Por Andy Blunden, via Ethical Politics, traduzido por João Narciso
Durante meus estudos acerca de lógica em Hegel cheguei até os textos de Andy Blunden que me abriram um novo horizonte teórico; a forma como ele trata temas complexos e, também, por ser da área de ciências exatas como eu, me aproximaram bastante da sua linguagem e pensamento. No mais, resolvi traduzir este texto em específico pois creio que seja uma leitura de introdução à Hegel interessante para quem já atua em movimentos sociais e luta objetivamente por mudanças aqui no Brasil.
Referente à tradução, algumas citações e referências foram traduzidas, por conveniência semântica, diretamente do texto original, porém grande parte das citações foram extraídas de publicações de língua portuguesa traduzidas direto do alemão, também adicionei notas de rodapé, indicando referências e explicando termos.
Gostaria de agradecer ao Andy por me oferecer todo suporte necessário para a tradução desse material.
* Andy Blunden é doutor pela University College London e Membro do Marxists Internet Archive Collective. João Narciso é estudante de Sistemas de Informação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Nesse texto extraí parte do material de meu livro recente “Hegel para Movimentos Sociais” para revisitar a controversa relação entre Marx e Hegel. Aqui baseio minhas observações sobre o que Marx escreveu referente à filosofia, metodologia e política e não o que ele próprio disse sobre sua relação com Hegel, que geralmente é polêmico e enganoso. Também não levei em conta o que Engels disse no período de popularização das ideias de Marx para os socialistas do século XIX.
A principal diferença entre Hegel e Marx é a época em que eles viveram
A diferença filosófica entre Hegel e Marx é um assunto que tem sido calorosamente debatido por mais de um século. As diferenças entre as abordagens filosóficas de Hegel e Marx serão tratados em detalhes mais adiante, mas a diferença essencial entre Marx e Hegel é o tempo e contexto em que viveram.
Dadas as peculiaridades econômicas, sociais e culturais da Alemanha nos tempos de Hegel, havia alguma base para Hegel acreditar que seria através da filosofia que a Alemanha poderia se modernizar. Hoje, isso está claramente exposto como uma posição “idealista” – por acreditar que uma transformação econômica, social e cultural poderia ser alcançada através de uma revolução filosófica, e não o contrário. Contudo, isso não invalida a posição que Hegel tomou em sua época. Após a morte de Hegel em 1831, seus alunos tomaram conclusões revolucionárias implícitas na sua filosofia. O Hegelianismo dividiu a academia enquanto seus alunos popularizavam seus ensinamentos e traduziam-no para a linguagem da política – ou mais corretamente, traduziam a política para a linguagem da filosofia hegeliana. Em 1841, o governo prussiano se mexeu para “expurgar a semente de dragão do panteísmo hegeliano” (Bunsens Berufungsschreiben an Schelling) das mentes da juventude prussiana. O recém-nomeado Ministro da Cultura mobilizou Friedrich Schelling (o último representante sobrevivente do idealismo alemão e agora um conservador) para vir a Berlim e fazer esse trabalho. Sua palestra em dezembro de 1841 contou com a participação de Engels, Bakunin, Kierkegaard e notáveis intelectuais de toda a Europa, mas evidentemente não conseguiram reprimir a expansão de ideias radicais e a agitação revolucionária que adotava a filosofia hegeliana. É um fato notável que quase todos os revolucionários dos séculos XIX e XX eram leitores de Hegel; hegelianos da segunda ou terceira geração filosófica que foram influenciados por outras figuras da filosofia alemã da época – Kant, Fichte e Schelling, mas acima de tudo Hegel – seja na forma de marxismo ou de outra corrente filosófica crítica. Portanto, Hegel não estava totalmente enganado em sua crença no poder da filosofia na política.
Quando Marx renunciou ao cargo de redator do Rheinische Zeitung em 1843, a França foi abalada por uma série de revoltas da classe trabalhadora e Paris fervilhava de fermento revolucionário, a classe trabalhadora inglesa construiu o primeiro partido de trabalhadores organizados da história (a National Charter Association) e estavam desafiando a burguesia na Grã-Bretanha, e enquanto isso uma classe trabalhadora industrial estava surgindo na Alemanha. Era óbvio que a mudança chegaria à Europa através da luta política da classe trabalhadora industrial. O desenvolvimento capitalista estava acabando com todas as antigas relações e seria a classe trabalhadora industrial que viria a liderar essa transformação. Além disso, os líderes do movimento trabalhista não estavam apenas exigindo inclusão, reforma ou substituição do governo vigente, mas sim esmagar o Estado. Isso era algo inimaginável nos dias de Hegel.
Refletindo, veremos que todas as diferenças políticas e filosóficas entre Marx e Hegel surgem das mudanças ocorridas na Europa no intervalo entre os últimos anos de Hegel e a entrada de Marx em atividades políticas radicais. Isso começou com o primeiro levante proletário em Paris no ano de 1831, ano da morte de Hegel, quando Marx tinha apenas 12 anos.
As diferenças entre Marx e Hegel são de dois tipos. Em primeiro lugar, há as diferenças políticas e, em segundo lugar, suas diferenças filosóficas. As diferenças políticas entre Marx e Hegel são mostradas em sua polêmica crítica à Hegel em Crítica da Filosofia do Direito (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie). Ao avaliar seus comentários, deve-se levar em conta que Marx ainda não havia formulado sua própria visão política e filosófica. Nos 40 anos seguintes, as visões de Marx se tornaram mais distintas.
As diferenças teóricas de Marx com Hegel devem ser divididas a partir de um estudo de sua análise socioeconômica e não pode se basear nas próprias declarações de Marx sobre sua relação com Hegel, uma vez que são polêmicas e de natureza não confiáveis. Para ressaltar as diferenças filosóficas entre esses dois autores, irei descrever as reais diferenças entre materialismo e idealismo, um problema muito mais multifacetado do que geralmente se imagina. Por fim, irei examinar Marx e Hegel no contexto de uma abordagem filosófica e metodológica mais estendida, com o propósito de tornar possível elaborar uma posição que se baseie nos pontos fortes de ambos e que seja apropriada para os nossos tempos.
Estado: Jovem Marx vs. Hegel
Na primavera de 1843, o jovem Karl Marx fez anotações críticas sobre a seção Estado [1] em Princípios da Filosofia do Direito de Hegel (embora ele faça referência a seções anteriores no seu comentário), abandonando o trabalho com desgosto na página 313, [2] enquanto Hegel parte em especulações sobre o curso da História Mundial. Nesse ponto de sua vida, Marx leu Hegel como um Feuerbachiano – isto é, criticando Hegel por inverter a relação sujeito-predicado, e muito dos seus comentários sobre as formas idealistas de argumento e expressão em Hegel são bastante ridículos e cansativos. Marx considerou quase tudo o que Hegel disse como uma racionalização do status quo. As críticas que ele fez que merecem atenção especial são as seguintes:
Marx observa como, no esquema de Hegel, o Estado reforça a hierarquia e o privilégio já existente na sociedade civil e ainda que existe uma “sociedade civil” dentro do serviço público:
As corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a burocracia é a corporação do Estado. Por isso, na realidade, ela se defronta, na condição de “sociedade civil do Estado”, com o “Estado da sociedade civil”, com as corporações. Lá onde a “burocracia” é um novo princípio, onde o interesse universal do Estado começa a se tornar para si um interesse “a parte” e, com isso, “real”, ela luta contra as corporações com toda consequência, luta contra a existência de seus pressupostos. Em contrapartida, tão logo a vida real do Estado desperta e a sociedade civil se liberta das corporações a partir de um impulso racional, a burocracia procura restaurá-las, pois, desde o momento em que cai o ‘Estado da sociedade civil’, cai também a ‘sociedade civil do Estado’ (MARX, 2010, p. 65).
Esta passagem é seguida por uma crítica prolongada ao burocratismo e a hierarquia, sobre o qual Hegel confia na racionalidade do Estado – o funcionário público “é como um martelo vis-à-vis com os que estão abaixo e como uma bigorna em relação aos que estão acima” e seu cargo é de fato substancial e também seu ganha pão.
Tudo bem, exceto que Hegel estabelece educação direta em pensamento e conduta ética contra o mecanismo de conhecimento e trabalho burocrático! O homem dentro do funcionário público supostamente deve proteger o funcionário público contra si mesmo. Em outras palavras, Marx considera que a crença de Hegel no papel progressivo da função pública é uma ilusão idealista – todas as formas de burocracia e hierarquia levam à opressão.
Marx critica o papel mediador que Hegel atribui aos Estados:
Os estamentos protegem o Estado da turba inorgânica apenas por meio da desorganização dessa turba. Mas os estamentos devem, ao mesmo tempo, fazer a mediação de tal forma que os interesses particulares das comunas, corporações e dos indivíduos não se isolem. Ao contrário, eles fazem a mediação: 1) transigindo com o interesse do Estado, 2) sendo eles mesmos o isolamento político desses interesses particulares; esse isolamento como ato político, já que, por meio dos estamentos, esses interesses isolados alcançam o grau de interesse universal. Finalmente, os estamentos devem fazer a mediação contra o isolamento do poder soberano como um extremo (que, assim, apareceria como simples poder dominante e como arbítrio). Isto está correto na medida em que o princípio do poder soberano (o arbítrio) é limitado pelos estamentos, ou, ao menos, pode mover-se apenas dentro de entraves, e enquanto os próprios estamentos se tornam membros e cúmplices do poder soberano (MARX, 2010, p. 86).
Marx afirma que esse arranjo visa impedir que as pessoas formem uma vontade organizada, em vez de dar ao povo um meio de expressar essa vontade de participação, o governo transforma o partido político de um instrumento para a representação do povo em um meio para controle pelo Estado.
Marx rejeita com desprezo a “dedução” de Hegel de primogenitura e monarquia: “Hegel realizou a proeza de desenvolver, a partir da Ideia absoluta, os pares por nascimento, o bem hereditário etc. etc., este sustentáculo do trono e da sociedade” (p. 94) e rejeita ainda a demissão de Hegel de uma “constituição representativa”, isto é, sufrágio universal. Ao considerar as mediações complexas que Hegel cria entre os vários direitos civis, Marx comenta exasperado:
O príncipe deveria, por conseguinte, fazer-se, no poder legislativo, de termo médio entre o poder governamental e o elemento estamental; porém, o poder governamental é justamente o termo médio entre ele e a sociedade estamental, e esta é o termo médio entre ele e a sociedade civil! Como deveria ele mediar aqueles de quem ele tem necessidade, como seu termo médio, para não ser um extremo unilateral? Aqui se evidencia todo o absurdo desses extremos, que desempenham alternadamente ora o papel de extremos, ora o de termo médio. São cabeças de Jano, que ora se mostram de frente, ora de costas, e que de frente têm um caráter diverso do de costas. Aquilo que se determina primeiramente como termo médio entre dois extremos comporta-se, então, ele mesmo, como extremo, e um dos dois extremos, que através daquele era mediado com o outro, mostra-se, agora, como extremo (porque em sua distinção com o outro extremo) entre o seu extremo e o seu termo médio. É uma complementação recíproca. Tal como um homem que se encontra entre dois litigantes e, então, um destes, por sua vez, coloca-se entre o intermediário e o outro litigante. É a história do homem e da mulher que brigavam e do médico que queria servir de conciliador entre eles, com o que, então, a mulher devia se colocar entre o médico e o marido e, este, entre a mulher e o médico (MARX, 2010, p. 104).
No decorrer de uma longa crítica contra a obsessão de Hegel pela mediação, Marx diz:
Extremos reais não podem ser mediados um pelo outro, precisamente porque são extremos reais. Mas eles não precisam, também, de qualquer mediação, pois eles são seres opostos. Não têm nada em comum entre si, não demandam um ao outro, não se completam. Um não tem em seu seio a nostalgia, a necessidade, a antecipação do outro (MARX, 2010, p. 105).
É claro que isso não pode ser comparado às visões posteriores de Marx sobre a burguesia e o proletariado, mas seu significado político é claro: a dominação do proletariado pela burguesia não precisa ser mediada, mas derrubada, e o Estado não é de fato um mediador, mas um instrumento de opressão.
Hegel e Marx sobre o sufrágio universal
Hegel defende consistentemente formas de representação altamente mediadas e contra o sufrágio universal. Marx responde apontando que as críticas válidas de Hegel estão evitando a questão principal:
A questão sobre como a sociedade civil deve tomar parte no poder legislativo, que ela ingresse nele por meio de deputados, ou que “todos singularmente” participem de forma direta, é ela mesma uma questão no interior da abstração do Estado político, ou no interior do Estado político abstrato; é uma questão política abstrata. (MARX, 2010, p. 131).
E:
Não se trata, aqui, de determinar se a sociedade civil deve exercer o poder legislativo por meio de deputados ou todos singularmente, mas se trata, sim, da extensão e da máxima generalização possível da eleição, tanto do sufrágio ativo como do sufrágio passivo. Esse é o ponto propriamente controverso da reforma política, tanto na França quanto na Inglaterra. (MARX, 2010, p. 134).
Marx não oferece soluções para esse problema, mas faz uma crítica prolongada à Hegel, que traz à tona as contradições inerentes à sua construção de políticas representativas. Em outros lugares, Marx ressalta que na França o sufrágio universal havia sido usado contra a classe trabalhadora urbana, utilizando o peso do campesinato, enquanto na Grã-Bretanha o sufrágio universal era a demanda central da classe trabalhadora emergente. Sem enfrentar os problemas levantados por Marx, Hegel elabora um poderoso argumento contra o sufrágio universal.
Ainda a propósito da eleição por grande número de indivíduos, pode observar-se que, nos grandes Estados, necessariamente se dará a indiferença pelo sufrágio, que terá um aspecto insignificante para a massa e, embora se apresente o direito de voto como algo de muito elevado, os eleitores não comparecerão ao escrutínio. Tal instituição é assim contrária aos fins a que visa e a eleição cai nas mãos das minorias, dos partidos, portanto de um interesse particular contingente que é, precisamente, o que devia ser neutralizado (HEGEL, 1997, p. 286).
Marx não teve a resposta para esse problema com antecedência e teve que esperar a própria classe trabalhadora mostrar o seu caminho na Comuna de Paris. Segundo Hegel, os deputados do Legislativo têm a ver com os vários ramos da sociedade, e o eleitorado não deve ser visto como uma multidão de átomos (HEGEL, 1997, p. 279). Os deputados devem representar os vários grupos reais da sociedade e tratá-los com igualdade. O sufrágio universal, pelo contrário, exige que todos os indivíduos votem em particular, como um átomo isolado. Hegel pressagia uma preferência no movimento dos trabalhadores, observou Marx, para que os delegados ao legislativo sejam selecionados a partir de organizações reais do local de trabalho ou da comunidade local, como os soviéticos.
Hegel acreditava que o público deveria ser educado em assuntos nacionais, e ele vê as assembleias dos Estados como o meio de conseguir isso, enquanto a discussão política “ao lado do fogo com sua esposa e seus amigos” nunca pode ser melhor do que “construir castelos para o céu” [3]. A participação em assembleias é essencial para a educação política, e isso só pode ser alcançado nos órgãos mediadores entre as associações da sociedade civil e a legislatura.
“Opinião pública” é o nome dado aos “indivíduos… por terem e expressarem seus próprios julgamentos, opiniões e recomendações particulares sobre assuntos de Estado”. A opinião pública é, portanto, “um repositório de necessidades genuínas e tendências corretas para a vida comum”, mas “infectada por todos os acidentes de opinião, por sua ignorância e perversidade, por seus erros e falsidade de julgamento”, e Hegel cita Goethe: “as massas são mãos respeitáveis na luta, mas mãos infelizes no julgamento”.
Em sua preferência pela democracia participativa mediada por partidos políticos e organizações baseadas no trabalho, Hegel está próximo das posições do socialismo democrático moderno.
Você, Marx e Hegel no Estado
A Filosofia do Direito de Hegel contém erros, no entanto é um projeto exemplar em sua intenção e método. A reconstrução crítico-lógica do Estado de Hegel foi concebida como um elemento de um programa de reforma, dirigido contra a monarquia absoluta reacionária que governava a Prússia na época, e que, como tratado filosófico, teria um significado duradouro. É uma reconstrução crítico-lógica assim que qualquer revolucionário deveria estar interessado em fazer atualmente.
Muita coisa mudou desde que o livro foi escrito em 1821. Em particular, o principal eixo da luta de classes não é mais aquele entre a aristocracia fundiária e a burguesia urbana (embora a contradição entre as comunidades rurais e urbanas persista), mas entre uma classe trabalhadora globalizada, agora amplamente fragmentada pelos processos modernos de trabalho e estratégias anti-sindicais do governo, e uma burguesia que desfruta de uma concentração de riqueza anteriormente inimaginável.
Considerando que Hegel podia ver o Estado como uma arena de luta pelo domínio na sociedade civil, hoje muitos de nós consideramos que a classe dominante na sociedade civil (agora a burguesia) utiliza o Estado como um instrumento para a supressão de organizações e de revoltas espontâneas contra a exploração capitalista. O terreno já estava mudando quando Hegel morreu em 1831, e agora faz mais de 135 anos desde a morte de Marx, e a natureza do processo de trabalho e, portanto, da classe trabalhadora também mudou drasticamente.
A ideia fundamental do livro, como apresentada no Prefácio, permanece, em minha opinião, totalmente convincente – precisamos entender o que é racional no Estado político existente, isto é, historicamente necessário e, portanto nesse sentido, progressivo, e entender o que no Estado existente é irracional e merece perecer.
Vamos analisar alguns dos principais erros de Hegel.
A misoginia de Hegel
A “dedução” altamente misógina sobre o lugar das mulheres na sociedade é um indicador do perigo de considerar natural qualquer fenômeno social e de ignorar os protestos daqueles que estão sofrendo injustiça. Todos os fenômenos sociais e históricos são construídos pela atividade humana e podem ser feitos de outra maneira que não são. Tudo é como é por razões inteligíveis, sociais, culturais ou políticas. No momento em que Marx escrevia seus trabalhos maduros, graças à luta das primeiras feministas e de pesquisas antropológicas, estava bem estabelecido que as diferenças de gênero eram sociais e Marx entendeu o que Hegel deveria ter entendido, mas não o fez.
O fracasso de Hegel em enxergar a contradição no valor de troca
Hegel estava plenamente ciente das crescentes contradições geradas pelo mercado, mas enquanto Marx foi capaz de revelar as raízes dessas contradições na forma de valor da mercadoria, Hegel parou de analisar a contradição que sua própria análise expôs.
Hegel já havia derivado o conceito de “valor” na seção sobre propriedade, e especificamente na seção Uso, de modo que o valor foi tomado ingenuamente como uma medida da utilidade de uma mercadoria. Embora ele visse o valor de um produto como condicional à capacidade de trocá-lo, o valor não é quantitativamente determinado na seção sobre troca. Da mesma forma, nesta seção, Hegel diz que é o trabalho que confere valor aos produtos da Natureza e que “são produtos do esforço humano que o homem consome”; portanto, o valor é condicionado pelo fato de que o objeto é um produto do trabalho. Mas ele ainda vê a medida do valor como determinada exclusivamente pela utilidade. Hegel reconheceu o sistema de Necessidades e Trabalho como um processo de abstração e medida reais, mas não utilizou o que foi desenvolvido nessa parte de sua Lógica para revelar a dinâmica da sociedade burguesa. Marx sim.
A superficialidade do tratamento de valor econômico por Hegel foi criticada por Marx. As contradições da sociedade burguesa que gerava desigualdade cada vez maior encaravam Hegel de frente, mas tudo o que Hegel podia fazer era descrevê-las e lamentar. Marx levou tempo para mostrar como essas patologias estavam enraizadas no conceito de valor. O Movimento de Libertação das Mulheres precisou de pelo menos uma década e de milhares de obras de escritoras feministas para expor as raízes sociais da opressão das mulheres. A crítica da economia política foi o trabalho da vida de Marx e ele escreveu levando em consideração o contexto do capitalismo na Grã-Bretanha e o poderoso movimento de trabalhadores industriais que se alastrava por toda a Europa. A resolução crítica de problemas como a opressão das mulheres ou a exploração do trabalho assalariado não são tarefas que podem ser feitas de maneira indireta através das reflexões de um único escritor. A verdadeira conquista de Hegel foi sua lógica, e é esse trabalho que realmente está de certa forma suportando seu tratamento relativamente superficial de muitos dos problemas que surgiram em Princípios da Filosofia do Direito. Hegel está plenamente consciente do efeito expansivo e revolucionário da economia de mercado (essencialmente pelos processos de trabalho burguês) sobre o Estado e a vida social como um todo, mas ele aceitou a crença dos economistas políticos de que, no mercado, a “busca por satisfação pessoal se transforma em uma contribuição para a satisfação das necessidades do outro”. A participação na sociedade civil desenvolve o hábito do trabalho e promove uma gama infinita de habilidades e uma crescente compreensão de “como o mundo funciona”. Mas a divisão do trabalho torna o trabalho de cada indivíduo cada vez menos complexo e torna as pessoas cada vez mais dependentes uma das outras.
“A abstração da produção leva a mecanizar cada vez mais o trabalho e, por fim, é possível que o homem seja excluído e a máquina o substitua” (HEGEL, 1997, p. 178).
Hegel explorou várias soluções para esse crescente problema social – filantropia, uma renda universal básica garantida pelo Estado, esquemas de criação de empregos e particularmente emigração para as colônias, mas rejeitou de imediato a opção de propriedade comum dos meios de produção. Hegel não percebeu que, quando os meios de produção têm caráter inteiramente social, o papel emancipatório básico da propriedade privada não pode ser estendido – da propriedade do corpo, dos objetos pessoais e domésticos e das ferramentas do comércio – aos meios sociais de produção em si. Hegel provou que o ar e a água não podem ser propriedade privada, mas falhou em utilizar a mesma lógica para ver que os meios de produção industrial também não podem.
Sufrágio universal e democracia participativa
A demanda por sufrágio universal era um daqueles direitos que vinham crescendo no solo da sociedade moderna, pelo menos desde a Revolução Inglesa da década de 1640, mas que, como a demanda pela emancipação das mulheres e a demanda por liberdade da exploração do trabalho assalariado, foi taxada por Hegel como “construir castelos para o céu”, ou seja, utópico. Contudo, certamente sabemos agora que essas demandas são as precursoras das grandes lutas sociais que estariam por vir. Hegel não percebeu que as aspirações utópicas não são meramente “castelos no céu” que surgem em conversas à beira do fogo, mas o produto de processos sócio-históricos reais e precursores do que estaria por vir. O ‘direito de voto’ é entendido como um direito que se estende a todas as pessoas, como Direito Abstrato, mas que claramente faz parte do Estado e não do Direito Abstrato ou da Sociedade Civil. Ao contrário dos tipos de “direitos” pelos quais a Sociedade Civil é responsável, não é um “direito individual” – que depende das circunstâncias e exigências econômicas de uma pessoa, mas um “direito humano”. Levando em conta a estrutura de Princípios da Filosofia do Direito, isso é uma contradição em termos. Apesar de todas as críticas feitas por Hegel ao sufrágio universal, críticas que foram amplamente compartilhadas pelos marxistas e, caso possa acreditar nas pesquisas de opinião compartilhadas hoje em dia, pela maioria dos próprios eleitores, é impossível conceber uma ‘república socialista democrática ‘(ou o que você quiser chamar o tipo de Estado a que aspira) que não inclui, como marcador de cidadania – um direito universal de voto. Não importa que o sufrágio universal seja usado, juntamente com a propriedade privada dos meios de comunicação e meios de produção, como um meio de manipular as massas e perpetuar os sistemas de exploração. Como Marx (1848) colocou no Manifesto Comunista: “o primeiro passo para revolução proletária é elevar a classe trabalhadora à posição de classe dominante, para assim vencer a batalha pela democracia”. Se você não pode vencer uma eleição geral, certamente não pode tomar o poder de Estado, muito menos organizar a expropriação de capital. Hegel nos mostrou como o papel político da Coroa se afasta do Chefe do Executivo e do Comandante em Chefe, para um oficial clerical que assina documentos oficiais nas cerimônias, um símbolo vivo sem função social, à medida que o Estado se torna mais maduro e estável e o nível cultural das massas aumenta. Nesta concepção do desaparecimento do papel da Coroa para um papel puramente simbólico, Hegel pressupõe a concepção de Marx do desaparecimento do próprio Estado, ao mesmo tempo em que afirma que o Estado é “a marcha de Deus na Terra”. A mesma noção se aplica a todas as instituições do Estado. O sufrágio universal não pode ser abolido (exceto para instaurar despotismo), mas deve ser transcendido.
Em que sentido Hegel era um idealista?
Quase todo tratamento da relação Marx-Hegel depende de uma caracterização do materialismo versus idealismo. Isso pode ser enganoso, porque nem o idealismo nem o materialismo podem ser adequadamente definidos ao longo de um único eixo, muito menos no mesmo eixo.
(a) Hegel se descreveu como um idealista
Hegel foi o produto final do movimento filosófico conhecido como “idealismo alemão”, que surgiu na Alemanha em resposta à filosofia crítica de Immanuel Kant. Kant pretendia resolver o impasse entre o empirismo britânico e o racionalismo francês. Essas correntes filosóficas foram impulsionadas por problemas que surgiram do rápido desenvolvimento das ciências naturais desde Galileu, principalmente a natureza da realidade e as fontes e limites do conhecimento humano da Natureza. Kant havia proposto que algo existia “em si”, mas os seres humanos poderiam ter conhecimento apenas dos fenômenos, isto é, aparências, enquanto a natureza da coisa em si mesma permaneceu além da experiência e incognoscível. A abordagem de Kant gerou muitos dualismos e contradições preocupantes, e os idealistas alemães tentaram resolver essas contradições concentrando-se em formas de conhecimento, em vez de especular sobre a natureza de uma realidade fora da prática humana, que era a preservação dos materialistas. Hegel coloca desta maneira:
A proposição de que o finito é ideal constitui idealismo. O idealismo da filosofia consiste em nada além de reconhecer que o finito não tem um verdadeiro ser. Toda filosofia é essencialmente um idealismo ou, pelo menos, tem idealismo para seu princípio, e a questão então é apenas até que ponto esse princípio é realmente realizado. Uma filosofia que atribuísse um ser verdadeiro, último e absoluto à existência finita como tal, não mereceria o nome de filosofia; os princípios das filosofias antigas ou modernas, água ou matéria ou átomos são pensamentos, universais, entidades ideais, não coisas que se apresentam imediatamente para nós,… de fato, o que é, é apenas um todo concreto do qual os momentos são inseparáveis (HEGEL in Ciência da Lógica).
Portanto, os materialistas arquetípicos eram os atomistas gregos antigos – tudo, inclusive vida humana, foi o resultado de interações entre átomos. O materialismo moderno, que surgiu depois de Hegel, tem um conceito mais amplo da realidade material que inclui as relações sociais, mas os materialistas anteriores tendiam a ser cegos para a formação social do conhecimento e da consciência. Foram os idealistas, em particular Hegel, que descobriram o caráter social da consciência e do conhecimento, não os materialistas. No entanto, os idealistas não fizeram formas de praticar explicitamente o objeto de seus sistemas; em vez disso, tomaram as “sombras” da atividade real – categorias lógicas, conceitos, ideias etc., como assunto justificando sua descrição de “idealistas”. Uma leitura crítica de Hegel mostrará, no entanto, que o conteúdo dessas formas ideais é uma forma de atividade.
Nem todas as formas de idealismo são iguais. Em particular, Hegel distingue entre idealistas subjetivos como o bispo Berkeley e idealistas objetivos, como ele e Schelling. Ou seja, para Hegel, as formas de pensamento não eram quimeras que existiam apenas dentro de sua cabeça, mas existiam objetivamente, na atividade e na cultura material, independentemente de qualquer indivíduo, e que os indivíduos adquiriram no curso de suas atividades.
b) Hegel enfatizou o lado ativo ao invés de contemplação passiva
A primeira expressão do marxismo – a tese 1 das teses de Marx sobre Feuerbach – é referindo-se a Hegel em particular quando se fala em “idealismo”:
O defeito fundamental de todo materialismo anterior – inclusive o de Feuerbach – está em que só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto ou da percepção, mas não como atividade sensorial humana, como prática, não de modo subjetivo. Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo, mas apenas de modo abstrato, já que o idealismo, naturalmente, não conhece a atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente diferentes dos objetos de pensamento; mas tampouco concebe a atividade humana como uma atividade objetiva… (MARX, 1982, s.p).
Os idealistas não apenas viam a percepção como um processo ativo, mas também viam a interpretação da experiência de alguém, como você concebeu e reagiu a uma situação, como um processo ativo. O contraste com a atitude materialista em relação à formação social dos seres humanos é apresentado na “Tese 3”:
A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade… (MARX, 1982, s.p).
Por outro lado, vemos que Marx criticou os filósofos por meramente interpretar o mundo em vez de tentar mudá-lo, em parte porque “o idealismo não conhece a atividade real e sensitiva como tal”, preocupando-se mais com conceitos do que com atividades – as sombras do que com a própria atividade real. Assim, Marx nos apresenta a contradição de que são os idealistas que se basearam na luta para mudar a realidade como fonte de conhecimento da realidade, em vez de contemplar passivamente a realidade como os materialistas. Mas, como todos os filósofos profissionais, eles apenas “interpretaram” o mundo, em vez de agir para mudá-lo.
No geral, as teses de Marx sobre Feuerbach são uma defesa do idealismo de Hegel.
(c) Hegel levou a elite social a ser a agente da mudança
Tendo testemunhado uma mudança social na Grã-Bretanha graças à industrialização e na França graças à guilhotina, Hegel esperava uma revolução menos traumática e caótica na Alemanha, que seria liderada pelos professores da elite social – filósofos, monarcas esclarecidos e um serviço público meritocrático, em vez da destruição cega causada por turbas e proprietários de fábricas. Embora apoiasse o direito dos escravos e das nações oprimidas de expulsar seus opressores, ele queria que sua Alemanha natal atingisse a modernidade através da perfeição de um Estado que garantiria as liberdades de seus cidadãos. Ele via os Estados como garantidores da liberdade, não como instrumentos de opressão e se opunha resolutamente a métodos destrutivos e revolucionários para alcançar o progresso social. Ele considerava os pobres e a classe trabalhadora incapazes de serem agentes do progresso social que não fosse o da educação gradual – sua miséria era um problema social que só poderia ser resolvido com a intervenção de uma elite iluminada.
Quando um processo de trabalho é aprimorado, é graças ao supervisor que cria o método ou a melhoria está implícita no próprio processo de trabalho, para que possamos creditar aos trabalhadores e não ao supervisor a melhoria? Quando um problema social é resolvido com a aprovação de uma nova lei, creditamos aos parlamentares que aprovaram a nova lei ou a demanda por mudanças geradas pelo sofrimento? Chegamos a um mundo melhor por (pelo menos algumas) pessoas formando uma imagem desse mundo melhor e depois lutando por ele, ou o mundo melhor surge de contradições inerentes ao atual estado de coisas que levam as pessoas a agirem independentemente de não poderem prever o resultado? Chamamos de “idealistas” essas pessoas que pensam que a classe social cujo negócio são planos e ideias é o agente da mudança, ao invés das massas que representam essas ideias. Chamamos de “materialistas” essas pessoas que vêem a mudança social surgindo diretamente das condições de vida, tendo as pessoas comuns como seus agentes (geralmente) inconscientes. Mas lembre-se da Tese 5 citada acima: se, como materialistas, vemos as pessoas como produtos de suas condições sociais, então as reduzimos a objetos passivos de mudança, deixando a consciência da mudança para a intelligentsia ou o Partido. Hegel e os idealistas erraram o lado da mudança, de cima para baixo, mas o foco exclusivo na mudança de baixo é igualmente equivocado, porque faz das pessoas objetos passivos das forças estruturais fora de seu controle.
d) Hegel acreditava que as instituições tendem a ser fiéis ao seu conceito
Qualquer pessoa reconhecerá que, ao longo dos anos, os automóveis concordaram melhor com seu conceito do que antes, transportando passageiros para o destino desejado em conforto sem quebrar; da mesma forma, as máquinas de lavar tornaram-se cada vez mais propensas a lavar suas roupas e não destruí-las desde que foram inventadas pela primeira vez em 1908. Hegel acreditava que essa ideia, que foi chamada de “essencialismo normativo”, se aplica tanto a instituições sociais quanto a artefatos úteis e é crucial para sua filosofia social. Embora os Estados se originem na violência, segundo Hegel, o conceito de Estado é Liberdade – liberdade do crime, fome e ataques externos, liberdade para o desenvolvimento pessoal e o gozo da cultura. Ou seja, um conceito que vale a pena, uma vez criado, tenderá a se realizar de formas cada vez mais perfeitas e só entrará em crise quando seu conceito não fizer mais sentido. Nesse sentido, Hegel vê a lógica das ideias e conceitos como a força motriz da história. Marx respondeu:
A História não faz nada, “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não luta nenhum tipo de luta”. Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a “História”, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos (MARX, 2003, p. 111).
Marx aqui está expressando uma posição materialista, na qual as pessoas não devem ser vistas como cativas de ideias, mas como atores reais. Mas se Marx não deve ser acusado de voluntarismo, devemos levar em conta seu aforismo:
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos (MARX, 2011, p. 25).
O que é “transmitido do passado” – as instituições, símbolos e crenças, as normas construídas por um povo ao longo dos séculos – se desenrola de uma maneira habilmente descrita por Hegel com sua filosofia dialética idealista. Mas como as pessoas fazem uso dessas condições nem sempre é lógico; as pessoas nem sempre fazem o que têm que fazer, por assim dizer, por isso a insistência de Marx de que a realização de uma ideia é uma questão de luta é uma importante correção à visão idealista da história que se desenrola de acordo com princípios racionais e inteligíveis. No entanto, permanece o fato de que o idealismo de Hegel é um poderoso princípio do desenvolvimento histórico e, historicamente, sempre foram os idealistas que enfatizaram a ação humana na mudança social.
(e) Hegel minimiza o efeito das relações mundanas nas instituições
Como discutido acima, em sua Filosofia do Direito, Hegel às vezes é incrivelmente ingênuo: ele pensa que o serviço público é uma meritocracia que serve ao bem público, e nem sequer considera que os funcionários públicos se cuidem como todos os outros; não lhe parece importante a forma como os juízes são nomeados ou de que classe social são designados, porque é o conceito deles de aplicar a lei a casos individuais, e não mais seu próprio interesse de classe ou agenda política; o fato de o monarca constitucional, como o proprietário tradicional da terra, ser uma pessoa extremamente rica, não causa a Hegel muita expectativa de que seu julgamento possa ser prejudicado por sua riqueza. Marx ridiculariza esse idealismo, comentando ironicamente: “O homem dentro do funcionário público deve proteger o funcionário público contra si mesmo” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843), observando que uma “sociedade civil” necessariamente opera dentro do serviço público.
Hegel parece pensar que os funcionários irão agir de acordo com a descrição de seu trabalho; Marx não acredita nisso. Todo mundo sabe que a estrutura de remuneração determina as ações de um funcionário com muito mais eficácia do que a declaração de missão da organização. Nos EUA, todos parecem aceitar que os juízes da Suprema Corte agem de acordo com sua própria agenda política e que se pode confiar nos tribunais inferiores para discriminar os afro-americanos. No entanto, na maioria dos países desenvolvidos, apesar do fato de os juízes serem sempre selecionados da parte mais privilegiada da sociedade, a lei geralmente se desenvolve e é aplicada de maneira racional, digna de ser escrita nos livros de direito, em vez de ser uma expressão nua de preconceito de classe. Além disso, quando são tomadas decisões que são expressões de preconceito de classe, há indignação pública, apelos e pressão política, e mesmo que demore séculos, há algum mérito no aforismo: “A verdade sairá.” À longo prazo, o idealismo de Hegel, nesse sentido, costuma ter mais mérito do que um materialismo cínico sugere.
f) Hegel superestimou a razão especulativa em relação ao próprio processo social
Hegel publicou pela primeira vez sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas em 1817. Neste trabalho monumental, ele pretendia prefigurar (entre outras coisas), em linhas gerais, todo o desenvolvimento da ciência natural. Contudo, a ciência natural não progrediu ao escrever enciclopédias cada vez mais perfeitas e abrangentes; em vez disso, indivíduos e grupos se esquivavam de problemas estritamente definidos, o tempo todo sem qualquer visão sofisticada do todo e, gradualmente, ao longo das décadas, os fios separados cada vez mais entraram em contato um com o outro e, com o tempo, através de um processo aparentemente objetivo, visões científicas gerais viáveis começaram a surgir. Cada linha de pesquisa foi influenciada pelas descobertas, teorias, técnicas e ferramentas produzidas pelos outros; o escopo, a complexidade e a interconectividade da atividade humana se desenvolviam cada vez mais, lançando novas ideias, novas técnicas, novas teorias, novas formas de experimento, infinitas novas possibilidades, muito além da capacidade de uma única mente planejar ou prever. Todo insight, toda descoberta, é o produto de uma mente humana, mas o processo como um todo é um gigantesco processo social em todo o mundo.
A cada momento, a mais recente descoberta resultante do desdobramento interminável da prática humana é inteligível à luz do que foi antes, do que já foi descoberto. Mas quem pode dizer qual será a próxima descoberta? Quando Marx escreveu o Manifesto Comunista, deixou muitas questões por resolver. Uma delas era a questão de saber se o movimento dos trabalhadores poderia tomar o poder e como eles usariam esse poder. Marx não tentou resolver isso com antecedência. Ele teve que esperar até que a Comuna de Paris demonstrasse o que o movimento operário faria. Ele então alterou o Manifesto de acordo – acrescentando ao Prefácio de 1872 ao Manifesto as palavras: “Uma coisa foi provada especialmente pela Comuna”, que “a classe trabalhadora não pode simplesmente se apossar do maquinário estatal já pronto e usá-lo para seus próprios propósitos”.
Da mesma forma, ao escrever O Capital, Marx tomou como ponto de partida não o conceito de valor como tal, mas a forma social mais simples na qual o valor foi manifestado, a troca de mercadorias. Morando na Inglaterra, na época o país capitalista mais avançado, foi possível observar o desdobramento da relação de valor da prática de troca de mercadorias. Um “conceito de valor” era observável nos escritos dos economistas políticos, mas a troca de mercadorias é um ato real que pode ser testemunhado e apreendido visceralmente por qualquer pessoa. Ele poderia tornar o desenvolvimento do capital inteligível por meio de sua análise da troca, mas ele fez apenas previsões mais gerais e qualificadas de onde ele se dirigia, com base em sua visão clara de onde estava no momento. Mas ele não podia prever as sucessivas transformações do capital que fluíram pela economia após sua morte, e Marx sabia disso. Mas compare a análise de Marx com a análise ingênua do valor de Hegel mencionada acima. Como idealista, Hegel acreditava falsamente que a lógica lhe permitiria prever o que ainda estava fora da experiência social. Dado que ele estava escrevendo em 1817, antes do experimento de Michelson-Morley, do microscópio e das descobertas de Darwin e do surgimento da investigação científica natural durante o século 19, é óbvio para nós que o projeto da Enciclopédia era insustentável. Somente o próprio processo social como um todo pode dar certo e revelar o conteúdo real de um conceito; essa percepção está disponível para o teórico na medida em que ele pode observar e tornar inteligível o que existe ou já está, pelo menos, no processo de desenvolvimento. Esta é a diferença entre Idealismo e Materialismo em termos de método.
Virando Hegel de cabeça para baixo
O aforismo de Marx é válido: “Meu método dialético não é apenas diferente do hegeliano, mas é o seu oposto direto… Com ele, ele está de pé sobre sua cabeça. Ele deve ser virado para cima novamente” [4].
Mas, sem explicação, é um pouco inútil para a compreensão, muito menos para usar a dialética de Marx. Primeiro, considere esta crítica que Marx apontou para Hegel:
O todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação (MARX, 2011, pg. 79).
O “sujeito real” é prática social. Uma forma de prática social não pode ser observada e tornada inteligível por um teórico até que ela venha a existir. O progresso do conhecimento tem a aparência de uma realização do pensamento, mas, na verdade, é o verdadeiro progresso da prática social, subsequentemente “refletido” nas teorias dos filósofos sucessivos. (A intervenção prática na prática social, em vez de na “reflexão”, oferece um escopo mais amplo para a compreensão de um fenômeno natural ou social.) Agora isso está implícito nos conselhos de Hegel no Prefácio de Princípios da Filosofia do Direito sobre a coruja de Minerva voando somente ao entardecer, mas Marx leva a sério esse conselho, enquanto Hegel estava muito inclinado a acreditar que a elite intelectual da sociedade (inclusive ele próprio) poderia usar a lógica especulativa para teorizar antes do desenvolvimento real. O idealismo de Hegel também se reflete no fato de que Hegel sempre procurou a elite intelectual e social para resolver problemas sociais e considerou as massas como uma força mais ou menos destrutiva da Natureza, enquanto Marx, por outro lado, considerava os trabalhadores o veículo de progresso social. Essa orientação para a “terra” e não para as “estrelas” é como eu interpreto “virando Hegel para cima novamente”.
Conceitos são formas de atividade e o “Espírito” de Hegel pode ser interpretado como atividade humana. O parágrafo de Marx que acabamos de citar mostra que Marx assumiu a mesma posição. Há muita coisa nos escritos de Hegel que torna difícil acreditar que também não via dessa maneira, mas o que quer que estivesse em sua mente, ele sempre escrevia como se fossem as entidades espirituais que eram o componente principal e a ação humana meramente derivada. De fato, todo o seu estilo de escrita pode ser descrito como “idealista”. No entanto, ideias e atividades são inseparáveis e qualquer teoria que se baseia em uma e não na outra é insustentável. A maneira como gostaria de explicar a relação entre Marx e Hegel é mediar a relação entre eles com a “Ciência romântica” de Goethe.
Goethe, Hegel e Marx.
Durante sua Jornada Italiana (1787/1862) e em correspondência com seu amigo Johann Gottfried Herder, o grande naturalista e poeta Johann Wolfgang von Goethe, chegou ao conceito de Urphänomen observando a variação das plantas em diferentes altitudes e latitudes. Cada planta, ele acreditava, era uma realização de acordo com as condições, de uma forma subjacente que ele chamava de Urpflanze. Essa ideia foi inspirada no Schwerpunkt de Herder – o “ponto forte” de um povo, sua experiência ou indústria definidora, que (nas palavras de Marx) “é uma iluminação geral que banha todas as outras cores e modifica sua particularidade”. O Urphänomen era o exemplo particular mais simples de um processo ou organismo complexo que exibia as características essenciais do todo. Assim, em um exemplo simples, sensitivamente percebido, alguém poderia entender o todo como uma Gestalt e esse Urphänomen forneceria o ponto de partida para toda uma ciência. Hegel e Goethe morreram pouco antes dos microscópios desenvolverem energia suficiente para revelar a microestrutura de plantas e animais e do descobrimento da célula. Goethe nunca poderia imaginar o que o microscópio revelaria, mas o Urphänomen antecipou a célula, que, juntamente com a evolução pela seleção natural, lançou as bases da biologia moderna.
Hegel creditou explicitamente a Goethe essa descoberta como inspiração para seu próprio método, que começa no Conceito Abstrato, o conceito mais simples, a “célula germinativa” que fornece à ciência seu ponto de partida, dado a ela de fora da própria ciência. Para Hegel, esse “Ur-conceito” não poderia ser o produto da intuição intelectual como era para o “empirismo delicado” de Goethe, mas, pelo contrário, era um produto de pensamento crítico. Hegel construiu seu sistema inteiro a partir dessa ideia do desenvolvimento lógico de uma ciência concreta a partir de um simples abstrato “Urconcept” (esse é termo é meu, não o de Hegel). Hegel descreveu esse método na seção intitulada “Cognição” em Ciência da Lógica. Para Marx, o ponto de partida não era um conceito abstrato, mas uma forma elementar de prática social, uma Urpraxis. Vamos ver como isso funcionou com a obra da vida de Marx: O Capital.
O Capital de Marx e A Lógica de Hegel
Em seu primeiro rascunho de uma crítica da economia política, Grundrisse, na passagem “Método da Economia Política”, Marx se comprometeu a pesquisar o programa modelado na lógica de Hegel, e em 1859 ele havia decidido trocar de mercadorias como a “Urpraxis” da economia política burguesa, e realizou essa ideia na conclusão do Volume I de O Capital (1996/1867). Antes de traçar esse desenvolvimento em O Capital, vamos traçar a jornada filosófica de Marx até sua apropriação crítica da Lógica de Hegel exibida em O Capital.
Atividade e Conceitos
Nas primeiras palavras que pertencem a suas visões maduras, Marx critica o materialismo filosófico por aceitar o ponto de vista da ciência natural: o de um observador contemplando um objeto existente de forma independente. Os objetos existem, distintos do pensamento; no entanto, é apenas graças à atividade “prática-crítica” que o objeto é percebido e reconstruído no pensamento. Marx insistiu que nem o pensamento abstrato nem a percepção sensorial formam o objeto da ciência, mas a atividade. Por “atividade” (ou “prática” ou “prática social”) entende-se não uma manifestação externa de pensamentos internos, mas um todo do qual o pensamento e o comportamento podem ser abstraídos. Mas uma forma de prática social pode existir por séculos antes de alguém formular um conceito adequado dela, e da mesma forma, conceitos utópicos podem existir sem qualquer base real na vida social. Assim, Marx substituiu explicitamente os sistemas de prática social, formações sociais, por Gestalten des Bewußtseins (Formações de consciência) de Hegel, atividades reais e não suas sombras.
No primeiro Prefácio a O Capital (1867), Marx pergunta por que, mais de 2.000 anos desde que Aristóteles ficou intrigado com o conceito de valor de troca, foi apenas no século XIX que o segredo da formação do valor de troca e suas ramificações foram divulgados. Segundo Hegel, o crescente entendimento de categorias econômicas como valor de troca foi resultado do trabalho teórico de economistas políticos que desenvolveram cientificamente o conteúdo dos conceitos da economia política. A maioria das pessoas entenderia o progresso das ciências naturais da mesma maneira: como um longo trem de solução de problemas, cada um baseado nas soluções daqueles que estão diante deles. Mas isso não se levanta, não é? É idealista. A atividade humana se desenvolve à sua maneira; gradualmente, ao longo de milênios, todos os aspectos do conceito de valor de troca foram atualizados como relações reais, em última análise, na forma de dinheiro e capital. Na sociedade burguesa moderna, o conceito de valor de troca alcançou seu desenvolvimento final, e o teórico precisa apenas refletir sobre o que está diante de seus olhos, através do desenvolvimento da atividade em si – a ciência se apropria de conceitos que já se ‘desenvolveram’ na vida prática.
Para entender a ideia de Hegel, os conceitos devem ser entendidos como formas de atividade em primeiro lugar, não como produto de teóricos. Os teóricos só podem estudar o que pode ser encontrado na atividade prática, implícita ou potencialmente. Se não explicitamente. Portanto, mesmo que Hegel tenha perdido isso de vista e tomado equivocadamente o progresso social como obra de teóricos, sua lógica mantém sua validade, desde que os conceitos sejam interpretados como formas de atividade prática e apenas derivadamente como formas de pensamento subjetivas ou figuras de lógica categórica.
O Método da Economia Política
Em Grundrisse, Marx explicou a história de qualquer ciência como sendo composta de duas fases, como segue:
Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto
e então:
representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples.
Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações… O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento (MARX, 2011, p. 76).
Esta passagem descreve a estrutura da lógica de Hegel. O ponto de partida de uma ciência é a massa de medições abstraídas do fluxo de relatórios econômicos. Esta fase está representada na Doutrina do Ser de Hegel, uma fase de observação e medição que precede a reflexão científica como tal. A jornada começa quando essas medidas são analisadas, refletidas e elaboradas em padrões e leis, além de uma descrição teórica dos dados. Esta primeira fase do desenvolvimento de uma ciência (“A primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua gênese” (p.77),) está completa quando chega à “determinação mais simples”, a entidade singular que exibe as relações essenciais de todo o processo. Essa primeira fase é realizada na história da ciência por meio de críticas imanentes aos conceitos abstraídos do Ser, e é representada por Hegel na Doutrina da Essência. A segunda fase é reconstruir o todo, agora não como uma concepção caótica, mas como um todo sistemático, um todo que exibe de forma desenvolvida as características essenciais com as quais estamos familiarizados na unidade a partir da qual iniciamos a reconstrução. Esta segunda fase – dialética sistemática (“manifestamente o método cientificamente correto”. p. 77) é representada por Hegel na Doutrina do Conceito. Para Marx, esse Urphänomen não seria um fenômeno ou um conceito, mas uma interação observável na prática social, um ato social familiar que podemos entender visceralmente, uma Urpraxis. No caso da economia política, isso seria um ato de troca de mercadorias. Em cada etapa da reconstrução, os conceitos logicamente derivados da Urpraxis são validados por sua existência objetiva na prática social. A reconstrução concreta resultante (que na Lógica Hegel representou como ‘Espírito’) difere dos dados com os quais a análise começou (‘Ser’) porque é um todo sistemático e não uma mera sucessão de qualidades abstratas. Marx realizou esse plano de trabalho, sua própria parte na história da economia política, através de muitos anos de crítica imanente às teorias rivais da economia política, seguida por uma reconstrução sistemática da sociedade burguesa no Capital.
A Mercadoria
No primeiro Prefácio de O Capital, onde Marx está falando sobre o problema do valor na economia política, ele diz:
Não obstante, o espírito humano tem procurado elucidá-la em vão há mais de 2 mil anos, ao mesmo tempo que obteve êxito, ainda que aproximado, na análise de formas muito mais complexas e plenas de conteúdo. Por quê? Porque é mais fácil estudar o corpo desenvolvido do que a célula que o compõe. Além disso, na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração [Abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos. Para a sociedade burguesa, porém, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da mercadoria, constitui a forma econômica celular. (MARX, 1982, p. 112).
O uso de Marx da metáfora da “célula” não pode deixar de nos lembrar o Urphänomen de Goethe, que a ciência da biologia realizou na célula. O primeiro capítulo é dedicado a uma exposição da relação mercadoria. Marx deriva os conceitos de valor nos três primeiros capítulos do Capital, desdobrando-se da troca de mercadorias, os conceitos de Qualidade, Quantidade e Medida, paralelamente ao primeiro livro da Lógica de Hegel. Começando com o conceito abstrato de mercadoria e, a partir daí, desenvolvendo uma concepção concreta de valor na sociedade burguesa, Marx seguiu a estrutura que Hegel usou em todos os livros da Enciclopédia. Em particular, Marx partiu da descoberta de que a relação mercadoria é a unidade de duas ações independentes representadas por duas formas de valor: o valor de uso da mercadoria implicada no consumo do objeto (sua qualidade social) e o valor de troca da mercadoria implicado na produção do objeto e realizado no mercado (sua quantidade social). A homologia entre as categorias da Ontologia de Hegel e os primeiros capítulos do Capital reflete o fato de que o dinheiro vem realizando o trabalho de reduzir todos os produtos do trabalho humano a uma única medida, realizando o trabalho da lógica, mas como um processo real, ao invés de um exercício intelectual. Dada a natureza social da lógica categórica de Hegel, é de se esperar que as categorias da lógica tenham uma existência real nos processos sociais correspondentes. No entanto, não aceito a sugestão de Chris Arthur (2015), de que essa homologia é resultado do estudo de Hegel dos economistas políticos britânicos. Foi o filósofo soviético Ilyenkov quem destacou esse processo de abstração objetiva em seus trabalhos sobre O Capital (1982/1960) e o ideal (1977), que é a base dessa homologia. A própria crítica de Hegel à economia política acabou sendo bastante tediosa.
Unidade e Célula Germinativa
Pode parecer estranho começar com troca de mercadorias. Embora, como Marx diz no começo do Capital: “A riqueza daquelas sociedades nas quais o modo de produção capitalista prevalece, apresenta-se como “uma imensa acumulação de mercadorias”, a troca de mercadorias é uma ocorrência rara na sociedade burguesa moderna; geralmente compramos e vendemos mercadorias. A terceira seção do capítulo 1 mostra a gênese histórica da troca desde sua primeira aparição nas trocas entre os povos tribais, levando ao uso do ouro como um equivalente universal e, posteriormente, à emissão de papel-moeda pelos Estados. Dessa maneira, ele mostrou que o dinheiro é essencialmente uma mercadoria e que o trabalho assalariado é uma mercadoria comprada e vendida no mercado de trabalho e usada pelos compradores capitalistas.
Isso mostra um dos aspectos da Urpraxis que chamei a atenção acima. A Urpraxis surge de problemas em um nível mais baixo de desenvolvimento. Mas com a formação da Gestalt auto-reprodutiva que ela gera, a própria Urpraxis passa por uma série de transformações.
A Praxis é a “forma social mais simples”
Em suas notas sobre Adolph Wagner, Marx diz: “De prime abord [desde o princípio], não parto de ‘conceitos’, portanto, tampouco do ‘conceito de valor’ parto da forma social mais simples em que o produto do trabalho se apresenta na sociedade atual, e essa é a ‘mercadoria’” (MARX, 2017, p. 265).
É o mesmo que quando Hegel toma a propriedade privada como a forma social mais simples de Liberdade e torna o ponto de partida em Filosofia do Direito. Assim como a propriedade privada leva ao Estado, a troca de mercadorias leva ao capital, mas em ambos os casos o livro não começa com um conceito de seu objeto, mas de sua substância subjacente. A mercadoria é uma forma de valor, mas ‘valor’ é intangível, nem ‘geométrico, físico, químico ou qualquer outra propriedade natural das mercadorias – é uma qualidade supra-sensível de uma mercadoria. O valor é, de fato, uma relação social mediada por artefatos que, portanto, só pode ser apreendida conceitualmente. No entanto, a mercadoria é uma forma de valor que, graças à experiência cotidiana, pode ser apreendida visceralmente. Isso significa que a crítica do conceito de mercadoria trabalha sobre relações que podem ser apreendidas visceralmente por leitores e escritores. Ao começar com a (conceito de) mercadoria, Marx mobiliza a compreensão visceral dos produtos pelos leitores e como ele nos leva a cada relação sucessiva. Enquanto essa relação existir na prática social, a intuição do escritor não só é validada pela existência dessa relação, mas também permite que o leitor compreenda e verifique com segurança a exposição lógica. A decisão de Marx de começar não com o “valor”, mas com a “mercadoria” ilustra a dívida de Marx com o “empirismo delicado” de Goethe, e é crucial para sua implementação práxica da lógica de Hegel. Não estou ciente de nenhuma evidência de que Marx soubesse sobre os Urphänomen de Goethe, e muito menos de se apropriar dela. Marx trabalhou em uma certa conjuntura cultural e histórica e se colocou em uma posição social específica no desenrolar da crise social. Se algum filósofo é a fonte próxima da virada filosófica de Marx para a práxis, então seria o seguidor de Gottlob Fichte, Moses Hess (1964/1843), com quem Marx estava trabalhando na época em que escreveu Teses sobre Feuerbach. Além disso, muito do que Marx tinha a dizer sobre Hegel está longe de ser complementar. A relação triádica entre esses três pensadores holísticos, Goethe, Hegel e Marx, é real, apesar de Marx nunca ter decidido fazer nenhum tipo de tríade. No século XIX, todos os alemães, incluindo Hegel e Marx, foram criados à longa sombra de Goethe, cujo impacto na cultura alemã não pode ser exagerado. No entanto, as ideias científicas naturais de Goethe eram provavelmente as menos conhecidas e foram amplamente desacreditadas em meados do século. Mas o impacto de Goethe (que Marx listou ao lado de Dante e Shakespeare como seu poeta favorito) é inegável. Goethe e Hegel eram unilaterais em seu método; o desenvolvimento posterior da ciência e da cultura tornou possível que Marx transcendesse o empirismo de Goethe e o idealismo de Hegel. Além disso, ao fazer dos Urphänomen de sua ciência um ato real de prática social, não uma prática social imaginada, mas cujas normas já haviam sido produzidas pelo desenvolvimento da sociedade burguesa e poderiam ser objeto de observação e intervenção, Marx virou a versão de Hegel dos Urphänomen de dentro para fora, recuperando um elemento importante dos Urphänomen de Goethe.
Na visão de Marx, a sociedade burguesa era essencialmente um mercado. Mas Marx não acreditava que ele pudesse explicar tudo sobre o mundo moderno com base na relação de mercadorias. O Estado e a vida familiar não eram (ainda) locais de mercado. Marx foi atraído para a atividade política por sua indignação com a censura da imprensa, a desigualdade, o privilégio aristocrático e o lento progresso da reforma liberal na Alemanha, mas chegou a ver que não era a nobreza ou o Estado que estava na raiz desses problemas sociais, mas o mercado. Ao tomar uma troca de mercadorias como a unidade de análise (Vygotsky 1987/1934), ele escolheu uma unidade que já continha o que considerava essencial para a sociedade burguesa. Assim, o todo complexo que Marx se propôs a entender deveria ser tomado como apenas milhares e milhares de trocas de mercadorias. O capital forneceu uma análise concreta de como a produção de mercadorias leva à exploração do trabalho assalariado de um lado e à acumulação de mais-valia do outro – mas ele não pretendia fornecer uma análise do Estado e da história mundial. Hegel, por outro lado, adotou a propriedade privada (em vez da troca de mercadorias) como célula germinativa da Liberdade, como o ‘Urconcept‘, e alegou desdobrar da propriedade privada a totalidade do Estado e da história mundial. Os objetivos de Marx eram justamente mais modestos.
Mercadoria e Capital
O Capital é um livro sobre capital, não simples produção de mercadorias. Na parte I do livro, os três primeiros capítulos, Marx analisa a circulação de mercadorias e dinheiro, mas a partir dessa análise ele demonstra o surgimento de uma nova relação, a do capital, um novo tipo de mercadoria. M ‒ D ‒ M, (troca de mercadorias mediada por dinheiro) é transformada em D ‒ M ‒ D ‘, produção de mercadorias que mediam a acumulação de dinheiro. Assim, Marx deriva uma nova unidade de análise “molar” [5], uma segunda Urpraxis – a empresa capitalista ou unidade de capital, e marca o surgimento das formas modernas de capital. A partir do capítulo 4, Marx desdobra a partir deste segundo Urpraxis uma exposição dialética do movimento do capital. Esse tema na ciência holística, onde existe uma unidade micro ou Urphänomen (célula, qualidade, mercadoria,…) e uma unidade molar (organismo, conceito, capital,…) foi identificada pela primeira vez pelo teórico soviético Leontyev. Na verdade, é a unidade molar que é o assunto do estudo, a chave para a compreensão da qual está a micro unidade. Que homologia existe entre a Parte II e os sucessivos capítulos de O Capital e o Conceito de Lógica de Hegel? Muito pouca. A homologia muito geral que pode ser encontrada surge da homologia entre os assuntos (acumulação, competição). Pode-se argumentar que a formação de uma taxa uniforme de lucro em uma economia, apesar de uma composição orgânica de capital que varia de empresa para empresa, tem uma homologia com a formação da Ideia a partir de conceitos abstratos na Ciência da Lógica de Hegel. Mas, em qualquer caso, a homologia surge de paralelos no próprio assunto, baseados no dinheiro como uma abstração real do trabalho humano, não de Marx emulando Hegel. A estrutura do Capital não é um espelho de nenhum trabalho de Hegel.
Os conceitos de economia política se desenrolam de acordo com sua própria lógica, e seria um erro tentar combinar conceito por conceito de O Capital com qualquer um dos livros de Hegel.
Em resumo, existem duas fases na formação de uma ciência (os dois volumes de A Ciência da Lógica de Hegel, os dois processos descritos no “Método da economia política” de Marx); primeiro, um período prolongado que leva ao ponto em que um teórico tem o ponto de partida abstrato (Urphänomen) para a ciência propriamente dita, e depois a concretização desse conceito abstrato no desenvolvimento da ciência. Igualmente, existem duas fases na formação de uma formação social como o capitalismo: primeiro, o prolongado período da história que antecede o surgimento de sua célula germinativa, seguido pela concretização e universalização desse conceito, implicando a transformação de todas as outras relações na formação social.
Hegel não descobriu o Urphänomen – ele o apropriou do poeta naturalista John Wolfgang von Goethe e o transformou de dentro para fora. Isso forneceu o começo abstrato de sua filosofia, e cada uma das ciências que ele trabalhou teve como ponto de partida um conceito abstrato apropriado da ciência anterior. Essa foi a mesma ideia que o comunista Marx se apropriou do filósofo idealista, Hegel, e fez o ponto de partida para sua crítica ao capital.
Síntese
Para Marx e para Hegel, um conceito é uma forma (normativa) de prática social, mas enquanto Hegel sofria da ilusão de que um teórico poderia desdobrar de um ideal conceitual tudo o que estava implícito nele, Marx sustentou consistentemente a visão de que o desenvolvimento lógico tinha que seguir o desenvolvimento da prática social em todas as etapas, tornando inteligível o que era dado na prática social.
Observe que Marx adotou a mesma abordagem em seu estudo do movimento dos trabalhadores em sua luta pelo poder do Estado, alterando o Manifesto do Partido Comunista à luz das ações do movimento dos trabalhadores na Comuna de Paris. Ele nunca construiu castelos socialistas no ar. Mas, escrevendo no meio do século 19, Marx havia material para trabalhar, material que não estava disponível para Hegel no começo do século XIX.
Notas:
[1] Terceira seção.
[2] Capítulo “As assembleias de ordem”.
[3] Traduzido do inglês “building castles in the sky”, algo como criar sonhos, esperanças.
[4]Aqui, originalmente, o professor atribuiu a citação ao Grundrisse equivocadamente, visto que lhe informei sobre o erro o mesmo já foi corrigido no texto original.
[5] Unidade molar vem da química, onde significa que a quantidade de uma substância que contém tantas moléculas como 12 g de carbono-12, isto é, 6 × 1023 moléculas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO TRADUTOR
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. – São Paulo: Martins Fontes, 1997.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Lógica: 1. A doutrina do ser. Tradução Christian G. Iber, Marloren L. Miranda e Federico Orsini. – Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2016.
MARX, KARL. Obras Escolhidas de K. Marx/F. Engels – Tomo I. Tradução: Álvaro Pina
– Lisboa: Editorial Avante , 1982.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus; [supervisão e notas Marcelo Backes] – [2. ed. revista] – São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. O Capital – Livro 1: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle – São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. Grundrisse. Tradução: Mario Duayer (supervisão editorial e apresentação), Nélio Schneider, Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman.) – São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider – São Paulo: Boitempo, 2011.
1 comentário em “Qual é a diferença entre Hegel e Marx?”
Nunca tinha ouvido falar desse autor, gostei bastante do trabalho dele! Valeu