limites de uma análise puramente estatística. “A guerra de números é a tentativa de dar fundamento ‘científico’ a uma guerra de versões sobre a mesma luta, e sobre outras coisas para as quais se quer aproveitar o capital simbólico construído pela luta, mas sempre que se fala em lutas usando [apenas] números está a se falar delas de cima e de longe, ou seja, apenas pelo viés estatístico, econômico e sociológico, não pelo viés de quem também está em luta“. Disponível aqui: http://passapalavra.info/2018/05/119973

[16] Na visão de Ricardo Antunes: “O dono de um pequeno caminhão, quando presta serviço para uma grande empresa, ele é, ao mesmo tempo, um pequeno proprietário de um bem de produção importante e uma espécie de ‘proletário dos transportes’. Ele oscila entre esses dois“. O termo precariado (precário + proletariado), como se sabe, é trabalhado sobretudo por Guy Standing.  Para o autor, o precariado é uma classe emergente, de “status truncado”, que surge no seio da profunda flexibilização do trabalho na globalização e se constitui em oposição ao assalariado estável de modelo fordista e seus avatares políticos. Tal classe em formação ainda não consegue se estabelecer de forma consequente no campo político-programático. “O trabalho desempenhado pelo precariado é, de sua natureza, frágil e instável, andando associado à casualização, à informalização, às agências de emprego, ao regime de tempo parcial, ao falso autoemprego […]“, diz o autor no artigo O precariado e a luta de classes, disponível aqui: https://journals.openedition.org/rccs/5521

[17] “Estudo do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos), elaborado a pedido do ‘Estado’, mostra que a situação da categoria se deteriorou bastante desde 2014. Em 2016 e 2017, a atividade trabalhou no vermelho e, hoje, gera renda perto de zero. No acumulado de 2018, a margem de lucro ficou em 3%. Ou seja: após fazer um frete de R$ 10 mil, o profissional ficará com R$ 300 nas mãos após os custos”. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,caminhoneiro-hoje-tem-renda-proxima-de-zero,70002337735

[18] A legalização da classe operária, Boitempo, 2016. O francês não é novo neste site. Há uma tag em seu nome disponível aqui: https://18.118.106.12/tag/bernard-edelman/

[19]E para afundar ainda mais sua nulidade política, os sindicatos e centrais tem recorrido à Justiça do Trabalho e até ao Ministério do Trabalho para ganhar sua mamata à custa do trabalhador. Com certo sucesso: em matéria publicada pela DIAP, vemos que o Poder Judiciário tem dado respostas positivas ao movimento sindical na questão do desconto obrigatório da contribuição sindical: são dezenas de decisões provisórias favoráveis à continuação da contribuição de forma compulsória. Além disso, sob o aplauso dos pelegos, o Ministério do Trabalho deu carta branca para a cobrança, desde que aprovada em assembleia geral – que em sua maioria são esvaziadas, ilegítimas e controladas pelos sindicatos“. Disponível em: http://cemflores.org/index.php/2018/04/30/os-impactos-iniciais-dos-primeiros-seis-meses-da-reforma-trabalhista/
Quanto à greve dos caminhoneiros, as maiores centrais se negaram a chamar uma greve geral ou paralisação nacional, apenas fizeram, no dia 25/05/2018, um apelo à normalidade (burguesa) e desejando uma “solução equilibrada” (que não bagunce seus conchavos para as eleições desse ano): “As centrais sindicais neste momento de impasse nas negociações entre o governo federal e os caminhoneiros, decidem se colocar a disposição como mediadoras na busca de um acordo que solucione o caos social que o país caminha“.  Disponível aqui: http://fsindical.org.br/forca/nota-das-centrais-sindicais-sobre-a-greve-dos-caminhoneiros

[20] No início de junho, em evento de lançamento da “nova” Agenda prioritária da Classe Trabalhadora 2018 pelas principais centrais sindicais do país, temos as seguintes falas das lideranças sindicais: “faremos um corpo a corpo com os parlamentares em torno desta nova agenda”; “estamos em ano eleitoral e o movimento sindical precisa apresentar uma pauta que contenha as principais reivindicações dos trabalhadores. A pergunta que fica é: como o próximo governo vai encarar a questão do financiamento sindical?“. A esperança (de voltar aos cargos e aos financiamentos vultosos) é a última que morre. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/centrais-lancam-nova-agenda-da-classe-trabalhadora/

[21] https://jornalistaslivres.org/um-texto-fundamental-para-entender-a-greve-dos-caminhoneiros/

[22] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/05/26/governo-abre-37-inqueritos-e-multas-a-caminhoneiros-ja-somam-r-23-milhoes.htm?cmpid=copiaecola

[23] Da mesma forma que o governo, a mídia e parte da esquerda encontraram uma língua comum para deslegitimar a mobilização (“locaute”), logo após o segundo acordo, governo, mídia e agora “representantes dos caminhoneiros” começaram a falar chamar quem resistiu aos acordos de “infiltrados”.  Tais representantes, assim como as centrais, hoje fazem um apelo à normalidade. Expondo sua veia literária, o presidente da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos, em coluna já citada, afirma: “agora o que os caminhoneiros mais querem é matar as saudades de quem está esperando ansiosamente por eles, descansar da mais longa viagem que já fizeram e voltar ao trabalho, seguros de que agora serão recompensados de forma justa e mais respeitados por todos“.

[24] Na mesma reportagem, a pesquisadora Yasodara Córdova complementa: “No caso da greve dos caminhoneiros, há um pioneirismo da organização do trabalho baseado na internet. É uma espécie de sindicato digital. É possível que no futuro a gente tenha novas formas de mobilização da força de trabalho como essa“. Disponível aqui: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44325458. Frente ao sindicato digital, emerge também o patronato digital, ver aqui: https://noticias.r7.com/brasil/petrobras-recorre-a-mutirao-no-whatsapp-e-multa-milionaria-a-sindicatos-para-sufocar-greve-31052018

[25] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/31/politica/1527725418_458407.html?%3Fid_externo_rsoc=FB_BR_CM ; https://www.poder360.com.br/economia/com-greve-dos-caminhoneiros-governo-descobre-novo-sindicalismo-de-internet/

[26] Na rápida e eficaz repressão à recente paralisação dos petroleiros liderada pela CUT é impossível desconsiderar o fator legalização. A multa da justiça só pode atingir, nas palavras de Edelman, “um agrupamento de direito”.

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