Por Edson Mendes[1]
“Dixi et salvavi animam meam” [Disse e assim salvei a minha alma] – Karl Marx, Crítica ao Programa de Gotha
Seria muito fácil começar esse texto a partir da acertada frase: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47). Percebemos, como já é amplamente discutido por diversos autores – até por alguns que nem marxistas são – como essas ideias dominantes repercutem na esquerda política. No entanto, as tentativas de calar as críticas comunistas em nome de uma Grande Estratégia parecem ir além da reprodução de ideias dominantes de um liberalismo de esquerda, e é o objetivo desse texto levantar uma discussão acerca da estratégia voltada para silenciar a crítica.
Qual é, afinal, a Grande Estratégia que precisa tratar comunistas como ‘críticos demais’ diante de uma suposta necessidade de união para um ‘bem comum’? Que Grande Estratégia é essa onde é preciso estar de acordo com a hegemonia acadêmica liberal, os recursos de campanha vindos do grande empresariado e as falas tecnicistas que desumanizam as questões em pauta? Porque uma Grande Estratégia volta-se para a tentativa de conservar a democracia burguesa – a mesma que nos fez chegar até onde estamos – ao invés de buscar superá-la?
Mais importante do que pensar em quem ganha com essa Grande Estratégia é pensar em quem perde. Muitas vezes, imagina-se a formação de uma Frente Única e Ampla contra as forças de extrema-direita que buscam nos destruir. Unir liberais e comunistas, entretanto, exigiria uma convivência com uma crítica ao liberalismo com as quais os liberais (de direita ou de esquerda) não querem lidar. Ou pior, culpam as críticas vindas de comunistas – entendidos como extrema-esquerda – pela ascensão da extrema-direita. Todavia, não vemos o menor receio na perpetuação de discursos e propagandas anticomunistas, inclusive com uso de falsidades históricas, para comparar os comunistas que conseguiram implementar de alguma forma uma transição socialista com a estratégia ideológica da extrema-direita. Atuam retornando ao equilíbrio ‘corda bamba’ arendtianista que finge estar em cima do muro, mas carrega um conservadorismo que, no discurso da esquerda liberal, é verborragicamente renegado.
Da mesma forma que constata Vladimir Lênin[2] em Que Fazer, ainda existem os que tentam tirar Minerva pronta da cabeça de Júpiter. Essa Grande Estratégia já resolvida e formulada, coincidentemente, estaria mais voltada para os marcos de uma perspectiva liberal da análise. Não haveria espaço para críticas estruturais e com foco revolucionário como querem os comunistas. É preciso abandonar o materialismo histórico-dialético para não ‘estragar a Estratégia’ que de combativa não tem nada. Isso vem, é claro, dos mesmos que exigem a “liberdade de crítica” para propagar o anticomunismo em partidos, movimentos sociais e jornais. Repete-se a falsa liberdade liberal também nas ideias e discursos supostamente críticos.
Para os marxistas que buscam a Revolução Socialista, a crítica é um aspecto fundamental na construção teórica, tática e estratégica. Lembremos de Karl Marx (2012), em sua Crítica do Programa de Gotha. Apesar de sua proximidade com a social-democracia alemã, Marx não deixou de ser criterioso em seu posicionamento contrário aos diversos pontos do Programa do Partido Operário Alemão – produto da unificação de outros dois partidos – que vão desde uma crítica ao oportunismo de Fernando Lassalle com sua lei de bronze dos salários quanto a uma crítica a defesa de uma educação comandada pelo Estado e ao apelo estatista existente no Programa.
Foi por essas críticas feitas de forma intensa por Marx que conseguimos, hoje, reconhecer a repetição de equívocos na interpretação de seu pensamento na esquerda hoje – inclusive em uma esquerda que se afirma marxista. A popular frase “Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”, por exemplo, é até os dias atuais reproduzida por uma esquerda. O curioso é que a frase, que parte de uma linha de raciocínio pertencente, na realidade, a Fernando Lasalle, é alvo de críticas de Marx na Crítica do Programa de Gotha.
As acusações entre os que fazem a crítica já são clichê: dogmáticos, puristas, estalinistas, anti-identitários. Além disso, buscam transformar críticas a reprodução de propaganda anticomunistas e contrárias ao liberalismo como ataques pessoais. Em nome da sustentação de uma união artificialmente construída voltada para a sustentação da democracia burguesa, na qual comunistas devem abster-se de posicionamentos contrários a quem a compõe, pessoalizam o debate de ideias para desestimular a própria construção de uma estratégia voltada para desestruturar as bases materiais do sistema de exploração vigente e possibilitar a formação de novas estruturas sociais. Não se trata de atacar a pessoa (quem o faz, muitas vezes através de ataques de cunho machista, racista ou lgbtfóbico merece, é claro, nosso repúdio), mas de um debate de ideias onde a crítica comunista existe como arma.
Quando buscam a tal Minerva já pronta, ignoram o que é essencial para uma estratégia comunista: a análise concreta da realidade concreta. Buscamos entender os erros que nos levaram a situação atual, inclusive as próprias alianças desastrosas que permitiram a existência do espaço ocupado pela extrema-direita. Para formar estas ligações, tão criticadas por comunistas, o recurso da acusação de “puristas”, “sectários” ou “dogmáticos” também foi utilizado. Este fator só revela a importância que adquire a crítica comunista diante de outras críticas tão rasas vindas de setores que buscam, simplesmente, manter sua hegemonia na esquerda política organizada e partidária.
Pelo visto, a Grande Estratégia a qual se refere a esquerda liberal, aquela que vai reunir a maravilhosa frente única que vai resolver nossos principais problemas e expurgar o autoritarismo antidemocrático da nossa sociedade, torna-se insuficiente e é totalmente atingida diante da crítica de alguns comunistas. Ora, que Grande Estratégia, não? Sua falha estrutural, que não sobrevive a pequenos tweets e vídeos de 10 minutos sobre pós-política e ultrapolítica, só revela os interesses de quem pede uma estratégia anticomunista para os comunistas. Alianças são necessárias, estratégias devem ser pensadas e postas em prática. No entanto, é somente pela crítica materialista que elas podem desenvolver-se em uma direção emancipatória, ligadas a ação prática que não nasce pronta e completa em si mesma. As ideias dominantes são as da classe dominante devido, é claro, ao seu domínio das forças materiais que sustentam essas ideias. A crítica é uma de nossas arma. Afinal, já afirmara Marx (2010, p. 151) em sua Introdução a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: “A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas.”
LENIN, Vladimir. Que Fazer?. Disponível em: <https://pcb.org.br/portal/docs/quefazer.pdf>
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.
[1] Edson Mendes Nunes Júnior – Mestrando e Graduado em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Graduado em Relações Internacionais pelo IBMR. Contato: [email protected]
[2] Disponível em: <https://pcb.org.br/portal/docs/quefazer.pdf>.