Insurreição francesa

Por Antonio Negri, via Verso Books, traduzido por Thiago Marques Leão

Vamos refletir sobre o que aconteceu na França nessas últimas semanas. Podemos chamar isso de insurreição? A resposta – é claro – depende do que queremos dizer com a palavra insurreição, ainda assim, qualquer que seja o nosso entendimento, algo do tipo aconteceu. E provavelmente continuará acontecendo. O que nos indica que isto não corresponde exatamente aos confrontos violentos ocorridos em Paris nos últimos dois sábados. Não corresponde às barricadas ou aos carros que queimam nas ruas do centro da cidade, ou mesmo às Jacqueries esporádicas [1], ou aos bloqueios de estrada que se estendem por todo o país. O que nos indica isso é que dois terços da população aprovam o movimento geral provocado pelo aumento do preço da gasolina. E essa aprovação tem um alcance muito maior do que qualquer condenação da baderna. A esse respeito, é interessante notar que, no comportamento de bombeiros e policiais, podemos observar indícios de insubordinação.


Há na França, sem dúvidas, uma multidão que se eleva violentamente contra a nova miséria provocada pelas reformas neoliberais. Uma multidão que protesta contra a redução da força de trabalho ao precariado e os constrangimentos à vida civil, impostos por serviços públicos insuficientes. Que protesta contra a taxação selvagem dos serviços sociais, contra os cortes colossais nas finanças do governo municipal e agora, cada vez mais, contra os efeitos (que estão começando a ser calculados) da Lei Trabalhista. E agora está preocupada com os próximos ataques a aposentadorias e gastos nacionais com educação (universidades e escolas secundárias). Há na França, portanto, algo que está se levantando violentamente contra esta miséria, e que é seguido pelo grito de “Macron, démission!” [Macron, renuncie!] – é um ataque contra as escolhas feitas pelo banqueiro Macron em favor da classe dominante. Os objetivos da insurreição são Macron e impostos. O movimento que surgiu a partir dessas demandas não é, portanto, um movimento social tradicional – ou, pelo menos, não toma a forma tradicional do século XX, onde o movimento apresenta seus objetivos para as instituições estatais aceitarem ou recusarem, seguindo um processo de mediação via órgãos sociais intermediários. Este é um movimento multitudinário, que não quer intermediação, que é a expressão do enorme sofrimento social acumulado até agora.

Há algo particularmente impressionante nesse movimento, que o diferencia das lutas mais intensas dos últimos anos, a luta de 2005 dos habitantes dos banlieues [2], por exemplo. Esta luta traz a marca da libertação, aquela tem uma face desesperada. Para não mencionar 1968. Em 1968, o movimento estudantil estabeleceu-se nos alicerces de um continuum da luta dos trabalhadores. 1968 teve 10 milhões de trabalhadores industriais em greve, uma tempestade que atingiu o ponto mais alto de reconstrução e desenvolvimento pós-guerra. A situação de hoje está encerrada. Para mim, humilde intérprete de grandes movimentos, lembra mais as revoltas da prisão do que a alegria de sabotagem do trabalhador de massas. Em todo caso, o que temos aqui é um movimento artificial, um movimento contraditório, dividido internamente ao longo de linhas territoriais, geracionais e de classe, entre muitas outras; o que o unifica é a recusa de negociar, a recusa de arriscar as estruturas políticas existentes. É sem dúvida uma insurreição e, por enquanto, seu desenvolvimento é indecifrável.

Este movimento é confrontado por um governo que não está disposto a ceder. O que podemos ter certeza é que Macron está manobrando em uma situação difícil. Diante de uma crise econômica que ele é incapaz de conter, tentou forjar uma aliança europeia hegemônica com Merkel, baseada em um acordo comum quanto à direção de “ambígua” [two-headed Direction] que o processo de unificação europeia deveria tomar, pensando em transferir para essa aliança os custos da reestruturação e da saída definitiva da França de uma “minoria” econômica – um status não facilmente enquadrável com seu orgulho nacional e colonial ainda muito vivo. Mas essa hipótese foi abortada, ou pelo menos foi severamente minada. Isso significa que estamos entrando em uma recessão? Macron e aqueles ao seu redor sabem que essa é uma possibilidade. Eles sabem, pelo menos, que Merkel terminou seu ciclo e que a hipótese que formou a base para reorganização da forma estatal na França precluiu. As regras da União Europeia serão cada vez mais tomadas pelos banqueiros do norte europeu, e o centro de equilíbrio está mudando para essas regiões. Poderia ter havido, e ainda há, duas possibilidades para Macron sair do impasse em que se encontra. Há essas soluções que implicam uma mudança de rumo: a reintrodução, por exemplo, do imposto solidário sobre a riqueza (ISR), a reintrodução de uma tributação progressiva dos rendimentos dos títulos e a abolição da contribuição previdenciária do CSG [3] (a “contribuição social generalizada”) que tira uma fatia até dos salários mais baixos… supostamente para ajudar os pobres! (leva, por exemplo, 50 euros de uma pensão de 500 euros por mês!) – e, claro, a abolição dos aumentos atuais e futuros do preço da gasolina (na verdade, aumentos no início do próximo ano nos preços de todos os serviços básicos – eletricidade, gás, telefone e, provavelmente, taxas universitárias). Estas são opções que a Macron não pode implementar sem romper com o bloco de poder que o apoia. E então, há soluções drásticas, impondo um estado de emergência ou dissolvendo a assembleia nacional. E, de fato, rumores desse tipo estão começando a se espalhar…

Mas o verdadeiro obstáculo à ação está em outro lugar. Macron desmantelou todos os corpos intermediários e todas as relações diretas com os cidadãos e não pode restabelecê-los. De fato, não seria preciso muito, além de bloquear o movimento com uma proposta demagógica e oportunista qualquer, pelo menos para mitigar sua indignação (cuja força não deveria ser subestimada): tudo o que seria necessário é, como dissemos, um retorno à taxação de super-fortunas e uma recuperação para a redistribuição desses quatro bilhões de euros entregues aos patrões dos patrões, no lugar do imposto sobre a gasolina. Mas não é nosso trabalho aconselhar Macron. Fontes respeitáveis ​​preferem insistir, como já dissemos, em medidas legais: em estado de emergência para pôr um fim às lutas, acompanhadas por um “estado geral de tributação”. Há, portanto, a admissão de que apenas a força pode pôr um fim às lutas, e que apenas uma abertura para reformas fiscais favorecendo a multidão pode bloquear seu ressurgimento. Mas é precisamente essa solução que é impossível.

Já falamos sobre a falta de intermediação social criada (intencionalmente) pelo governo Macron. A isso corresponde, in vitro, a como se fosse uma imagem espelhada, o comportamento dos coletes amarelos: eles também recusam a representação e a intermediação, da Direita e da Esquerda, como terrenos sobre os quais avançar uma mediação do conflito. Prova disso é a dificuldade que os partidos da oposição tiveram, ao tentar entrar no jogo. A Direita, como já foi dito, afirma ter uma forte presença no movimento. Mas enquanto isso pode ser verdade para algumas facções mais extremistas, é muito menos verdadeiro para a Frente Nacional. A Esquerda também tentou aproximar-se do movimento, usando tristemente os velhos e cansados ​​métodos de instrumentalização. A ideia idiota de que é possível “usar” movimentos desse tipo, fazendo uso deles na luta contra um governo de direita, também está viva e bem na França. É o eterno sonho de colocar o padre Gapon para trabalhar! Mas isso nunca aconteceu na história do movimento operário. Ou melhor, quando aconteceu, foi porque a organização militante da classe trabalhadora havia investido a espontaneidade do movimento e o transformou em organização. É isso que está acontecendo agora? Quando são pequenos grupos de esquerda se organizando dentro de surtos de violência metropolitana, e quando a CGT[4], completamente estranha a esses movimentos, pateticamente insiste em aumentar os salários? Acrescento aqui uma última reflexão sobre este ponto: é possível que esta situação dê origem a um movimento como os 5 Estrelas? É possível, e é até provável que as tentativas tenham sido feitas desde o início – isso não significa dizer que elas serão bem-sucedidas. Mas teremos tempo para discutir isso no futuro. As soluções se tornam difíceis quando (como vemos no caso-teste italiano) Esquerda e Direita se desintegraram em torno de um “centro extremista” dissimulado em termos mais ou menos tecnocráticos ou “benevolentes”.

E agora? Temos que esperar e ver o que acontece. Se haverá um quarto sábado de mobilizações convocadas pelos coletes amarelos. Mas é claro que devemos continuar a desenvolver nossas reflexões. Permita-me, então, esta pergunta ingênua: como pode uma multidão, caracterizada no interior dos movimentos insurrecionistas, ser desviada de seu movimento em direção à Direita e transformada em uma classe, em uma força com o poder de transformar as relações sociais? Minha primeira reflexão é a seguinte: se não for transformada em uma organização, uma multidão desse tipo é neutralizada pelo sistema político, torna-se impotente. O mesmo se aplica à sua redução à Direita, mas também à Esquerda: é apenas na sua independência que essa multidão pode funcionar. E então uma segunda reflexão: quando dizemos organização, não pretendemos a forma de partido – como se apenas o partido político fosse capaz de dar organização à multidão. Uma multidão autônoma pode funcionar como um contra-poder e, assim, como uma visão capaz de pesar longa e pesadamente sobre o “governo do capital” para forçá-lo a conceder novos espaços e fundos para o bem-estar da sociedade. A estrutura organizacional fornecida pela “constituição dos partidos” democrática-americana está se debatendo para lidar com sua incorporação à política neoliberal. Além disso, se não houver mais possibilidade de a multidão chegar ao poder, existe a possibilidade de manter, sistematicamente, um movimento insurrecionista aberto. Esta situação costumava ser descrita com o termo “poder dual”: poder contra poder. Os eventos na França nos dão apenas uma certeza: não é mais possível fechar esse relacionamento. A situação do “poder dual” permanecerá e durará por muito tempo, seja latente ou, como é o caso agora, em sua forma expressa e manifesta. A tarefa dos militantes será, portanto, construir novas formas de solidariedade em torno de novos objetivos capazes de nutrir o “contra-poder”. Essa é a única maneira pela qual a multidão pode se tornar a classe.


[1] Jacqueries, ou revolta de Jacques, referem-se às insurreições camponesas do norte de França, no século XIV, durante a Guerra dos 100 Anos.

[2] Subúrbios das grandes cidades francesas.

[3] Generalised Social Contribution.

[4] Confederação Geral do Trabalho.

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