Livrar-se de Trump não cura a toxicidade ubíqua da “Democracia Americana”

Por Mirna Wabi-Sabi

Anteontem, um mosquito morreu na minha casa. Estava tão cheio de líquido que lutava para voar, oscilando entre a ascensão extenuante e a queda exausta como uma avestruz em miniatura determinada a voar. Fui capaz de esmagá-lo sem esforço entre o polegar e o indicador. Seus restos consistiam principalmente de meu próprio sangue, exibido como as últimas gotas de uma lata de tinta spray vermelha sobre os azulejos brancos.

Trump, em sua tentativa desesperada de permanecer na presidência, se esbaldou ao ponto que facilitou destruí-lo. O que resta é seu rebanho desorientado de seguidores, que funcionam como membros inquietos com a memória muscular para o combate, mas não para a revolução. O combate, sem a mão pesada do Estado, é abandonado e condenado.

Seus métodos podem não ser tão repulsivos quanto suas motivações. Métodos e motivações políticas são independentes uns dos outros; neste caso, podemos acreditar em ambos, nenhum, ou em qualquer um dos dois. Fomos estimulados a condenar ambos por pessoas e entidades que têm seus próprios métodos e motivações. Mas quais são os nossos? Destruir o Trump é fundamental e os fins justificam os meios?

O grupo que invadiu a capital esta semana não são anarquistas, embora alguns jornalistas gostem de dizer isso, ao pensar que a palavra é um sinônimo mais inteligente para ‘caos’. Essas pessoas não estavam protestando contra o governo, elas estavam agindo em favor do seu próprio. E, infelizmente, denunciá-los significou chamar a “Democracia Americana” de sagrada. Seria uma terrível ironia se os apoiadores de Trump conseguissem fazer com que anarquistas e esquerdistas radicais salvaguardassem aquilo que estavam motivados a destruir por tanto tempo.

Como anarquista, nunca trabalhei para destruir a “democracia americana,” apenas a ilusão nociva da existência dela. Nunca trabalhei para proteger os símbolos de instituições racistas e corruptas ou a integridade de edifícios que abrigam uma elite assassina. Não deveríamos ser seduzidos a santificar a instituição que sabemos ter cometido atrocidades em todo o mundo por um século, apenas porque, no momento, ela compartilha uma motivação conosco — remover o Trump da presidência.

A motivação de eliminá-lo é passageira, e é preciso lembrar dos nossos objetivos duradouros, como acabar com a guerra, a miséria e a desigualdade. Enquanto “democracia americana” os reproduz em vez de evitá-los, a administração de Biden não garante mudanças significativas, exceto, talvez, mudanças mínimas ao último. ‘Desigualdade’ é tratada nomeando ‘pessoas de cor’ e mulheres para cargos de poder da mesma forma como uma nova camada de tinta resolve um problema de mofo. Pode transformar uma sala por enquanto, porém, a menos que a causa do problema seja resolvida, o ambiente se tornará desagradável e tóxico novamente, em breve.

“Fidelidade ao Estado e às Leis” pode agora ser um sentimento que serve a nossa motivação passageira de nos livrarmos de Trump, mas nunca nos salvará da toxicidade ubíqua do cenário político global que a ‘Democracia Americana’ concebeu.

Enquanto tomava banho, observei várias formiguinhas andando pelos azulejos brancos da parede. As formigas raramente se espalham; este é provavelmente o método mais interessante de suas comunidades. Ainda mais fascinante é como essas artérias não necessariamente revelam a localização do formigueiro. Mesmo assim, tentei rastrear de onde elas vinham e aonde iam, sem sucesso.

‘Até mesmo as melhores comunidades podem se desorientar,’ pensei enquanto observava algumas formigas que saíram da trilha principal em direção a um ralo que as levaria diretamente à morte. A maioria tomava juízo e logo dava meia-volta pelo caminho exato de onde vieram para se reinserir à artéria principal. Outras eram um pouco mais teimosas, iam cada vez mais longe, passavam apressadamente pelo cadáver de uma formiga grudado numa única gota d’água no espaço entre os azulejos. Eventualmente, essa solitária virava a tempo de escapar da morte.

Só isso é preciso — um indivíduo que cria um caminho novo em direção ao ralo. Uma lei contra o extravio seria a solução? É complicado desencorajar a população de seguir um certo líder enquanto dependemos de líderes e seguidores em tantos outros contextos. A punição de líderes descarrilhados é eficaz quando o objetivo é preservar a eficácia da corrente principal; para questionar alguns líderes, mas não todos. Mais importante ainda, criticar o do outro, e não o nosso.

A polarização é essencialmente isso, uma forma de criticar líderes individuais sem prejudicar o conceito de liderança. Nesse sentido, a polarização é do interesse e promovida pelos próprios líderes. Antes de aderir e popularizar motivações e métodos endossados por líderes cativantes, é indispensável que tenhamos uma compreensão clara de nossa própria situação e do que é de nosso interesse.

Na maioria das vezes, o que é de melhor interesse dos nossos líderes não se traduz ao que é do nosso interesse (nós, como indivíduos que votam porque sentimos a necessidade de ser representados pela liderança). Por sermos seres sociais, os interesses de nossa comunidade são os nossos interesses e vice-versa. Enquanto, como vimos tantas vezes antes, a liderança tem interesse em exercer poder sobre o comportamento de uma comunidade, orientando-a em qualquer direção. Normalmente, na direção que mantém o nível mínimo de satisfação para evitar uma rebelião, ou melhor ainda, para preservar suas próprias posições de poder.

Para preservar esse nível mínimo de satisfação, provou ser mais barato influenciar as opiniões das pessoas do que melhorar as condições materiais delas e seu acesso a recursos. Isso explica o poder surpreendente que a mídia social tem sobre as eleições, através de conteúdos polarizantes. A internet se tornou tão intrínseca à forma como acessamos informação que é difícil imaginar alternativas para acessá-la. Livros, por exemplo, são ótimos, mas até estes encomendamos pela internet hoje em dia.

Se não com o Estado, a Lei ou a Internet, em que podemos contar para nos engajarmos politicamente?

Como Jere Kuzmanić, um anarquisa Croata, escreveu recentemente num artigo sobre apoio mútuo após o terremoto na Croácia, “Comunidades fortes tornam os políticos obsoletos.” Se há algo mais eficaz como engajamento político do que votar, é a construção de uma comunidade. Temos muito a aprender ao ouvir as pessoas de nossa comunidade. Nossos amigos e familiares estão bem e seguros? Como os recursos estão sendo distribuídos em nosso ambiente imediato? A ferramenta política essencial de um indivíduo é saber o que ‘comunidade’ significa para ele. E é melhor começar pequeno, do que nem começar, especialmente nestes tempos difíceis.


 

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

Deixe um comentário