Patrimônio e Memória: a distância da história na cultura burguesa

Por Bruno Santana

Das mais remotas civilizações do Oriente à mundialização da ideologia burguesa nas bases atlânticas do capitalismo, instrumentaliza-se o esforço de consolidar a legitimação de um modo de produção, fazendo da cultura projeção da Memória na consciência.


As unificações dos grandes reinos mediterrâneos e norte-africanos expressam experiências de contato cultural em bases mercantis ainda difusas que conformavam uma produção artística ainda não alienada em uma Instituição de propósitos estreitos. Nestes modos de produção o cerceamento do que se entendia como arte, era estranho à produção material de objetos que cumpriam tal finalidade, a luz da análise contemporânea. A estes artefatos era construído um sentido de parte constituinte do aspecto material do trabalho social neles empregado. Havia por exemplo na arquitetura, escultura ou cerâmica grega um atributo em sua produção que não tinha ainda a finalidade moderna de ‘ser Arte’; ou na astronomia e matemática egípcia que não era a de ‘ser Ciência’.

A materialidade destes trabalhos tinha lastro concreto nos símbolos sociais nestes expressos, de forma que o que chamamos de ‘arte grega’, era em verdade o elo material de Harmonia (kosmos) que produzia no cotidiano clássico a finalidade da organização do seu modo de viver. A atribuição do ‘valor simbólico’ legado aos templos, às Ordens, à geometria e a música não era outra coisa senão a elevação destes aspectos ao vínculo formado entre o ‘produto cultural’ e o sentido do seu modo de produção, que visava no plano da consciência alinhar a vida terrena com a mitologia de seus deuses.

O helenismo enquanto atributo civilizatório, alcançou legitimação como tal a partir também da absorção justaposta da base material que diferenciava a produção cultural de variados povos, mas que unificava a todos ao conferir a estes um estado de elevação e consagração dentro do estado de coisas em transformação.

O Império Romano representa territorial e politicamente o primeiro Evento onde a apropriação do simbólico enquanto fenômeno cultural de caráter imanentemente histórico encontra forma, conteúdo e esforço teórico. Ainda assim, não é o período da institucionalização completa do Patrimônio e da Arte, conforme veremos adiante. No entanto, desde o âmbito filosófico ao cultural, se mostra presente a absorção dos elementos históricos e fatos políticos da produção cultural local, como conjunto complexo para consagrar o status de Civilidade romana. A medida em que expandiu suas colonias, a territorialização de estratégia militar das novas cidades romanas se depara com o paradigma amplamente debatido entre as autoridades: saquear e destruir os ídolos dos conquistados, ou preservar e incorporá-los à transformação em processo? A criação do tratado De Architectura de Vitruvius atesta que a destituição completa dos artefatos históricos d’outros tempos não conferiria ao Império seu caráter de perenidade e continuidade histórica. Desta forma que os sistemas construtivos e templos de orientação ‘bárbara’ foram preservados e incorporados ao registro teórico da cultura vigente. A geometria complexa dos arcos e cúpulas mouras incorporadas à arquitetura romana ou a adaptação dos mitos gregos ao status de civilidade romana mantém o elo simbólico da produção cultural com o momento histórico, transformando seu sentido e significado preservando a forma. Como um vaso que se troca de água por areia.

Também no declínio do Império Romano e auspício do modo de produção feudal sob a égide da Igreja Católica a postura para com o sigilo cultural foi central. Era raro que súmulas papais recomendassem a destruição de ícones que remetessem ao paganismo, por exemplo. As autoridades eclesiásticas corroboram com a ideia de ‘manter o corpo e apenas exorcizar deles os seus demônios’. A isto se deve a incorporação dos fóruns, arenas, termas e templos romanos ao novo programa católico. Ao caráter Universal da Igreja, interessava que os velhos costumes fossem catequizados e traduzidos nas práticas do novo modo de viver assim estabelecido.

O distanciamento histórico do objeto e a cultura vigente, que origina o Patrimônio, é um fruto político e histórico do declínio do feudalismo a partir do trecento (século XIV). O marco histórico de fundação coincide com a formação da burguesia mercantil que passa a germinar o que irá se desdobrar na forma mercantil e estranhada da produção artística e cultural. A medida em que se firmam as posições deste setor como classe dominante, surge junto ao processo as categorias conscientes da cultura que irão legitimar ideologicamente seu domínio.

Esta legitimação adquire uma forma distinta de outros modos de produção, na medida em que vai se estabelecendo o abismo entre o significado dos elementos culturais de outros momentos históricos e a sua forma de produção. O espectro da preservação como elemento de projeção de Memória no consciente, torna estático o contato entre Sujeito e Objeto, onde não é possível que se faça o elo entre os dois para dotar o elemento cultural de significado. Em termos claros, o ponto de contato entre uma edificação histórica por exemplo, não é capaz de produzir pontos de contato com as estruturas sociais em transformação, tornando a história um elemento estanque e distante. Podemos datar a consagração do Patrimônio como elemento cristalizado de afirmação histórica da cultura burguesa em três Momentos: o trabalho dos antiquários no trecento, a formação do estilo paladiano e o renascimento, e a revolução francesa como triunfo que consagra a ideologia burguesa como produção cultural legitimada e universal.

Os antiquários eram clérigos em formação ou mestres artesãos feudais encarregados de reportar às súmulas papais o registro sistemático dos artefatos histórico-culturais do território eclesiástico. Este grupo ganha autonomia relativa nesta produção e conta com o apoio de historiadores, matemáticos, engenheiros, arquitetos e filósofos de forma a aprofundar os levantamentos sobre a produção cultural que precedeu o domínio feudal. Com registros extremamente detalhados de sepulcros, ruínas, ícones e pela coleção de artífices do período clássico greco-romano e mediterrâneo, os antiquários passam a ter papel primordial em fundar narrativas sobre outros períodos históricos.

Estes registros resultam e um produto político fundamental. Durante o Quattrocento (século XV) e com a crescente autonomia dos mestres de ofício e os mercadores mediterrâneos da burguesia, ideias para novos empreendimentos nas cidades costeiras surgiam com a premissa de simbolizar o fortalecimento destes setores. As grandes reformas em Roma e a urbanização de vilas venezianas por arquitetos como Palladio, entram em contato com a sistematização destes registros e por meio deles, passam a elaborar teoricamente sobre os arquétipos culturais que deveriam nortear as importantes transformações sociais e formação da burguesia em curso. O estilo paladiano é uma das primeiras bases estéticas e formais nas quais há uma rememoração do período clássico como referência de grandeza civilizatória que deveria orientar a produção cultural mercantil.

Estava em curso a construção de um conjunto de arquétipos e noções formais com cabedais técnicos que irão se associar no nível da consciência e na materialidade da produção cultural, com o declínio do modo de produção cultural e ascenso do capitalismo. Estas formas irão absorver as formas mercantis em formação que iriam transformar as bases da divisão do trabalho e a produção artística.

O Renascimento sedimenta as condições necessárias para que a forma mercantil assumisse a forma da produção artística em sua plenitude a partir do Cinquecento (século XVI), na forma de dois postulados básicos que irão se transformar até os marcos da Revolução Francesa como consagração universal da ideologia burguesa: a Técnica e o Belo. O nascimento da Arte como instituto deste processo histórico surge como atributo do reforço do distanciamento da produção artística e a histórica, relegando ao patrimônio e à memória um aspecto estático que separa o Ser, o Objeto e o Significado.

A Arte como fundamento do Belo e o Precioso criam em toda a produção artística um sigilo distanciado do que lhe conferia significado, passando a se desvincular do plano material e político, consagrando a forma-mercadoria em todo objeto cultural. Este distanciamento passa a figurar na constituição do patrimônio como fenômeno cultural. As transformações da Revolução Industrial e a hegemonia ideológica da burguesia, criam o elemento de diferença, onde o histórico se torna vazio de significado e a Memória ganha um espectro indiferente ao motor furioso do progresso e o desenvolvimento econômico. O programa dos Museus assume a função de colecionar as espoliações coloniais artífices em curso nos territórios além da Europa. Estava em curso a destituição das colônias de toda sua História e Significado de suas culturas, exposto nas Metrópoles colonialistas apenas seu aspecto exótico e primitivo, em contraste com a edificação histórica do Museu burguês que também rompe ideologicamente com o curso de seu próprio lugar histórico, descolando os pontos de contato social das transformações econômicas em curso, reificando a cultura como elemento de reprodução também mercantil.

No auge da Revolução Francesa, é cuidada à Comissão de Monumentos Históricos a função de discutir a destituição do significado histórico do Antigo Regime, no bojo das transformações em curso. Esta Comissão representa a consagração da Instituição do patrimônio, a medida em que estava em pauta a consciência e o imaginário material da França revolucionária, discutindo se a cultura nacional seria refundada ou incorporada a ela aspectos formais da história aos baluartes da revolução.

A princípio se discute a ressignificação de edifícios e símbolos do Ancién Regime como palácios, catedrais e jardins da aristocracia. Seriam instalados nestes locais novas instalações militares, escolas e universidades. Esta posição no entanto se desdobra na mais estática concepção destes lugares como elementos históricos que não poderiam comportar o novo programa da Revolução, e à maioria dos edifícios históricos da França foram instalados museus e instalações artísticas de coleções coloniais. O patrimônio e as posses do Antigo regime são então expostos nestas fortificações, de tal sorte que se cristaliza o distanciamento entre o significado dinâmico que podem ter os objetos e sua estrutura formal. Os museus servem então ao mesmo tempo de inspiração em abstrato para a técnica e a beleza (o termo museu deriva de ‘mouseion’, antigo Templo das Musas que reunia as instalações científicas do período helenístico) com as exposições de arte ou para a coleção do assalto sociocultural nas colônias que retirou de outros povos sua História.

Desta forma, este é o caráter que assume a Memória e a Cultura no capitalismo. A ideologia burguesa cinde a Arte e a História em um aspecto mercantil e estranho com relação à classe trabalhadora, mistificando a produção cultural e tornando a Memória um artifício inerte no tempo e vazio de significado. As cidades históricas não tem outra função que não a do turismo; as artes não possuem outra elaboração legitima que não a que passa pelo postulado formal ou estetizante. Esta é a condição estanque e despossuída de significado na classe trabalhadora na qual se encontra a Memória e o Patrimônio no capitalismo.

A superação dialética do Patrimônio como elemento distante da sociedade, passa pela instrumentalização da História e da cultura nos seus aspectos estruturais. Em países colonizados a construção dos significados históricos deve ter um resgate fundamental e cotidiano na projeção da consciência revolucionária da classe trabalhadora, tirando do patrimônio sua memória distante e sem razão concreta de se fazer presente. Fazer uso dos elementos históricos presentes por exemplo em Sítios Históricos de cidades, pode no sentido da transformação necessária, ancorar novos pontos de contato que foram espoliados pelo colonialismo.

Experiências de destituição das formas mercantis, abstratas e ideológicas da Memória surtiram resultados importantes, a ressaltar no tratamento distinto que teve a Revolução Cubana e Soviética com seu patrimônio histórico. A experiência cubana no patrimônio se fundou na tentativa de reconstruir pontos de contato entre a estrutura formal e os símbolos do colonialismo com o processo revolucionário. Não se trata de uma rememoração historicista, mas da preocupação de trazer aos corpos inanimados das edificações do velho mundo colonizado de volta à vida com um sopro de vida revolucionária. Isto fez com que os velhos cassinos da burguesia virassem instalações hospitalares; fortificações da ditadura de Fulgêncio Batista se tornassem escolas; palacetes aristocráticos em instalações produtivas da agricultura cubana, velhos hotéis moradia para o povo, e majestosos museus se transformassem em universidades.

A experiência soviética dotou também os esqueletos do mundo czarista de Espírito revolucionário. Fez dos prédios abandonados em Moscou escolas de arte e alfabetização em massa, das grandes igrejas bases locais da nascente democracia operária de forma a ser comum nestas duas experiências: a ressignificação do processo histórico, reconstruindo o elo entre a memória crítica e a transformação em curso, dotando de vida e significado os elementos da vida dos trabalhadores e por fim, acabando com o distanciamento mercantil que criou a ideologia burguesa com relação à Cultura e os bens históricos da humanidade. O ponto de contato entre a Memória e o Significado foram colocados em pauta para dotar a classe trabalhadora de consciência combativa, dando à cultura e a memória um caráter de transformação cotidiana.


REFERÊNCIAS

Sobre a Teoria do Patrimônio e a Memória: A Alegoria do Patrimônio- François Choay

Tratados patrimoniais do mundo clássico e feudal: De Architectura- Vitruvius; I Quattro Libri dell’architecttura- Andrea Palladio

Renascimento, nascimento da Arte e Cultura Burguesa: Linguagem Clássica da Arquitetura- John Summerson

Sobre o instituto da Arte burguesa: Teoria da Vanguarda- Peter Bürger

Patrimônio nas experiências socialistas: Arquitetura e Urbanismo da Revolução- Roberto Segre


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