Por George Souvlis e Ankica Čakardić, via Salvage, traduzido por por Oleg Savitskii e Anna Savitskaia.
Entrevista conduzida em 19.10.2016, Silvia Federici (1942, Parma, Itália) é uma escritora, professora e ativista feminista italo-estadounidense
George Souvlis e Ankica Čakardić (GS & AČ): Quais foram suas experiências formativas política e pessoalmente?
Silvia Federici (SF): A primeira experiência mais formativa da minha vida foi a Segunda Guerra Mundial. Cresci no período do pós-guerra imediato quando as lembranças de uma guerra, que durara anos, somadas às dos anos do fascismo na Itália, ainda estavam vivas. Desde jovem, eu estava ciente de que nascera em um mundo profundamente dividido e facinoroso, que o estado, longe de nos proteger, poderia ser inimigo, que a vida é extremamente precária, mas, como cantaria mais tarde Joan Baez em uma música, “aqui, a não ser pelo destino, estamos nós”. Era difícil crescer na Itália do pós-guerra e presumivelmente pós-fascista e não se politizar. Mesmo ainda pequena, não pude deixar de ser antifascista ao ouvir todas as histórias que meus pais nos contavam e as tiradas de meu pai contra o regime fascista. Além disso, cresci em uma cidade comunista onde, no Dia do Trabalho, os trabalhadores ostentavam cravos vermelhos nas lapelas e nós acordávamos ao som de Bella Ciao, e onde a luta entre comunistas e fascistas prosseguia, com os fascistas tentando periodicamente explodir o monumento aos guerrilheiros e os comunistas atacando em retaliação a sede do MSI – Movimento Social Italiano – que todos sabiam ser a continuação do então banido partido fascista. Ao completar 18 anos, me via como radical, visto que à época o modelo da luta era ainda a dos operários de fábrica ou a luta antifascista.
A vinda aos Estados Unidos também foi um grande momento decisivo politicamente formativo. Cheguei no verão de 67. A universidade de Buffalo, onde eu deveria estudar pelos próximos três anos, era um campus muito ativo, situado na fronteira com o Canadá e o local de passagem para muitos ativistas anti-guerra que tentavam escapar do recrutamento. Cheguei em meio a várias mobilizações em apoio ao grupo Buffalo 9, que havia sido preso ao tentar cruzar a fronteira ao lutar contra a armação do FBI contra Martin Sostre, ativista porto-riquenho muito respeitado pela comunidade negra. Logo me juntei aos protestos estudantis e antiguerra. Comecei a trabalhar com Telos e um jornal undergound chamado The Town Crier. Nos Estados Unidos, aprendi sobre o legado da escravidão, do racismo, do imperialismo. Enquanto estive nos Estados Unidos, também conheci a “nova esquerda” italiana, o Operaismo, e os grupos extraparlamentares que se formaram como resultado do movimento de maio de 1968 na França e do Outono Quente na Itália. Eu estava particularmente inspirada pela leitura de Marx feita por Fronti que afirmava que primeiro vinha a classe operária e depois o capital, querendo com isso dizer que o capital não se desenvolve a partir de sua lógica autônoma, mas em resposta à luta da classe operária, que é o motor primordial da mudança social. Aquilo foi uma grande lição para mim, me ensinou a, sempre, procurar a luta, as contradições sociais como chaves para compreender a realidade social.
Além disso, o Operaismo fez uma crítica do materialismo histórico e das políticas dos partidos comunistas. Mas, evidentemente, foi importante conhecer o novo pensamento político italiano nos Estados Unidos, porque, ali, nunca poderia esquecer a história do colonialismo e da escravidão, a história dos não assalariados. Essa história – e, é claro, a minha experiência de ter crescido em uma Itália ainda patriarcal do pós-guerra– moldou a minha abordagem do feminismo que foi mais um momento verdadeiramente revolucionário da minha vida. Não vou falar disso porque meu trabalho fala por si. Em vez disso, falarei sobre o que significou para mim, no início da década de 80, ter podido passar um tempo lecionando na Nigéria, meu primeiro encontro com a África subsaariana. À época, eu já lera muito sobre o colonialismo, assim como sobre as políticas de desenvolvimento e subdesenvolvimento, mas a Nigéria foi mais um momento de transformação política subjetiva, não porque tenha mudado a minha visão das relações sociais, mas porque revelou toda uma realidade que era imensamente diferente daquela que tinha vivido com base no meu conhecimento dela, adquirido através de livros. Na Nigéria, aprendi sobre relações comunais, sobre a importância contínua da terra, aprendi sobre a maldição que é o petróleo para os países em que é descoberto, e sobre a grande criatividade do povo africano.
As aulas que eu conseguira ministrar ali chegaram ao fim com a escalada da “crise da dívida” e das repressões políticas. Porém, ao voltar aos Estados Unidos, comecei a passar cada vez mais tempo no México, e mais recentemente em outros países da América Latina, também devido à publicação do livro Calibã e a Bruxa no México, Argentina e Equador, e agora no Brasil. Menciono a América Latina porque, a despeito das dificuldades que as pessoas, e as mulheres em particular, enfrentam por causa das políticas extrativistas, da violência sempre presente, praticada por exércitos, paramilitares, narcotraficantes e pelo DEA com a sua “Guerra contra Drogas”, as lutas que as pessoas travam para manter sua autonomia, recriar as formas autônomas, coletivas de reprodução e de autogoverno, nascidas muitas vezes de situações de expropriação total, representam não um modelo, mas uma inspiração que afeta de maneira positiva meu próprio pensamento e prática políticos.
GS & AČ: Na década de 70, você esteve envolvida com o grupo Lotta Femminista junto com Leopoldina Fortunati, Mariarosa Dalla Costa, Selma James e outros? Qual foi a relação entre esse movimento e o Operaismo?
SF: Nunca fiz parte do Lotta Feminista. Eu já estava nos Estados Unidos quando o grupo se formou, e as mulheres italianas com quem trabalhei na campanha por salários para o trabalho doméstico (STD) tinham rompido com o Lotta Femminista justamente devido à questão de STD. Portanto, não posso falar de sua relação com o Operaismo. Tanto Mariarosa dalla Costa como Leopolda Fortunati falaram a respeito disso e remeto vocês a elas. Quanto a mim, já falei da minha dívida com o Operaismo e como ele influenciou a minha abordagem de STD. Posso acrescentar que Operai e Capitale de Tronti (Trabalhadores e o Capital), além de atribuir o papel central à luta de classes na formação dos movimentos do capital, também introduziu o conceito de “fábrica social”. Na verdade, ele não chegou a usar esse termo, mas argumentou que, a certa altura do desenvolvimento capitalista, a fábrica começa a reformar a sociedade à sua própria imagem, de acordo com suas próprias necessidades de produtividade. Ele estava pensando particularmente em como os sistemas educacionais tinham sido reestruturados para preparar a juventude proletária para o trabalho industrial. Isso ressoou na nossa análise da comunidade, do lar, da família mais como centros de produção da força de trabalho, como construções capitalistas, do que os legados das relações sociais pré-capitalistas, o que era, à época, a ideia dominante até no movimento feminista.
GS & AČ: Seu trabalho tem muitas semelhanças com o de Paddy Quick, Maria Mies e Wally Seccombe. Todos esses escritores sustentam que, para analisar a opressão às mulheres no capitalismo, vários pontos devem ser levados em consideração: divisão sexual do trabalho; reprodução social; o controle dos corpos das mulheres e do poder reprodutivo; e a influência dinâmica das formas de família. Nesse sentido, você situa explicitamente o seu trabalho dentro da herança teórica do debate sobre o trabalho doméstico, valendo-se do argumento de Dalla Costa e James de que a divisão sexual do trabalho e do trabalho não remunerado desempenha uma função central no processo da acumulação capitalista. Você poderia falar-nos um pouco mais sobre as diferenças entre seus trabalhos? E o que vê como distinção entre os sistemas capitalista e feudal?
SF: Embora todos os autores, a quem vocês se referiram, tenham assentado a posição das mulheres na sociedade capitalista no processo de reprodução, há diferenças significativas entre nós. Uma diferença (por exemplo, entre a minha análise de salários para o trabalho doméstico e a de Maria Mies) reside no fato de que nós sempre definimos o trabalho doméstico como uma construção capitalista, e, especificamente, como trabalho cujo objetivo social é a reprodução da força laboral. Salientei muitas vezes que, na realidade, o trabalho doméstico/reprodutivo possui dupla natureza: reproduz a nossa vida e, ao mesmo tempo, espera-se que reproduza a força de trabalho e, por causa disso, sujeite-se a restrições específicas. Na obra de Mies, você nem sempre encontrará essa distinção. Em sua análise, existe uma continuidade entre trabalho doméstico e reprodução orientada para a subsistência nos assim chamados países “subdesenvolvidos”. Isso é parcialmente verdadeiro. Mas há uma diferença entre trabalho reprodutivo/doméstico em condições nas quais as mulheres têm acesso à terra ou outras formas de reprodução, como, por exemplo, em muitas comunidades indígenas, e trabalho doméstico que não é remunerado e depende de um salário (principalmente o do homem). No entanto, concordo largamente com Mies e admiro a maneira como ela expandiu o conceito de reprodução para incluir o trabalho agrícola na maior parte do assim chamado terceiro mundo.
A distinção entre o sistema feudal e o sistema capitalista origina-se da expropriação radical a que os trabalhadores estão sujeitos no capitalismo, e de sua separação dos meios de reprodução. Este é o motor do desenvolvimento capitalista, assim como da exploração intensa do trabalho. Como salientei em Calibã e a Bruxa, o capitalismo é o primeiro sistema de exploração que vê antes o trabalho do que a terra como a principal forma de riqueza. Por essa razão, desenvolveu toda uma nova política relativa ao disciplinamento do corpo, especialmente, do corpo das mulheres, e à gestão da reprodução, começando com a procriação. O capitalismo deve controlar o trabalho de reprodução, visto que ele é um aspecto central do processo de acumulação, de modo que o trabalho reprodutivo funciona antes como a reprodução da força de trabalho, ou seja, nossa capacidade de trabalhar, do que como (por exemplo) a reprodução de nossa luta.
GS & AČ: Em Calibã e a Bruxa, você se refere ao artigo de Robert Brenner “As Raízes Agrárias do Capitalismo Europeu”. O que você acha do trabalho de Brenner e do trabalho de outros “Marxistas Políticos”?
SF: Não me lembro agora de todos os argumentos de Brenner e da escola do Marxismo Político. Concordei com seu foco na transformação das relações agrárias na Europa como crucial para o desenvolvimento capitalista, embora a formação de um mercado agrário/fundiário também tenha sido possibilitada pelo fluxo abundante da prata para a Europa após a conquista de vastas regiões da América do Sul. Porém, a crítica que tenho a essa escola é a mesma que tenho à abordagem de Marx: seu desconhecimento do papel que a reconstrução do trabalho reprodutivo desempenhou na “decolagem” capitalista. Perceberam corretamente a separação do campesinato da terra como condição essencial para a existência das relações capitalistas, mas ignoraram a separação entre produção e reprodução, a desvalorização do trabalho reprodutivo, seu confinamento a uma esfera aparentemente não econômica e a conseqüente desvalorização da posição das mulheres, as quais, com a transição para o capitalismo, estariam destinadas a se tornarem os sujeitos principais desse trabalho. Tal como Marx, Brenner e a escola do Marxismo Político ignoram as caças às bruxas dos séculos XVI e XVII em sua análise do impacto do desenvolvimento capitalista sobre as relações agrárias, o que eu acho ser um grande erro.
GS & AČ: Você acha possível que o capitalismo pudesse existir sem a apropriação do trabalho doméstico não remunerado das mulheres?
SF: Não acho que isso seja possível, porque o trabalho não remunerado das mulheres, que continua até os dias de hoje, é a condição para a desvalorização da força de trabalho. Sem esse trabalho, a classe capitalista teria de fazer um grande investimento em todas as infra-estruturas necessárias para reproduzir a força de trabalho e a sua taxa de acumulação seria seriamente afetada. Há também o lado político da desvalorização e da conseqüente naturalização do trabalho reprodutivo. Ele tem sido a base material para uma hierarquia laboral que divide mulheres e homens, o que permite ao capital controlar a exploração do trabalho feminino de forma mais eficiente por meio do casamento e das relações matrimoniais, inclusive a ideologia do amor romântico, e pacificar os homens dando-lhes uma serviçal em quem exercitar o seu poder.
GS & AČ: Você poderia falar-nos um pouco mais sobre a diferença entre a tradição do Salários para o Trabalho Doméstico e a teoria “unitária” feminista (a de Lise Vogel, Sue Ferguson, Cinzia Arruzza, etc.) quando se trata de compreender a relação entre capitalismo e patriarcado?
SF: Não li os trabalhos de Sue Ferguson e Cinzia Arruzza. Quanto a Lisa Vogel, algumas das principais idéias que servem de base para sua teoria foram emprestadas do trabalho de Dalla Costa e James, que já tinham produzido uma teoria unitária ao explicar a reconstrução das relações patriarcais no capitalismo a partir da definição da função social das mulheres enquanto a re/produção não remunerada da força de trabalho. O ponto em que acredito que Dalla Costa e eu também discordamos de Vogel, é quanto à visão do socialismo como um sistema libertador. Marx e a tradição socialista-marxista têm uma visão otimista sobre o desenvolvimento capitalista como criador das condições necessárias para uma sociedade não exploradora.
Estou escrevendo agora do México, após ter viajado, nos meses recentes, por vários países da América Latina, conhecendo, em toda parte, comunidades que enfrentam a destruição pelas mãos das empresas mineradoras e de agribusiness, que são hoje setores líderes do desenvolvimento capitalista. Falando de meu trabalho e de minha própria perspectiva, posso dizer que aprendi com Marx e continuo usando sua obra, mas estou menos preocupada hoje em construir uma “teoria unitária”, tal como Vogel, a menos que os Marxistas de hoje estejam preparados para abandonar o viés desenvolvimentista que até agora tem sido uma parte essencial de sua teoria e políticas. Em todo o mundo, das áreas rurais às favelas urbanas, em um mundo em que a favelização é um processo crescente, o desenvolvimento capitalista é a morte, e o desafio hoje é como construir uma alternativa para isso.
GS & AČ: Você editou o livro “Suportando a Civilização Ocidental” em que afirma que a formação do Cânone Ocidental ia de mãos dadas com a exclusão do outro por motivo de sexo, gênero, etnia, religião e “raça”. Esse processo estava estreitamente interligado com a formação das categorias analíticas ocidentalizadas pelas quais percebemos o mundo. Trabalhos recentes, como A Teoria Pós-colonial e o Espectro do Capital de Vivek Chibber, oferecem uma defesa equilibrada das abordagens teóricas que enfatizam tais categorias universais como capitalismo e classe. Seu trabalho, em outras palavras, constitui um argumento a favor da contínua relevância do Marxismo diante de alguns de seus críticos mais vigorosos. O que você acha tanto deste tipo de raciocínio como da questão geral do uso de categorias universais para a crítica do capitalismo que deriva desse estudo? Existe alguma maneira de equilibrar as duas coisas: a crítica ao Ocidente e ao uso das ferramentas analíticas que derivam dela, ou são mutuamente excludentes?
SF: Mais uma vez, não me sinto à vontade comentando as obras que não li ou não consultei por um longo período de tempo. Portanto, vou me limitar a alguns comentários acerca do conceito de “Ocidente” e a suposta necessidade de categorias universais. Como já demonstrei em Suportando a Civilização Ocidental, junto com outros, o conceito de Ocidente e Ocidental é o produto da guerra fria quando, em conseqüência da revolução bolchevique, ‘Ocidental’ passou a significar capitalista, industrialmente ou tecnologicamente desenvolvido, inovador, etc., ao passo que o comunismo foi racializado, visto como ‘ asiático’, compreendido como atrasado, incapaz de se desenvolver. Por esse motivo, nunca uso o termo ‘Ocidental’, que também oculta as relações de classe, dissimulando as relações diferentes/antagônicas na Europa e nos Estados Unidos – o assim chamado Ocidente – e, de modo semelhante, as relações de classe/antagônicas nas regiões como a África e a América Latina. Ocidente/Ocidental são termos políticos, insustentáveis em seu conteúdo, e visam apresentar as políticas globais como formadas pelos mundos opostos em que não existem divisões, hierarquias e, supostamente, predomina um interesse comum.
No tocante às categorias universais, posso dizer que, claramente, precisamos de certo nível de abstração em nossas análises, mas não podemos compreender o capitalismo e a história da economia global, a menos que olhemos do ponto de vista de diferentes sujeitos. Em uma sociedade que é o resultado de séculos de construção de hierarquias e, portanto, de experiências extremamente diferentes, a ideia de um ponto de vista universal está falida. O capitalismo não pode ser compreendido em sua totalidade se não for abordado do ponto de vista dos escravos, dos colonizados, assim como do ponto de vista dos operários industriais, do ponto de vista das mulheres proletárias assim como dos homens proletários, e, eu até diria, do ponto de vista das crianças e, evidentemente, de um ponto de vista ecológico.
GS & AČ: Os últimos anos viram tanto o aumento da imigração para a Europa como o aumento dos partidos de extrema direita. Como nós, de esquerda, podemos enfrentar essa situação terrível?
SF: É impossível expressar, em poucas palavras, a dor e a indignação que sinto ao ver o que os governos e tantas pessoas na Europa estão fazendo com os refugiados das guerras que esses mesmos governos financiam. É assustador ver que, ano após ano, quase toda semana, naufragam no Mediterrâneo os barcos que transportam refugiados, provocando a morte de centenas e centenas de pessoas, de tal forma que o Mediterrâneo agora é um grande cemitério, e isso está acontecendo diante dos olhos de todo o mundo, não em campos de concentração escondidos – isso sem falar dos “centros de hospitalidade”, que são cadeias onde os indocumentados são jogados e mantidos por tempo indeterminado em condições ignóbeis.
É evidentemente deplorável que a resposta de muitas pessoas, inclusive operários, não é solidariedade, mas rejeição, perseguição e posturas nacionalistas. É particularmente preocupante, pois, muitas vezes, é uma guerra entre os pobres, visto que aqueles que QUEREM erguer barreiras são as próprias pessoas que lutam para sobreviver, que pensam que podem se proteger não através da solidariedade com refugiados, mas mediante a política de exclusão. Eu gostaria, porém, de acrescentar que precisamos saber mais sobre neonazistas que atacam refugiados na Alemanha, por exemplo, já que há evidências de cumplicidade por parte das autoridades e da polícia, a ponto de pensarmos que os neonazistas surgem como instrumentos de controle dos refugiados que podem ser úteis como força de trabalho barata, mas desde que aceitem permanecer no degrau mais baixo da escada social.
GS & AČ: Houve, nos últimos anos, um crescimento das formações de esquerda – de Corbyn e Sandres ao Podemos. Você vê alguma esperança nessa evolução, no sentido de transformação social significativa? Como você acha que a esquerda deve se relacionar com o estado?
SF: Essa não é uma pergunta fácil de responder. Acabamos de saber – e isso causou grande surpresa para muitos – que os Zapatistas propuseram participar das eleições presidenciais de 2018 com uma candidata indígena. Não é que eles tenham mudado sua política, como pode parecer, mas porque estão tão encurralados que tentam romper dessa maneira o cerco e conscientizar amplos segmentos da população do ataque maciço e violento que vêm arrostando desde a morte de Galeano. Dito isso, vemos que os governos inclinados à esquerda e toda a política progressista tanto na Europa como na América Latina, estão em crise. Poucos se mobilizaram no Brasil para exigir a reintegração de Dilma Roussef no cargo embora muitos tenham condenado seu impeachment como um movimento fraudulento, quase um golpe. O registro dos governos progressistas é que, na melhor das hipóteses, eles aliviaram algumas formas de pobreza extrema, mas não mudaram os modos de produção, não implementaram as reformas que os movimentos sociais que os levaram ao poder exigiam, não refrearam a violência do exército e da polícia. Talvez uma narrativa diferente pudesse ser feita a favor do chavismo, visto que era mais respeitoso com o poder do povo, mas ele também se baseou nas políticas extrativistas, fazendo com que o país ficasse dependente dos altos e baixos do mercado global. E o que dizer de Berni Sanders que, depois de passar meses explicando por que seus seguidores não deveriam votar em Clinton, agora afirma que é a única alternativa? Que lição de cinismo!
Não chamo a política dos comuns de “espontaneísta”. Atualmente existem no mundo muitos regimes comunitários que têm centenas de anos de história. E não há muita espontaneidade na defesa dos bens comuns em muitas partes do mundo quando se deve enfrentar a violência de grupos paramilitares, exércitos e guardas de empresas de segurança. Claramente, não deveríamos ser dogmáticos nesses assuntos. Em níveis locais, muitas vezes é possível exercer alguma influência sobre os governos. Mas o que estamos vendo é que os centros, em que decisões são tomadas, se afastam cada vez mais do alcance das pessoas. Também estamos vendo a formação de uma estrutura de poder internacional que substitui de forma constante o poder do estado-nação, como é o caso da União Européia.
Por causa da constante interferência do FMI e do Banco Mundial nas políticas públicas, especialmente, mas não exclusivamente, nas do ‘terceiro mundo, estamos vendo a proliferação de “Acordos de Livre Comércio” como o TTP ou TTIP (felizmente ainda não assinados) – que estabelecem o controle direto da economia global pelo capital, de modo que nenhuma decisão pode ser tomada em nível econômico sem ser antes aprovada pelas grandes corporações e eliminar totalmente a soberania nacional. Sob essas condições, como ser otimista em relação à instalação de governos de esquerda/radicais?
GS & AČ: Uma onda de mudanças varreu a América Latina na virada do século XXI, derrubando os governos neoliberais. Cruciais nisso foram os novos movimentos sociais que emergiram exigindo tanto direitos sócio-políticos como econômicos. Isso, no entanto, provocou tensões entre partidos dominantes e movimentos sociais. Você acredita que essas tensões podem ser resolvidas de forma que possam promover os interesses das classes trabalhadoras da América Latina?
SF: Eu visitei o Equador em abril desse ano e tive muitos encontros com grupos ambientalistas e de mulheres e seus relatos foram unânimes. As pessoas estão indagando por que a esquerda européia e americana fala de Correa como se ele fosse um radical quando suas políticas estão em conformidade com o neoliberalismo? Dado que Correa, mais do que seus antecessores, está promovendo agora ataques contra as terras indígenas e demonstra, em suas políticas do dia a dia, um completo desprezo pelas mulheres? Levado ao poder por um movimento dos povos indígenas, Correa introduziu na constituição do país o princípio de que a natureza também tem os direitos e, de início, parecia determinado a não explorar seus recursos petrolíferos, mas acabou mudando de idéia e atualmente está promovendo investimentos estrangeiros e a perfuração de poços de petróleo no parque de Yasuni. Não admira que, repetidamente, ele entra em confronto com as mesmas populações indígenas que uma vez o apoiaram, e o seu governo é amplamente condenado como desdenhoso dos movimentos desde baixo, autoritário e apoiador do poder corporativo. Evo Morales também fala de Pachamama quando viaja para o exterior, mas segue uma política extrativista semelhante, a qual, além de destruir terras, florestas, rios, cria uma forma interna de colonialismo. Isso não quer dizer que não há grupos de trabalhadores que possam apoiar suas políticas, já que o extrativismo significa salários para alguns, ainda que ao preço da destruição dos meios de subsistência de muitos, da mesma forma que, em muitas comunidades dos Estados Unidos, trabalhadores jovens apóiam o fracking.
Devo dizer que há um enorme abismo entre a visão que existe em relação a esses governos, elaborada por teóricos radicais da America Latina – como Luis Tapia, Raul Zibechi, Raquel Gutierrez, Silvia Rivera Cusicanqui e muitos outros- e a visão que têm deles muitos esquerdistas americanos e europeus.
GS & AČ: Você poderia comentar sobre as recentes eleições nos Estados Unidos?
SF: As eleições americanas são um triste show, cujas implicações perigosas já ficam evidentes, se for verdade que dezenas de grupos de supremacistas brancos emergiram agora, sentindo-se encorajados e legitimados pelos pronunciamentos de Trump. É desmoralizante ver os segmentos da classe trabalhadora americana caírem na lábia de alguém como Trump. Mas, é claro que Clinton – com seus laços com a Wall Steet, a CIA, a máquina de guerra – não é uma alternativa. E ela pode fingir ser feminista apenas porque, desde a década de 70, o feminismo foi institucionalizado para que as mulheres possam ser integradas na economia global como mão de obra barata.