Por Edson Mendes[1]
“Talvez, ao tratar as fake news, parte da estratégia eleitoreira de Steve Bannon, como uma grande novidade de nossos tempos nos faça perder de vista o essencial: a base da estrutura que permitia os jornais antigos de espalharem notícias falsas, por exemplo, sobre Marx e que permitem, hoje, a ascensão da extrema-direita ao poder no Ocidente pelo uso da corrupção como espetáculo, da mentira como arma e do esvaziamento da política como plataforma.”
O cientista político alemão Michael Heinrich (2018), na introdução do primeiro volume de sua biografia de Karl Marx, faz uma afirmação corajosa para os dias atuais, onde os estudos sobre os efeitos políticos e sociais da internet, vista como revolucionária, ganham cada vez mais destaque. O professor da Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim aponta que uma pessoa deslocada 150 anos no futuro, do ano 1710 para o ano 1860, encontraria mais diferenças nas relações sociais, econômicas e políticas do que uma pessoa deslocada do ano 1860 para o ano de 2010 (também um intervalo de 150 anos). Dentre os motivos, obviamente, estão a Primeira Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo, que possibilitaram rupturas estruturais extremamente intensas na vida humana. Heinrich (2018, p. 20-21) diz que para o segundo caso, de 1860 para 2010, “até mesmo a internet poderia ser facilmente compreendida: um sistema telegráfico mais desenvolvido sendo que cada pessoa possui uma linha telegráfica em casa, por meio da qual se podem enviar, além de sinais em código Morse, imagens (em 1860 a fotografia já era conhecida há anos) e sons”.
Por muitas vezes, imaginamos a internet como um espaço abstrato, através da fantasiosa ideia de uma ‘nuvem’ acima de nossas cabeças onde os dados se espalham e movem livremente. Nada mais enganoso, a verdadeira internet está no chão, enraizada nos fios de fibra ótica, grandes cabos submarinos, ou nos gigantescos prédios de data center que armazenam fisicamente nossos dados. Podemos, dessa forma, analisar as chamadas fake news, ou seja, notícias falsas que viralizam rapidamente, como a continuidade de um fenômeno que já existia na época em que vivia – e atuava politicamente – Karl Marx?
Duas entrevistas de Marx revelam que notícias falsas o perseguiram durante sua vida política devido ao perigo que suas ideias e ações práticas representavam para o status quo. Na primeira, concedida ao jornal The World no ano de 1871, após o início e o fim da chamada Comuna de Paris, Marx defende a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) de acusações de apoio e incentivo a atentados terroristas. Também havia o interesse, por parte da imprensa, em fingir que o revolucionário havia sido preso, enfraquecendo sua imagem e influência nos trabalhadores da Europa. Como vemos no trecho a seguir, grandes jornais se empenhavam em propagar mentiras sobre Marx, a Comuna de Paris e a Internacional:
“R. Landor: Será difícil para a Europa evitar essa impressão, vendo todos os jornais franceses espalharem a notícia.
- Marx: Todos os jornais franceses! Veja, aqui está um deles (pegando um exemplar do La Situation) e julgue o senhor mesmo o valor das evidências. (Lê) “O doutor Karl Marx, da Internacional, foi preso na Bélgica, tentando abrir caminho para a França. A polícia de Londres já vem observando a associação a que ele está ligado e, no momento, está tomando providências para acabar com ela.” Duas frases e duas mentiras. O senhor pode comprovar as evidências com os seus próprios olhos. Como vê, ao invés de estar preso na Bélgica, estou em casa na Inglaterra. O senhor também deve saber que a polícia da Inglaterra não tem poderes para interferir na Associação Internacional, assim como a Associação não pode interferir na polícia. Ainda assim, o pior nisso tudo é que a notícia continuará a se espalhar através da imprensa do continente sem um desmentido, e não mudaria mesmo que, de onde estou, eu avisasse a todos os jornais da Europa.
- Landor: O senhor tentou contradizer muitas dessas falsas notícias?
- Marx: Tentei até me cansar. […]”[2]
Algum tempo depois, no ano de 1878, em uma entrevista ao jornal The Chicago Tribune, a situação parece se repetir. Quando questionado sobre uma passagem de uma carta atribuída a ele, onde se defende de forma quase romântica que ascenderiam revoluções extremamente violentas ao mesmo tempo em diversos lugares da Europa e dos Estados Unidos, Marx responde:
“Marx – Nem uma única palavra! Jamais escrevi semelhantes absurdos melodramáticos. Reflito maduramente aquilo que escrevo. Isto foi forjado, e apareceu no Figaro com a minha assinatura. Naquele momento, fizeram circular centenas de cartas desse gênero. Escrevi ao Times de Londres para declará-las falsas. Mas se quisesse desmentir tudo o que se diz e se escreve a meu respeito, seria necessário empregar vinte secretárias.
Pergunta – Mas, mesmo assim, o senhor escreveu em favor da Comuna de Paris?
Marx – De certo que o fiz, em face do que fora dito a respeito nos editoriais. Todavia, alguns correspondentes parisienses desmentiram bastante, na imprensa inglesa, as alegações daqueles editoriais relativos a dissipações etc. A Comuna não executou mais do que umas sessenta pessoas, aproximadamente. O Marechal Mac Mahon e seu exército de carniceiros mataram mais de sessenta mil. Nenhum movimento desse gênero foi tão caluniado quanto a Comuna.” [3]
Marx (2006), quando jornalista do Rheinische Zeitung (Gazeta Renana) foi perseguido pela censura estatal. Em 1842, publicou textos favoráveis a liberdade de imprensa e fez sua defesa diante dos tribunais e da criminalização de suas ideias. Mais à frente, como vimos nas entrevistas, foi difamado por diversos jornais. Ou seja, durante sua vida, Marx precisou lidar tanto com a perseguição do Estado que buscava calar a imprensa de oposição, quanto com o uso da ‘liberdade’ pelos grandes jornais europeus para espalhar mentiras a seu respeito.
Nem mesmo depois de morto Marx pôde estar livre da difamação e das calúnias. Lhe atribuíram um filho ilegítimo, acusaram de satanista, antissemita, megalomaníaco, péssimo pai ou marido e o responsabilizaram pela morte de milhares, milhões, bilhões e trilhões. Os gritos escandalosos da propaganda anticomunista sussurram sem pudor até hoje. Como já apontado por Domenico Losurdo (2016)[4], utilizar de mentiras é interessante para a classe dominante ao incentivar uma autofobia que faz com que anseios revolucionários sejam suprimidos e a identidade e história comunistas renunciadas. O uso estratégico da mentira passa a ter, ainda, objetivos geopolíticos, econômicos e imperialistas.
As fake news, as notícias falsas ou sensacionalistas, foram ferramentas importantes para a propaganda anticomunista. O empresário e magnata da comunicação estadunidense William Randolph Hearst, que serviu de inspiração para o filme Cidadão Kane, utilizou-se dos jornais que era dono para vender seu anti-comunismo[5], conservadorismo e nacionalismo. Também os boatos do período do macartismo (entre os anos 1950 e 1957 dos EUA), que visava destruir a ‘ameaça vermelha’, circulam e evoluem até hoje. Quem nunca ouviu falar do velho ‘comunista come criancinha’ ou se deparou com o falso ‘decálogo de Lênin’?
A indústria de mentiras do capital se desenvolveu nos últimos anos, como abordado por Losurdo (2016)[6]. Transformar rumores em desculpas para iniciar guerras virou rotineiro, utilizando-se, é claro, do espetáculo proporcionado pela formação da mídia de massas junto ao desenvolvimento tecnológico que levou a popularização da televisão e, hoje, da internet. O avanço continua e continuará, onde cada vez mais vídeos e vozes são alterados, com o uso de filmagens com rostos de pessoas públicas inseridos artificialmente ou áudios forjados. A qualidade e o alcance dos boatos, todavia, continua a ser definida pelo poder econômico que patrocina sua produção e distribuição em massa, passando por algoritmos, uso de perfis falsos, militância manufaturada, dados recolhidos em massa e grupos de Whatsapp e páginas de Facebook artificialmente construídos para disseminar fake news.
Talvez, ao tratar as fake news, parte da estratégia eleitoreira de Steve Bannon, como uma grande novidade de nossos tempos nos faça perder de vista o essencial: a base da estrutura que permitia os jornais antigos de espalharem notícias falsas, por exemplo, sobre Marx e que permitem, hoje, a ascensão da extrema-direita ao poder no Ocidente pelo uso da corrupção como espetáculo, da mentira como arma e do esvaziamento da política como plataforma. No mesmo sentido de Heinrich (2018), percebemos que a internet desenvolveu as possibilidades nas quais uma notícia falsa pode existir e se espalhar, mas seu uso como ferramenta política – especialmente como ferramenta anticomunista – é antigo. Para Losurdo (2016, p. 114), pela televisão, celulares e computadores, a “indignação espontânea ou artificialmente produzida pode contar com uma difusão de uma sutileza e abrangência sem precedentes […]”.
Quando compreendemos as fake news como o desenvolvimento de uma ferramenta já existente de produção de mentiras para garantir que as ideias e emoções dominantes sejam as da classe dominante, começamos a entender que simplesmente desmentir os boatos não adianta. Esta tentativa de ‘mostrar a verdade’, que muitas vezes é realizada pela reprodução de reportagens de jornais ou matérias de agências de checagem de fatos ligadas a grandes conglomerados de mídia, acaba se revertendo em um discurso arrogante e que legitima a própria imprensa sobre a qual existem motivos concretos para se questionar. Como revelam as tentativas de Marx em desmentir as notícias falsas sobre ele, narradas nas entrevistas, não adiantava mandar as cartas para os diversos jornais. Não adianta simplesmente mandar links de estudos ou notícias para ‘comprovar a verdade’. Talvez seja importante a verdade sobre a mentira trazer, junto, a mentira sobre a verdade. Ou seja, deve ser combativa com a própria imprensa do capital que monopoliza o que deve ser reconhecido como verdade e com a face do capital que patrocina as mentiras – ganhando espaços em redes sociais através de algoritmos. É preciso adentrar o poder material que sustenta a criação e propagação das mentiras.
Notas:
[1] Edson Mendes Nunes Júnior. Mestrando e Graduado em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Graduado em Relações Internacionais pelo IBMR. Contato: [email protected]
[2] Karl Marx. Entrevista ao jornal The World. 18 jul 1871. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/07/18.htm> e também em < https://18.118.106.12/2016/12/23/entrevista-com-karl-marx-sobre-a-i-internacional-e-a-comuna-de-paris/>.
[3] Karl Marx. Entrevista ao jornal The Chicago Tribune. 18 dez 1878. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1878/12/18.htm>.
[4] O tema também já foi abordado no LavraPalavra por Pedro Felipe Narciso, no texto “Brasil, Bannon e Bolsonaro: alegoria antecipada em ‘O Ovo da Serpente’” disponível em: < https://18.118.106.12/2018/11/19/brasil-bannon-e-bolsonaro-alegoria-antecipada-em-o-ovo-da-serpente/> e por Jones Manoel, no texto “Autocrítica ou anticomunismo? Aportes teóricos para compreender a autofobia na esquerda brasileira”. Disponível em: <https://18.118.106.12/2019/03/25/autocritica-ou-anticomunismo-aportes-teoricos-para-compreender-a-autofobia-na-esquerda-brasileira/>.
[5] William Hearst foi dono de 28 jornais como, por exemplo, o New York Journal American, além de revistas e rádios nos Estados Unidos. É responsável pela cobertura, acusada de sensacionalista ou falsa por alguns, do período de fome na Ucrânia – então parte da União Soviética – chamado Holodomor. A história é questionada, por exemplo, por Ludo Martens (2003) no livro Um outro olhar sobre Stalin, onde é narrado inclusive um encontro entre Hearst e Hitler no verão de 1934. O magnata ficou conhecido, junto do jornalista Joseph Pulitzer, por práticas questionáveis no uso da comunicação para vender jornais e exagerar ou deturpar fatos a seu favor, sendo representantes do que ficou chamado de “imprensa marrom”.
[6] O tema também é abordado em: Domenico Losurdo. A indústria da mentira: parte da máquina de guerra imperialista. Disponível em: <https://www.novacultura.info/single-post/2018/05/27/Losurdo-A-industria-da-mentira-parte-da-maquina-de-guerra-imperialista>.
Referências Bibliográficas
HEINRICH, Michael. Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna. São Paulo: Boitempo, 2018.
LOSURDO, Domenico. A esquerda ausente: crise, sociedade do espetáculo, guerra. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Ed. Anita Garibaldi, 2006.
MARTENS, Ludo. Um outro olhar sobre Stalin. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
MARX, Karl. Liberdade de imprensa. São Paulo: L&PM, 2006.
1 comentário em “Karl Marx e as Fake News: Sobre a indústria de mentiras do capital”
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