Cremonini, pintor do abstrato

Por Louis Althusser, via Trondheim Academy of Fine Art, traduzido por Reginaldo Gomes 

Redigido na ocasião de uma exposição de Leonardo Cremonini na Bienal de Veneza (junho-setembro de 1964) “Cremonini, pintor do abstrato”, datado por Althusser de agosto de 1966, foi publicado em novembro de 1966 na revista Démocratie nouvelle, no quadro de uma “Pesquisa internacional ‘culturas e cultura'”. Particularmente posto em evidência pela revista, este artigo é editado sobre papel lustroso e rodeado de numerosas ilustrações em preto e branco dos quadros de Cremonini. Althusser já havia publicado uma primeira versão desse texto na Alemanha (Tendenzen 3, 1965). Além de algumas modificações de detalhe que nem sempre são sem importância, a segunda versão difere da primeira por uma larga conclusão acrescentada pelo autor no curso do verão de 1966, que modifica a tonalidade geral do texto. [1]


Enquanto eu estava no salão da Bienal de Veneza onde Cremonini exibia suas telas admiráveis, dois franceses entraram, deram uma olhada rápida, tomaram a porta, e um disse ao outro: “Sem interesse: expressionismo!”. Desde então, encontrei a mesma palavra sob a pena da crítica de arte. Aplicado a Cremonini, o termo “expressionismo” é o indício surpreendente de um mal-entendido. Afinal, esse é o mal-entendido de todo julgamento crítico (e, portanto, de toda estética) que é apenas um comentário, mesmo teórico, do consumo estético: o mal-entendido dominante da crítica de arte contemporânea que, quando não veste o seu “julgamento” no esoterismo de um vocabulário onde cúmplices de um desconhecimento apenas comunicam sua cumplicidade, mas consente em falar uma linguagem nua, revela a todos que não é mais do que um ramo do gosto, ou seja, da gastronomia.

Para “ver” Cremonini, e sobretudo para falar do que ele torna visível, temos que abandonar as categorias da estética do consumo: é necessário outro olhar, diferente daquele da concupiscência ou da degustação dos “objetos”. Toda a sua força de pintor figurativo reside no fato de que ele não “pinta” “objetos” (essas ovelhas desmembradas; esses cadáveres torturados; essa pedra; essas plantas; essa poltrona de 1900), nem “lugares” (o mar, visto da pesada carcaça articulada de uma ilha, visto de uma janela aberta para o ar; essa varanda pendurada no céu; esses quartos com guarda-roupas e camas envernizadas; esse compartimento em um trem noturno), nem “horas” ou momentos (a manhã ao amanhecer; a noite; o meio-dia em um pátio ensolarado, onde as meninas jogam amarelinha). Cremonini “pinta” as relações, onde são tomados os objetos, os lugares e as horas. Cremonini é um pintor da abstração. Não um pintor abstrato, “pintando” uma possibilidade pura, ausente, em uma nova forma ou matéria, mas um pintor do abstrato real, “pintando”, em um sentido que se deve definir, as relações reais (como relações que são necessariamente abstratas) entre os “homens” e suas “coisas”, ou melhor, se quisermos dar a esta palavra seu sentido mais forte, entre as “coisas” e seus “homens”.

“Ver” essas relações nas telas de Cremonini é ao mesmo tempo entrar em outras relações: aquelas entre o “artista” e sua “obra”, ou melhor, aquelas entre a obra e seu artista. Também aqui, muitas vezes, a crítica de arte moderna pensa essas relações nos mistérios da subjetividade do pintor, que inscreve seu “projeto criativo” na materialidade ideal de sua “criação”. A estética do consumo e a estética da criação não são mais do que uma só e mesma coisa: ambas dependem das mesmas categorias ideológicas de base: (1) a categoria de sujeito, criador ou consumidor (produtor de uma “obra”, produtor de um julgamento estético), dotado de atributos de subjetividade (liberdade, projeto, ato de criação e julgamento, necessidade estética etc.); e (2) a categoria de objeto (os “objetos” representam, retratados na obra, a obra como objeto, produzido ou consumido). Assim, a subjetividade da criação nada mais é do que o reflexo no espelho (e esse reflexo é a própria ideologia estética) da subjetividade do consumo: a “obra” nada mais é do que o fenômeno da subjetividade do artista, seja essa subjetividade psicológica ou estético-transcendental. Cremonini nos introduz a conceber que o “mistério” da “interioridade” de um pintor, de seu “projeto criativo”, não é mais do que sua própria obra, que as relações entre o pintor e sua “obra” nada mais são do que as “relações” que ele “pinta”. Cremonini nos faz ver as relações entre as coisas e seus homens. Ao mesmo tempo, ele nos faz ver, não as relações entre o pintor e sua obra, que não tem existência estética, mas as relações entre uma “obra” e seu pintor, que são ao mesmo tempo as relações entre essa obra e nós.

Toda a história individual da pintura de Cremonini não é mais do que um comentário sobre essa necessidade: a refutação da pura subjetividade da produção, o reflexo no espelho da subjetividade do consumo.

Esta história é interessante, não porque começou com um “objeto”, e continuou com outro, mas pelos problemas enfrentados, nos quais esta história não é mais do que a posição, a transformação e a resolução progressivas e tenazes. 

De fato, Cremonini “começou” (temos que começar com algo) com o geológico: as armações, as articulações, embaladas pelo peso e pela história, do corpo passivo de uma ilha, adormecida no pesado esquecimento das rochas, à beira de um mar vazio, um horizonte sem matéria. Mas ele já é o oposto de um pintor de “objetos”, um pintor de paisagens. O que ele “pinta” sobre as rochas é o que elas ignoram: seu peso e memória (esquecimento), ou seja, sua diferença em relação a algo diferente delas mesmas, do que as faz o solo para os homens.

Cremonini prosseguiu com o vegetal: o crescimento agudo de um bulbo, o longo grito dos caules mudos, a emanação estridente de uma flor, parada no ar como um pássaro do silêncio. Ele nunca “pintou” nada além das ausências nessas presenças: o ritmo, o fluxo, as crepitações do tempo, “figurados” por plantas instantâneas, ou seja, eternas – e o grito de uma voz, “figurada” por qualquer coisa diferente dela, por gestos, trajetos e suspense. Cremonini chegou às bestas: ovelhas imóveis, cujos ossos perfuram sua pele e estalam na paralisia do movimento; rebanhos que se assemelham às pilhas de rochas em que pastam; cães congelados em uma estrada de bronze; animais desmembrados espalhados entre homens coletando carcaças de ossos, homens como as carcaças que carregam em seus ombros descarnados. Tudo o que ele “pintou” sobre os animais foram os ossos articulados, talhados na mesma matéria das rochas: articulações fixadas na morte, durante a vida – e os raros homens, ele os congelou no mesmo material. As bestas e seus homens, os mesmos mortos-vivos, cercados pela pedra que são, e pelo ar em que eles pensam que são livres. O que Cremonini “pintou”? Semelhanças (pedras, ossos, animais, homens) ali onde estão as diferenças – e ao “pintar” estas semelhanças, ele “pintou” diferenças: suas bestas e homens estão distantes da natureza em que a nossa ideia os “fixa”, isto é, a ideologia dominante do homem.

Finalmente, Cremonini veio até os “homens”, que já estavam rondando entre as bestas.

Em sua história individual como pintor, ele percorreu e reproduziu todo o ciclo de uma História (rochas, plantas, animais, homens), mas ao fazê-lo mostrou que qualquer deus, mesmo um pintor, estava ausente, banido dela. Ele reproduziu essa História em sua ordem material – ou deveríamos dizer “materialista”? -: a terra, as plantas, as criaturas, e finalmente o homem. Está muito claro que uma certa ideologia da relação direta entre o homem e a natureza inspirou a obra de Cremonini desde o início: o que ainda o fascina pessoalmente, no braço de uma cadeira ou em uma ferramenta, é o fato de que elas prolongam as articulações dos membros ósseos, humanos e animais, e que essas articulações não são mais do que outros jogos da natureza relacionados aos jogos originais que constituem as relações de equilíbrio-desequilíbrio das alavancas de gravidade em suas rochas. Daí o sentido que assumiu para ele a ordem em que reproduziu esta História, ao mesmo tempo em que vivia sua história: poderia ser a ordem de um Gênesis (mesmo materialista), isto é, da filiação à uma origem contendo o verdadeiro sentido das coisas, a verdadeira relação do homem com a natureza, com seus “objetos”, sobretudo a relação exemplar entre o artesão, sua matéria, suas ferramentas e seu produto.

É bem provável que esse “projeto” ideológico tenha inspirado, isto é, assombrado, Cremonini, e que a ilusão que continha fosse parte da disposição dos meios que acabaram produzindo suas telas e sua própria história: o resultado (só ele existe para nós: suas telas de que estamos falando) é precisamente algo completamente diferente desse projeto “ideológico”. E as aproximações (as semelhanças) entre as formas das quatro ordens (geológica, vegetal, animal, humana) não são de fato o princípio organizacional dominante: elas mesmas estão sujeitas a outro princípio organizacional, o das diferenças. Em certo momento, Cremonini pode ter acreditado que estava pintando apenas as “semelhanças”, os “isomorfismos”, necessários para o desenvolvimento do seu “projeto” ideológico de filiação das formas (rochas, plantas, ossos articulados, ferramentas, gestos…): na verdade, essas semelhanças foram submetidas a uma lógica completamente diferente: a das diferenças, que Cremonini nunca deixou de pintar, e em primeiro lugar, a diferença com este projeto ideológico de filiação das formas. Tudo isso pode ser “visto” claramente na última etapa da pintura de Cremonini: os “homens”.

Os homens: eles tiveram em primeiro lugar, e ainda têm, a forma de suas “coisas”, das “coisas”. Corpos e aspectos de pedra, traindo em seus objetos e gestos suas “origens” primordiais: justamente esses ossos transpostos em ferramentas, esses cotovelos magros articulados em braços de cadeiras, essas mulheres eretas como as barras de ferro de sua varanda, com seus filhos na altura da cintura. Os homens: seres congelados em sua essência, em seu passado, em sua origem, ou seja, em sua ausência, que os faz ser o que são, sem ter pedido para viver, nem por quê. As “coisas”: essas ferramentas, esses utensílios, muros, paredes que separam o interior do exterior, a sombra do ar, o brilho do verniz gasto da limpidez áspera do céu. Os “homens”: moldados na matéria de seus objetos, cercados por eles, tomados, e para sempre definidos; rostos corroídos pelo ar, carcomidos e amputados (rostos quase demais), gestos e gritos congelados na gravidade imutável, zombaria do tempo humano reduzido à eternidade, a da matéria.

Então, há poucos anos, começou a aparecer o que, surdamente, falava nessa História: as relações entre os homens. Não é por acaso que, em Cremonini, esse objeto tomou a forma de uma exploração de espelhos, sobretudo, de velhos espelhos de casas populares, dos sórdidos guarda-roupas de 1900: homens que lutam com a sua única riqueza, este passado miserável onde eles se olham. Onde eles se olham: não, onde eles são olhados. São seus espelhos, sua miséria, que os fixa, voltando contra si mesmos, o que quer que façam, seu único bem inalienável: a sua própria imagem.

Não se vê estas mulheres no banheiro, mas sim no espelho, mesmo aquela jovem não se vê, embora vejamos seu desejo nu nas costas do espelho que ela segura na mão: são seus espelhos que as veem, e veem o círculo de sua visão, embora seus espelhos sejam cegos. Os espelhos veem os homens, até no sono e no amor: o implacável reflexo, indiferente ao seu modelo, vê para nós estes seres de carne, de sono, de desejo e de vigília, até no céu suspenso de sua vertigem. No entanto, em todas essas telas, de alturas verticais: portas, janelas, paredes, muros, estão, onde se pinta a lei impiedosa que governa os homens, mesmo em sua carne cansada: a gravidade da matéria, ou seja, de suas vidas. Ninguém sustentará que seja por um encontro casual que as grandes verticais das paredes e muros surjam, em Cremonini, no momento mesmo em que ele passou a pintar em seus espelhos o círculo inexorável que domina as relações entre os homens, pelas relações dos objetos com os seus homens. No círculo dos espelhos está “figurada” uma referência completamente diferente daquela da semelhança das formas, na ideologia de uma filiação. Os círculos dos espelhos “figuram” que os objetos e suas formas, mesmo que sejam aparentados entre si, só o são porque giram no mesmo círculo, porque estão sujeitos à mesma lei, que agora domina “visivelmente”, as relações dos objetos com os seus homens.

Além disso, este círculo é realmente um círculo: ele “anda em círculos”, perdeu toda a origem; mas, com a origem, também parece ter perdido toda a “determinação em última instância”. Os homens e seus objetos nos remetem aos objetos e seus homens, e vice-versa, interminavelmente. E, no entanto, o sentido deste círculo é fixado, à la cantonade, pela sua diferença: esta diferença nada mais é do que a presença, ao lado do círculo, das grandes verticais da gravidade, que “figuram” outra coisa que o reenvio dos indivíduos-humanos aos indivíduos-objetos, e vice-versa, ao infinito, outra coisa diferente desse círculo de existência ideológica: a determinação desse círculo por sua diferença, por uma outra estrutura, não circular, por uma lei de outra natureza, uma gravidade irredutível a qualquer Gênesis, que agora atormenta, com sua ausência determinada, todas as telas de Cremonini.

Nas últimas obras, o círculo não precisa, para ser “pintado”, da presença física dos espelhos. Ele se torna diretamente o círculo do interior e do exterior, o círculo dos olhares e dos gestos tomados no círculo das coisas: assim, o interior do apartamento dos vizinhos visto por uma janela, os vizinhos olhando para este outro interior de onde eles são vistos; assim, os santos açougueiros se confundem com o gigantesco cadáver de boi aberto que vasculham (círculo do homem e da besta), voltando-se para a janela (círculo do interior e do exterior) onde a proibição atirou uma garotinha fugindo antes mesmo de ela olhar para eles (círculo do desejo e da proibição); assim, o jogo “sem regras” das crianças correndo entre os móveis – sem regras, já que sua regra não é mais do que a lei da vedação de um espaço fechado, o único corpo de sua “liberdade”. No mundo finito que os domina, Cremonini “pinta” assim (isto é, “figura” pelo jogo de semelhanças inscritas nas diferenças) a história dos homens como história marcada, desde os primeiros jogos da infância, e até mesmo no anonimato dos rostos (das crianças, das mulheres e dos homens), pela abstração de seus lugares, de seus espaços, de seus objetos, isto é, “em última instância”, pela abstração real que determina e resume essas primeiras abstrações: as relações que constituem suas condições de vida.

Não quero dizer – porque não faria nenhum sentido – que possamos pintar as condições de vida, pintar as relações sociais, pintar as relações de produção ou as formas da luta de classes em uma dada sociedade. [2] Mas podemos “pintar”, através de seus objetos, as relações visíveis tais como figuram, por sua disposição, a ausência determinada que as governa. A estrutura que comanda a existência concreta dos homens, isto é, que informa a ideologia vivida das relações dos homens com os objetos e com os homens, essa estrutura nunca pode, como estrutura, ser figurada na presença, em pessoa, em positivo, em relevo, mas somente, por traços e efeitos, em negativo, por índices de ausência, em vazio. Este vazio, que “figura” uma ausência determinada, está precisamente inscrita nas diferenças pertinentes mencionadas acima: no fato de um objeto pintado não se conformar com sua essência, estar relacionado a outro que não ele mesmo; no fato de que as relações habituais (por exemplo, as relações homens-objetos) são invertidas e deslocadas; no fato, enfim, que resume tudo, que Cremonini nunca pode pintar um círculo sem pintar ao mesmo tempo, à la cantonade, ou seja, ao lado e à distância do círculo, mas ao mesmo tempo que ele, e perto dele, que desafia sua lei, e “figura” a eficácia de outra lei, ausente em pessoa: as grandes verticais

Enfim, o último efeito desta necessidade: o da eficácia das relações abstratas que são o objeto ausente da pintura de Cremonini: o que acontece aos rostos humanos. Gritaram expressionismo diante desses rostos deformados, às vezes aparentemente monstruosos, senão disformes. Assim, se permanece em uma ideologia humanista-religiosa da função do rosto humano na arte, ao mesmo tempo que em uma ideologia idealista do feio (a estética do feio é a ideologia do expressionismo), que confunde a deformação com a deformidade. A função da ideologia humanista-religiosa do rosto humano é ser a sede da “alma”, da subjetividade e, portanto, a prova visível da existência do sujeito humano, em toda a força ideológica do conceito de sujeito (centro a partir do qual o “mundo” se origina, porque o sujeito humano é o centro de seu mundo, como um sujeito perceptivo, como um sujeito ativo “criador”, como sujeito livre e, portanto, responsável por seus objetos e seus sentidos). A partir dessas premissas ideológicas, é óbvio que o rosto humano só pode ser pintado em sua individualidade identificável, portanto, reconhecível (esses traços individualizantes), e reconhecíveis mesmo nas variações de sua singularidade (esses sentimentos, que “expressam” a qualidade e a função religiosa desse sujeito, centro e fonte do seu “mundo”). A estética da deformidade (do feio) não é, em princípio, a crítica nem a revogação dessas categorias humanistas-ideológicas, mas uma de suas variações simples. É por isso que os rostos humanos de Cremonini não são expressionistas, pois não são disformes, mas deformados: sua deformação é apenas uma ausência determinada de forma, “figuração” de seu anonimato, e é esse anonimato que constitui a revogação efetiva das categorias da ideologia humanista. Propriamente falando, a deformação que Cremonini faz sofrer seus rostos é uma deformação determinada, na medida em que não substitui uma identidade por outra em um rosto, em que não dá aos rostos tal “expressão” (da alma, do sujeito), em vez de lhe dar outra: retira-lhes, com toda a expressão, a função ideológica que esta expressão assegura nas cumplicidades da ideologia humanista da arte. Se os rostos de Cremonini estão deformados, é porque não possuem a forma de individualidade, ou seja, de subjetividade, na qual os “homens” reconhecem imediatamente que o homem é o sujeito, o centro, o autor, o “criador” de seus objetos e de seu mundo. Os rostos humanos de Cremonini são tais que não podem ser vistos, isto é, identificados como portadores da função ideológica de expressão de sujeitos. É por isso que são tão mal representados, apenas esboçados, como se, em vez de serem os atores de seus gestos, fossem apenas o traço. Eles são assombrados por uma ausência: uma ausência puramente negativa, a da função humanista que os rejeita, e que é rejeitada por eles; e uma ausência positiva, determinada, aquela da estrutura do mundo que os determina, que os faz ser os seres anônimos que são, efeitos estruturais das relações reais que os governam. Se estes rostos são “inexpressivos”, porque não estão individualizados na forma ideológica de sujeitos identificáveis, é porque não são a expressão de sua “alma”, mas a expressão, se você quiser (mas este termo é inadequado: seria melhor dizer efeito estrutural), de uma ausência, visível neles, das relações estruturais que governam seu mundo, seus gestos e mesmo sua liberdade vivida. Todo o “homem” está muito presente na obra de Cremonini, mas justamente porque ele não está, porque sua dupla ausência (negativa, positiva) é sua existência mesma. É por isso que sua pintura é profundamente anti-humanista, e materialista. É também por isso que sua pintura interdita ao espectador as cumplicidades da comunhão na partilha complacente do pão humanista, cumplicidade pela qual o espectador é confirmado em sua ideologia espontânea pela sua figuração “pintada”. É porque, enfim, sua pintura o interdita de se reconhecer, como “criador”, e de se entregar às telas que pinta: pois suas telas são a refutação em ato da ideologia da criação, mesmo que fosse estética. Este desvio impede Cremonini de se repetir, isto é, compadecer-se neste reconhecimento, e ele não pode se repetir porque sua pintura interdita esse reconhecimento. Se ele continua a descobrir e, portanto, a mudar, não é, como os outros, por gosto ou exercício de virtuosismo, mas pela lógica mesma do que faz, e desde o início, apesar de seu ponto de partida, e do “projeto ideológico” do qual ele partiu. Que um indivíduo possa até esse ponto abstrair-se de sua pintura, isto é, recusar nela todos os benefícios da complacência do reconhecimento de si, que uma pintura possa a esse ponto fazer abstração de seu pintor (ou seja, recusar a ser seu próprio espelho ideológico, o reflexo de uma ideologia da “criação estética”), é aqui o que se vincula profundamente ao significado desta pintura. Se Cremonini “pinta” as relações “abstratas”, se ele é de fato esse pintor da abstração que tentamos definir, ele não pode “pintar” esta abstração se não na condição de estar presente em sua pintura na forma determinada das relações que ele pinta: na forma de sua ausência, isto é, na forma de sua própria ausência.

É justamente esse anti-humanismo radical da obra de Cremonini que lhe dá um tal poder sobre os “homens” que nós somos. Não podemos “nos reconhecer” (ideologicamente) em suas telas. E é porque nós não podemos “nos reconhecer” que podemos, na forma específica que nos é fornecida pela arte, aqui a pintura, nos conhecer. Se Cremonini não “pinta” do “homem” mais do que sua realidade: essas relações “abstratas” que o constituem em seu ser, que fazem até sua individualidade e liberdade – é que ele sabe também que toda obra pintada só se pinta para ser vista, e vista por homens vivos, “concretos”, capazes de se determinar, em parte, dentro dos limites objetivos, determinados, de sua liberdade, pela mesma visão do que são. A via que Cremonini utiliza é aquela que foi aberta aos homens pelos grandes pensadores revolucionários, teóricos e políticos, os grandes pensadores materialistas, que compreenderam que a liberdade dos homens passava, não pela complacência de seu reconhecimento ideológico, mas pelo conhecimento das leis de sua servidão, e que a “realização” de sua individualidade concreta passava pela análise e domínio das relações abstratas que os governam. À sua maneira, a seu nível, com os seus próprios meios, no elemento não da filosofia ou da ciência, mas da pintura, Cremonini segue a mesma via. Este pintor do abstrato, como todos os grandes filósofos e sábios revolucionários, não pintaria, e ele não pintaria a “abstração” de seu mundo, se não pintasse para os homens concretos, os únicos homens existentes, para nós.

Toda obra de arte nasce de um projeto ao mesmo tempo estético e ideológico. Quando ela existe, como obra de arte, produz, enquanto obra de arte (pelo tipo de crítica e conhecimento que instaura no aspecto da ideologia que nos mostra), um efeito ideológico. Se, como bem assinalou Establet [3] em um recente e muito breve artigo, a “cultura” é o nome comum do conceito marxista do ideológico, a obra de arte, enquanto objeto estético, não pertence mais à “cultura” do que pertence à “cultura” um instrumento de produção (uma locomotiva) ou os conhecimentos científicos. Mas, como qualquer outro objeto, incluindo um instrumento de produção e um conhecimento, ou mesmo o corpo das ciências, uma obra de arte pode se tornar um elemento do ideológico, ou seja, inserir-se no sistema de relações que constituem o ideológico, onde se refletem, em uma relação imaginária, as relações que os “homens” (isto é, os membros das classes sociais, em nossa sociedade de classes) mantêm com as relações estruturais que constituem suas “condições de existência”. Talvez até possamos avançar a seguinte proposição, que a função específica da obra de arte é mostrar, pela distância que ela instaura com ela, a realidade da ideologia existente (desta ou daquela de suas formas), a obra de arte não pode não exercer um efeito diretamente ideológico, que ela mantém com a ideologia uma relação mais próxima do que qualquer outro objeto, e que não é possível pensar a obra de arte, em sua existência especificamente estética, sem levar em conta esta relação privilegiada com a ideologia, isto é, sem levar em conta seu efeito ideológico direto e inevitável. Do mesmo modo que tanto um grande filósofo como um grande político revolucionário têm em conta em seu próprio pensamento os efeitos históricos de sua tomada de posição, mesmo dentro do sistema rigoroso e objetivo de seu próprio pensamento – um grande artista não pode deixar de levar em conta, em sua própria obra, em sua disposição e economia interior, os efeitos ideológicos necessariamente produzidos por sua existência. Se é perfeitamente lúcido ou não, é outra questão. De todo modo, sabemos que a “consciência” é secundária, mesmo quando ela pensa, no princípio do materialismo, sua posição derivada e condicionada.

Notas:

[1]. A tradução que agora se publica, é feita a partir dessa segunda versão, não contendo as notas anexas nos Écrits philosophiques et politiques Vol. II que trazem as comparações entre essa versão e a versão anterior. As duas notas abaixo são de autoria do próprio Althusser. (Nota do tradutor)

[2]. Este é, em meu juízo, o erro da encenação de Georges Dandin, de Planchon, pelo menos tal como eu vi em Avignon em julho de 1966: não se pode encenar em pessoa as classes sociais, em um texto que não trata mais do que alguns de seus efeitos estruturais.

[3]. Veja o início desta investigação, nº 6 de Démocratie nouvelle. [Roger Establet, “Culture et idéologie”, Démocratie nouvelle, junho de 1966. Onde se lê, por exemplo: “O ideológico é o lugar onde o materialismo histórico pode e deve apropriar-se de pleno direito do conceito de ‘cultura’.”]

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