Chasin entra em ação: crítica à “ontonegatividade da política”

Por Fernando Savella

Marx desafia Hegel: o Estado, ao invés de ser a expressão do Espírito e superação ideal das contradições da sociedade civil, é na verdade um instrumento da classe dominante que apenas simula o alcance de uma “universalidade” e racionalidade. Desde a “Introdução à Crítica” até o canônico “Caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, n’O Capital, esta foi a constante da obra de Marx e da tradição teórica e política que o seguiu: o Estado burguês, bem como toda superestrutura ideal que erige das relações de produção capitalistas, se caracteriza pela afirmação das relações abstratas no lugar das relações concretas.

O Estado se constrói como o ente que representa o bem geral, o interesse geral, que representa o universal e supera os interesses particulares, expressos na sociedade civil. A política, por sua vez, aparece enquanto a disputa pelo sentido desse universal, o que é racional num sentido objetivo, independentemente de interesses particulares que não devem se sobrepor uns aos outros. Como diria Laclau, um chamado “pós-marxista” argentino, a política é a “disputa pela verdade”. [1]

Esse constructo ideológico – e, como ideológico, prático – é duramente criticado por Lenin, especialmente ao se tratar de desvios no terreno do marxismo que passam a funcionar como apologia à democracia burguesa, tratando-a idealmente como ela prega ser: o caminho racional para um bem comum, um terreno onde, através do diálogo e da circulação de informações, as diferenças entre as classes podem ser resolvidas e estas podem retornar ao seu caminho habitual (como defenderiam funcionalistas e liberais como Schumpeter) de harmonia e cooperação. Contra o renegado Kautsky, escreve: “No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a ‘democracia’ dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados.” [2]

A partir de Marx, Engels e especialmente Lenin, seguiu-se uma tradição teórica e prática voltada para uma crítica radical à democracia burguesa e à ideologia que torna tal democracia o caminho para a transformação da vida material, através do “bem geral”. A transformação deve vir da derrubada da classe dominante e instalação da classe trabalhadora no poder, que passa a subordinar o Estado, as relações de produção, o emprego da força de trabalho, etc. aos interesses dessa classe. É a vontade materializada, é a afirmação da particularidade da classe trabalhadora sobre a pretensa e falsa universalidade da democracia burguesa e da ideologia de sustentação do Estado burguês. Essa matriz teórico-prática não fugiu das principais tradições e experiências do movimento comunista no século XX, sejam lukácsianos ou althusserianos, seja na URSS ou em Cuba socialista.

Os desvios (ou acertos daqueles comprometidos com a dominação burguesa), no entanto, foram não só comuns como ocasionaram ao capital uma boa via de reprodução das relações capitalistas ao passo em que se tranquilizaram as convulsões sociais que ameaçavam sua existência. Social-democratas e reformistas, que passaram a compor governos e gerir os negócios da burguesia com ampla base de apoio trabalhadora, se articularam justamente na ideia de que a democracia burguesa era a forma ideal de organização da sociedade e que o limite da atuação transformadora era a ação democrática, buscando sempre atingir o melhor abstrato, respeitar as leis impostas pela classe dominante como se fossem elas mesmas a representação ideal do bem geral, “alterar as instituições de dentro” como se não fossem construídas propriamente em função da dominação de classe, etc. É contra esses desvios que o filósofo brasileiro J. Chasin procura se posicionar[3], como todo bom comunista faria. Porém, ao fazê-lo, incorre em algumas grossas imprecisões e desvios que não deixam de ter efeitos na prática que sua teoria orienta.

Como o Estado, em sua forma de “representante do interesse geral” e, portanto, sua disputa por meio da disputa da verdade e da superação dos interesses particulares, é próprio de relações de produção historicizadas e é um instrumento de sua reprodução, trata-se de um fenômeno ontonegativo, ou seja, não é um elemento fundado ontologicamente, essencial da vida em sociedade dos seres humanos – como seria, por exemplo, o trabalho. Na construção do conceito, ainda, define como a ontonegatividade da politicidade, ou seja, da condição daquilo que é político. Sem uma definição clara do que é o “político”, opera uma identidade entre política e Estado burguês, assumindo um significado próprio da linguagem mainstream da própria ideologia dominante que restringe o político à atuação dentro das instituições representativas, e iguala o Estado burguês ao Estado socialista enquanto uma mesma forma, que seria, ela mesma, uma relação capitalista – questão à qual voltaremos mais a frente.

Não seria um grande problema se filiar a essa definição para a finalidade da crítica, se esta não se filiasse, por sua vez, a um debate propriamente socialista de estratégia e de tática. Muito embora Chasin se refira diretamente à obra de Marx como referência absoluta para sua caracterização da política, esta crítica não pretende ser puramente teórica, mas também dar conta dos efeitos práticos que tal confusão acerca da “política” gera na estratégia socialista. Por isso, tomemos a forma como “política” aparece em Lenin e porque essa forma é importante para a forma concreta que tomam a estratégia e as táticas do movimento comunista.

Em “Que Fazer“, Lenin destrincha a diferença e a relação entre a prática dos sindicatos e a prática de um partido de vanguarda do proletariado: enquanto os sindicatos representam lutas corporativas de tal ou qual categoria de trabalhadores em tal ou qual região, representando assim particularidades no interior do proletariado, o partido de vanguarda seria o braço político da classe, ou seja, o partido é responsável por tomar todas as particularidades de cada categoria e localidade e superá-las com um programa que unifique a classe em torno de um objetivo em comum, de forma a superar seus problemas mais imediatos atacando o cerne dos mesmos: a exploração de seu trabalho. Não por coincidência, o caráter político da organização de classe só aparece no movimento de superação das particularidades e reconhecimento de uma generalidade própria da classe, uma lógica como a usada por Marx na “Miséria da Filosofia” em que a classe consciente de si (a classe para-si) é a classe que toma consciência de seus interesses e se organiza na luta por eles, superando a condição em que a classe é apenas a existência de condições similares entre inúmeros indivíduos, por conta de posições iguais ou similares nas relações de produção.

O engajamento do proletariado na prática política não se dá no momento em que a classe se sujeita à “disputa pela verdade” do interesse geral do Estado burguês, mas quando se lança na luta consciente e organizada por seus interesses de classe. Esse movimento é precisamente o primeiro condicionante da estratégia socialista. Para além da luta por melhores salários ou salubridade no ambiente de trabalho, pautas próprias de uma categoria profissional através de um sindicato, é necessário lutar por objetivos que realmente elevem as condições do proletariado chegar ao ponto de se tornar a classe dominante, necessidade pela qual passam 1) a constituição do partido comunista como organizador da consciência de classe, da classe “para-si” e, mais tarde, de seu poder sobre as classes contrarrevolucionárias; e 2) a desarticulação da organização da classe burguesa na perseguição de seus interesses próprios, a saber, a reprodução das relações de produção capitalista e dos aparelhos que as garantem e as expandem.

Tal caráter qualitativo da luta do proletariado é confundido conceitualmente com “a política” enquanto política propriamente burguesa, nos termos da democracia burguesa. Enquanto esta última é uma forma historicizada de poder, própria da sociedade onde domina o modo de produção capitalista, a primeira é, por sua vez, uma forma historicizada distinta, própria do movimento de superação do capitalismo pelo proletariado, que subordina aos seus objetivos as estruturas e espaços construídos pela sociedade burguesa – dimensão esta que escapa à análise de Chasin no passo em que a ideia de uma “política” entendida de forma mais ampla do que a propriamente capitalista é jogada pelo filósofo no campo da universalização do que não é universalizável.

E por que é possível pensarmos em “política” de forma mais ampla, mas não universal (ou seja, ainda historicizada, só que enquanto instrumento de uma outra classe que não a burguesia)? O fato de que a luta do proletariado pela revolução não é uma luta pela destruição do poder político, mas sim pelo estabelecimento do poder político de outra classe. Para Chasin, a luta pelo poder político nas mãos do proletariado não passa de uma tergiversação idealista, uma vez que a própria existência de poder político já é uma forma de reprodução de relações capitalistas em si, e portanto a revolução deveria ser social, e não política, baseando-se na crítica de Marx a Hegel em que afirma que não é o Estado nada mais que uma superestrutura das contradições da sociedade civil. A revolução política, para Chasin, é a crença de que o Estado é o que determina a sociedade civil, e não o contrário – portanto, uma crença idealista.

“Não há ‘Estado’ de transição!” [4], brada. Se a revolução não for social, não será a via política a articulá-la, e o desenvolvimento e “fracasso” da União Soviética é evidência disso. O caráter profundamente idealista dessa posição lhe escapa, e também lhe escapa, em sua tentativa de ser completamente fiel aos textos de Marx, que a obra do alemão advoga pelo reconhecimento teórico da dialética entre as diferentes instâncias da sociedade. O Estado, para Marx, determina sim a “sociedade civil”, ou melhor, as relações de produção e a sociabilidade, na medida em que serve de comitê gestor dos negócios da burguesia e como superação ideológica das particularidades concretas próprias da chamada sociedade civil, ocupando aí a função que dá lugar às disputas de hegemonia apontadas por Gramsci. Não se trata de uma mera inversão do esquema hegeliano, de forma que o Estado se tornasse então o passivo em relação à determinação da sociedade civil, como um reflexo.

As condições encontradas pelas classes dominadas ao redor do mundo que organizaram as revoluções socialistas, e as lições envolvidas no enfrentamento dessas condições, passam direto pelos olhos de Chasin e não alteram a pureza de sua teoria. Se o Estado burguês, a forma historicizada à qual Chasin se refere como “política” de forma genérica, é um instrumento da dominação burguesa, a conquista do poder pelo proletariado nas experiências socialistas do século XX demonstrou que é também a forma Estado que constituiu o instrumento da dominação do proletariado e seus aliados para combater a contrarrevolução e gerir a produção e a sociabilidade no interesse dessas classes.

A grande falha da concepção de ontonegatividade da política é seu apego ao essencialismo: se uma forma de sociabilidade, a saber, a política enquanto esfera relativamente autônoma de disputa de um aparelho de poder centralizado, nasce como superestrutura do modo de produção capitalista, essa forma se torna em essência uma forma capitalista e reproduzirá a sociabilidade capitalista independentemente de qualquer coisa. Lhe escapa o caráter relacional advogado pelo marxismo [5], em que a superestrutura depende fundamentalmente da correlação de forças na luta de classes [6] e, no caso do socialismo real, da detenção de fato do poder político pelo proletariado como resultado da superação revolucionária do anterior estado de dominância burguesa.

A decorrência é uma negação idealista das experiências socialistas do século XX, no bojo da autofagia acusada por Losurdo; e também uma incompreensão acerca do lugar da política dentro das formações sociais. A política é uma estrutura trans-histórica [7], tomando formas e funções distintas de acordo com a formação social que estrutura e em que é estruturada. Se a história da humanidade é a história das lutas de classes, estas não são apenas lutas “sociais” como aponta Chasin, mas também lutas com vistas no controle do poder político, uma vez que, derrotada a antiga classe dominante, não deixa de existir a necessidade de um jugo da nova classe dominante ou classes dominantes sobre as demais. Esse jugo só pode ser exercido pelo poder político, a forma pela qual uma classe impõe um regime de apropriação do excedente da produção – no caso do poder político do proletariado, o controle de uma classe sobre os frutos do seu próprio trabalho, pela primeira vez na história.


Notas:

[1] Ver A Razão Populista, de Ernesto Laclau.

[2] Ver A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky (1918), de Lenin.

[3] O raciocínio exposto por Chasin pode ser encontrado em seu texto antológico Marx – Determinação ontonegativa da politicidade.

[4] Ver a conferência Crise contemporânea e o socialismo necessário, de Chasin.

[5] Sobre esta caracterização, recomendo o livro Marx, o Intempestivo, de Bensaïd.

[6] Ver o próprio 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx em que se torna visível na obra do alemão a ideia de relativa autonomia da política, esfera que acaba por imprimir em sua substância e forma as condições impostas à dominação burguesa pelo estado da luta das classes dominadas; elemento que pode ser bem melhor entendido com uma boa leitura de Luta de Classes, do italiano Losurdo.

[7] Sobre isso, recomendo Democracia contra o Capitalismo, de Ellen M. Wood.