Nem só de realismo vive o desejo, Frédéric Lordon versus Mark Fisher.

Alex Martins Moraes[1]

Frédéric Lordon propõe uma teoria das atuais condições subjetivas de (im)possibilidade para a mobilização produtiva das pessoas no marco das estratégias de valorização e acumulação do capital.Por sua vez, Mark Fisher avalia o modus operandi do chamado “realismo capitalista”, descrevendo sua incidência depressiva sobre nossas capacidades críticas e imaginativas e, portanto, seu poder de obturar qualquer perspectiva emancipatória. Proponho-me a revisar brevemente os enfoques de ambos os autores, sinalizando seus eventuais limites e ponderando sobre sua relevância estratégica no tocante a uma tarefa urgente. Refiro-me, concretamente, à necessidade de voltar a mapear os pontos de inconsistência – e de possível ruptura – do processo de subsunção de nossas vidas ao movimento despótico do capital.


Em Capitalismo, desejo e servidão, Lordon (2015) identifica as condições de manutenção do patronato capitalista em sua etapa pós-fordista e neoliberal. Em nossos dias, o alinhamento do desejo coletivo em favor da rentabilidade do capital assumiria feições totalitárias. Isto na medida em que almeja converter a própria atividade laboral – ou seja, o processo de trabalho – numa fonte intransitiva de prazer e satisfação. O ato de trabalhar – isto é, de transferir valor à mercadoria ou assegurar a transferência e a realização desse valor – é promovido ideologicamente como um momento de realização pessoal. Sendo assim, já não bastaria mobilizar as pessoas através da necessidade/desejo de salário; também seria fundamental converter o processo de trabalho numa fonte de felicidade per se. Existiria, portanto, uma propensão capitalista ao alinhamento desejante total da força de trabalho e dos seus portadores: aqui, o emprego deixaria de ser um meio para alcançar prazeres situados em outro tempo e lugar e tornar-se-ia, em vez disso, um objeto de desejo a priori (“Antes – me dizia um motorista de UBER – a gente se queixava porque tinha pouco tempo de férias. Agora a gente tem que estar feliz só de ter algum trabalho, porque nem isso as pessoas têm. Só de estar aqui trabalhando eu já estou satisfeito”. Eis um caso extremo: não é nem sequer no trabalho que a realização do desejo se dirime, mas na mera possibilidade de trabalhar). Assim, se no fordismo o processo de trabalho era condição irrevogável de um prazer externo a ele, então no pós-fordismo o prazer deve ser consubstancial ao próprio alinhamento produtivo do indivíduo sobre o vetor de um “desejo amo” capitalista, isto é, de um desejo cujas finalidades não podem ser alcançadas sem a subordinação e a reconfiguração de outros desejos.

As coisas se dão dessa maneira pelas mais diversas razões, todas elas associadas com a euforia acumuladora suscitada pela derrota dos oponentes mais visíveis do capital no plano geopolítico. Não havendo alternativas para a satisfação material das pessoas por fora do movimento do capital, este último tende a apresentar-se como única alternativa lícita ao desenvolvimento integral da ação e das volições humanas. Contudo, tal redefinição do patronato capitalista requer a instauração de novos lugares de poder, cuja atribuição não é outra senão a de assegurar o melhor alinhamento possível das potências individuais, em reciprocidade com os objetivos empresariais. Estou falando de especialistas em recursos humanos, orientadores vocacionais, coachees, psicólogos e todo o tipo de ideólogo e propagandista que se disponha a disseminar com talento os critérios de captura apregoados pelo novo patronato.

Lordon oferece conceitos úteis à elaboração de uma análise mais ou menos detalhada daquelas estruturas de captura, configuração e regulação do desejo que, hoje em dia, destinam-se a respaldar a reprodução ampliada do capital. Ao posicionar o foco da análise sobre as coordenadas operacionais do recrutamento capitalista em sua etapa “totalitária”, Lordon está em condições de indicar não só os fundamentos e propósitos do patronato, mas também as potenciais tensões que lhe seriam inerentes. Isto quer dizer que o construtivismo do desejo, ao qual se dedicam os estrategistas do capital, transforma esses mesmos estrategistas em alvos de um rechaço potencial por parte de quem se vê na posição de objeto do recrutamento empresarial. Além disso, as promessas de satisfação esgrimidas pelo desejo amo, que versam sobre um desenvolvimento simbiótico das capacidades laborais e dos desejos individuais, também poderiam conspirar contra si mesmas. Isto porque, na prática, apenas uma porção exígua da força de trabalho tem a oportunidade de realizar suas respectivas aptidões criativas em sinergia quase total com a extração capitalista de valor.

De fato, a maioria dos trabalhadores experimenta uma escandalosa defasagem entre os princípios ideológicos que regem seu recrutamento e as condições objetivas sob as quais sua força de trabalho é despendida. Verifica-se, aqui, uma contradição análoga àquela que pauta a coexistência entre, por um lado, a afirmação jurídica da igualdade formal dos indivíduos e, por outro lado, a persistência de uma desigualdade substantiva no contexto das formações sociais governadas, simultaneamente, pelo despotismo patronal e pelo estado de direito burguês. E assim como os valores igualitários e liberais que vicejaram no período de conformação da ordem republicana europeia no final do século XVIII serviram de referência à irrupção de potentes razões revolucionárias em ultramar – Revolução Haitiana, por exemplo –, a apologia retórica da livre realização das capacidades desejantes dos indivíduos poderia, para dizê-lo de algum modo, “transbordar” a configuração ideológica do patronato capitalista. Daí que Lordon possa prescrever uma disjuntiva entre “comunismo” e “totalitarismo”. Comunismo como uma espécie de realização da promessa que o totalitarismo pós-fordista anuncia e trai simultaneamente.

Infelizmente, Lordon não extrai sua linha de fuga pós-totalitária da análise concreta de como a conflitividade e o mal-estar social vêm se expressando atualmente. Na prática, o descrédito dos operadores institucionais da captura patronal – coachees, motivadores, especialistas em marketing pessoal, etc. – parece manifestar-se mais no cinismo do que na revolta. De qualquer forma, o fato de Lordon identificar na governamentalidade neoliberal um esforço tão laborioso quanto precário de captura e funcionalização do desejo coletivo evidencia as tensões que qualquer pretensão dessa natureza acarreta inevitavelmente. Há uma irredutibilidade intransponível entre o indivíduo desejante e o objeto de desejo que a ele se impõe, de modo que o desejo-amo está sempre assombrado por uma espécie de entropia, ou por uma dissipação das “potências de agir” em direção a formas outras de realização pessoal e coletiva.

A meu ver, é esta apresentação tensa e conflituosa das condições de possibilidade do patronato capitalista que está ausente nas reflexões de Mark Fisher. Antes de proceder ao contraste de perspectivas e ao exercício da crítica, devo reconhecer que Lordon e Fisher estão se movendo em planos diferentes de análise. O primeiro propõe critérios conceituais para uma analítica das estratégias contemporâneas de alinhamento do desejo proletário. O segundo não parece estar preocupado com a análise, mas sim com a descrição superficial – ainda que sugestiva e às vezes aguda – dos estados anímicos e das disposições intelectuais suscitadas pela “modernização” neoliberal das atividades produtivas e reprodutivas da sociedade. Tal descrição é, às vezes, pontuada com inferências pretensamente analíticas que, no entanto, me soam imprecisas e, no limite, paralisantes. Vejamos por quê.

Nas reflexões tecidas por Fisher (2016) em Realismo Capitalista, cada movimento do capital encontra, imediatamente, um prolongamento subjetivo. Assim, por exemplo, a constante oscilação sistêmica entre momentos de crise e euforia, depressão e entusiasmo, incide na generalização dos casos de transtorno bipolar. Por sua vez, a axiomatização espetacular da produção cultural no circuito dos meios massivos – onde grassam a descontextualização, a banalização e a fragmentação dos enunciados artísticos, políticos, etc. – redunda na apatia de um público ávido por distrações narcotizantes e desengajadas. Uma determinada forma de produção cultural resulta num tipo de público que, por sua vez, exige aquele mesmo tipo de produção cultural. Neste processo circular, torna-se impossível fixar quaisquer referentes discursivos necessários a uma nova produção de subjetividade. Citemos as palavras de Fisher:

O poder do realismo capitalista deriva em parte da maneira pela qual ele subsume e consome toda a história anterior: trata-se de um efeito do ‘sistema de equivalências’ capaz de transformar todos os objetos da cultura — sejam eles a iconografia religiosa, a pornografia ou o Das Kapital — em valor monetário. Ande pelo Museu Britânico, onde se podem ver objetos tirados de seu lugar de origem e reunidos como se estivessem dispostos sobre o balcão da nave espacial d’O Predador, e você terá uma imagem poderosa do processo em curso. […] tendo o capital incorporado tudo que lhe era exterior tão completamente, como pode funcionar sem um exterior para colonizar ou do qual se apropriar? (Fisher, 2016:25)

Mais adiante, o “realismo capitalista” é descrito pelo autor como “uma atmosfera geral” expansiva que abrange “a regulação do trabalho e da educação, e que opera como uma barreira invisível que impede o pensamento e a ação genuínos”.

Seria interessante observar como Fisher perde de vista a oportunidade de explorar as consequências críticas inerentes à analogia que ele próprio estabelece. Se a manipulação espetacular da produção cultural é análoga à acumulação de objetos estéreis entre as paredes do Museu Britânico, então talvez as condições de possibilidade deste espaço de exposições nos ajudem a conceber as premissas operatórias da própria indústria cultural-ideológica criticada em Realismo capitalista. Sabemos que as exposições do Museu Britânico foram enriquecidas sobremaneira pelo espólio imperial. A conformação do Museu, como lócus de exposição da heterogeneidade “cultural” abarcada pelo império, não depende apenas de uma prática deliberada de descontextualização, mas também e fundamentalmente, de uma nova textualização na qual se redefine o sentido que a própria heterogeneidade pode assumir – agora sob a égide do colonialismo. Todas as histórias confluem na história do império e coexistem ali, igualadas sob o estatuto de fontes e testemunhas da implícita supremacia britânica. A própria captura da multiplicidade dos modos de existência sob o “Um” do império indica uma operação contundente de poder que o Museu monumentaliza. Contudo, as consequências traumáticas e irresolúveis dessa operação só podem permanecer invisíveis ao sujeito que apenas percorre, deprimido, as galerias do Museu Britânico. Em suma, a verdade do império, ou seja, a inviabilidade essencial do semblante sob o qual ele se apresenta, é inacessível do ponto de vista do mero espectador, sem nunca deixar de existir como elemento operante da história (que o digam as resistências anticoloniais…).

Uma reflexão da mesma natureza pode ser tecida a respeito da captura mutiladora e esterilizante que a produção ideológica solidária ao capital efetua sobre aquelas objetividades e subjetividades de qualquer natureza convocadas a engrossar seu fluxo espetacular. Eu diria que a singularidade real subjacente a tudo o que existe no plano do realismo não se anula completamente pelo fato de restar excluída do senso hegemônico de realidade. Neste sentido, o real, irredutível ao realismo capitalista, assombra a própria superfície desse realismo (trata-se de um real que sussurra, na voz de alguém como Walter Benjamin, que todo documento de cultura é sempre um documento da barbárie). O real sobreviveria, então, na débil certeza – às vezes meramente intuitiva – de que continua havendo uma diferença mínima entre a apresentação do mundo, em suas infinitas possibilidades, e sua re-presentação espetacular. Trata-se, contudo, de uma diferença difícil de registrar, afirmar e realizar. A dificuldade de afirmar o caráter autêntico da diferença – situando-o na base da projeção de outro tempo e de outros modos de existência – radica na tremenda precariedade de tudo aquilo que se obstina em existir para além do realismo. Faltam anteparos materiais a priori para mantermos em presença o que não se encaixa no espetáculo de uma realidade pretensamente unívoca.

Neste quadro de análise, a depressão e a apatia, enquanto estados anímicos generalizados, não seriam nem um efeito do realismo capitalista, nem um índice do real subjacente a ele, mas sim a consequência pré-política do diagnóstico trágico de uma possibilidade real – porém fragilíssima – que aparece derrotada no momento exato em que também é percebida. Em outras palavras, a depressão seria uma afecção negativa do desejo que ocorre após este último já ter se aventurado no terreno do real, isto é, no terreno do que só pode vir a existir em detrimento de tudo o que já existe. Negada a potência de agir que o desejo apresenta ao indivíduo, sobrevém-lhe a depressão. Colocar as coisas nestes termos muda completamente o conteúdo daquela “politização” que Fisher nos prescreve como requisito para desafiarmos eficazmente o realismo capitalista. Talvez não se trate, como propõe o autor, de politizar a depressão em si mesma, sinalizando suas causas sociais, mas sim de construir o sustento material para a politização do real (im)possível cuja perda nos condena à apatia e à sensação insidiosa de que “não há alternativa”. O “fato” de termos perdido algo não é real. O real não é nada, salvo o que foi perdido. Nestes termos, o desafio seria mudar o signo da perda. Se a depressão é seu signo negativo, então a rebelião — e todas as condições organizativas que ela requer — seriam seu signo positivo. Há que rebelar-se contra tudo aquilo que nega as possibilidades reais e fugazes que o desejo consegue tanger de relance.

Em seu movimento prospectivo fundamental, o desejo é o que excede e esgota qualquer dispositivo de captura e neutralização. Ele o faz porque, mesmo tendo sido estabilizado sobre um campo limitado e deprimente de objetos de satisfação, ainda preserva sua capacidade de se projetar sobre algo realmente novo – inclusive sobre aquilo que, a simples vista, parecia ter sido suprimido ou definitivamente substituído. Talvez mais próximos de Lordon do que de Fisher, poderíamos dizer que se existe alguma esperança de suspender a captura de nossa subjetividade na aparelhagem ideológica capitalista, ela não reside na denúncia fatalista, mas sim na impugnação organizada do que nos causa sofrimento psíquico. Para tanto, em primeiro lugar, não cedamos em nosso desejo real – aquele que desconhece qualquer realismo.


Referências

Fisher, M. (2016). Realismo capitalista. ¿No hay alternativa? Buenos Aires: Caja Negra.

Lordon, F. (2015). Capitalismo, deseo y servidumbre. Marx y Spinoza. Buenos Aires: Tinta Limón.


[1] Antropólogo. Integra o Coletivo Máquina Crísica.

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1 comentário em “Nem só de realismo vive o desejo, Frédéric Lordon versus Mark Fisher.”

  1. Lavrador aquele que semeia a terra
    Aaa ,Trabalho enobrece o homem
    O orgulho e o desejo de sempre querer além do que já se tem, pode nos permitir invandir a vida alheia escrever com a enxada jorrada de sangue e imprimir sobre a terra a desordem atmosferica e desumana que por fim retira a racionalidade do ser o tornando uma terra improdutiva que dara sinais de sua deficiência no futuro.

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