A filosofia não é um diálogo

Por Slavoj Žižek, traduzido por Thales Fonseca

Dificilmente se produzirá um diálogo entre nós[1], posto que em linhas gerais somos da mesma opinião. Porém, poderia ser isso – para começar com uma provocação – um sinal da verdadeira filosofia? Sou da mesma opinião que Badiou quando sublinha, seguindo Platão, que a filosofia é axiomática e quando levanta a pergunta sobre como se pode reconhecer o verdadeiro filósofo. Se há dois indivíduos sentados frente a frente em um café e um propõe ao outro: “Vamos discutir isto a fundo!”, o filósofo dirá em seguida que lamenta pois terá que ir embora, e desaparecerá o mais rápido possível.


Sempre considerei os diálogos tardios de Platão como os seus diálogos propriamente filosóficos. Neles, uma pessoa fala quase ininterruptamente; as intervenções dos outros, por exemplo em Sofista[2], apenas poderiam preencher meia página, e são do estilo de “Você tem toda razão”, “Absolutamente”, “Isso mesmo”. Por acaso deveria ser de outro modo? A filosofia não é um diálogo. Me dê um só exemplo de um diálogo filosófico com êxito que não tenha sido um terrível mal-entendido. Isso é válido inclusive para os casos mais excepcionais: Aristóteles não entendeu bem Platão; Hegel, obviamente, não entendeu bem Kant, ainda que talvez tivesse gostado; e, pior ainda, Marx entendeu mal a Hegel, ainda que isso não lhe importasse. E Heidegger, no fundo, entendeu tudo errado em todos eles. Não há diálogo então… Mas continuemos.

Permitam-me abordar o problema de uma maneira habitual. É certo: nós, os filósofos, somos hoje interpelados; as pessoas nos perguntam e nos demandam; se espera que a gente intervenha, que a gente se meta na opinião pública europeia etc. Como deveríamos reagir diante dessas demandas? Penso que de uma maneira não muito diferente, ainda que não exatamente igual, de um psicanalista diante de um paciente: porque o paciente também demanda algo. Só que, com essas demandas, poucas vezes se resolve a questão. São falsas demandas, ainda que denotem um problema real que ao mesmo tempo ocultam. Retomemos aqui o tema da incomensurabilidade mencionado por Alain Badiou. Em seu magnífico ensaio sobre o 11 de setembro, ele se vale do conceito deleuziano de “síntese disjuntiva”. Quando se pergunta algo aos filósofos, no geral, se trata de muito mais que uma pergunta: a opinião pública busca orientação em uma situação problemática. Por exemplo: hoje nos encontramos em guerra contra o terror e isso nos leva a problemas graves. Deveríamos trocar nossa liberdade pela segurança frente ao terror? Deveríamos levar ao extremo a abertura liberal – inclusive se ao fazê-lo cortamos nossas próprias raízes e perdemos nossa identidade –, ou sublinhar mais nossa identidade? Posto que essas possibilidades de escolha, frente às quais estamos juntos, constituem uma síntese disjuntiva, quer dizer, são falsas alternativas, o primeiro gesto de um filósofo deve ser: é preciso modificar os próprios conceitos do debate, e isso, acredito eu, representa exatamente o negativo fotográfico daquilo que Badiou define como “escolha radical”. Em nosso caso, trata-se, concretamente, de que “liberalismo”, “guerra contra o terror” e o que se denomina “terrorismo fundamentalista” constituem, todos eles, sínteses disjuntivas, e não a escolha radical. Devemos modificar os conceitos do debate. Para dar outro exemplo: no verão de 2003, os grandes filósofos europeus, Derrida, Habermas e outros, e inclusive alguns norte-americanos, se intrometeram respeitosamente na opinião pública e advogaram por uma nova Europa. Isso não diz muitíssimo sobre suas posições filosóficas? É sempre assim: as coincidências políticas dos filósofos revelam algo sobre sua filosofia. Tomemos Richard Rorty, com o qual não estou filosoficamente de acordo em nenhum aspecto, porém o qual considero um liberal inteligente, que não tem objeções em sublinhar o evidente. Os liberais são demasiadamente elegantes para fazer isso, e estou me referindo aos liberais que se diferenciam mais, porém têm menos força. Rorty explica do que se trata quando pessoas como ele, Derrida, Habermas e – desde o rincão cognitivista – Daniel Dennett debatem filosoficamente. Uma visada sobre seus posicionamentos políticos nos mostra outra imagem: todos, sem distinção, estão um pouco à esquerda do centro democrático. A típica conclusão pragmática de Rorty é que seguirá existindo democracia, inclusive um pouco mais que agora. Isso mostra que a filosofia é insignificante. Será que é realmente? Consideremos como caso paradigmático as coincidências políticas entre Habermas e Derrida: elas não seriam um sinal de que seus posicionamentos filosóficos tampouco são realmente incomensuráveis, de que os pontos em que eles se opõem constituem tão somente uma síntese disjuntiva?

Se alguém observa cuidadosamente suas estruturas de pensamento, essa suposição se vê confirmada. Em ambas subjaz de igual maneira o problema da comunicação; mais exatamente, o de uma comunicação que se abre ao outro, lhe reconhece e acolhe sua alteridade, em lugar de violá-la. Nos enfrentamos aqui, acredito eu, com duas versões complementares, inclusive quando Habermas sustenta com o outro uma comunicação não deformada e na ordem particular que tem, enquanto Derrida destaca justamente o contrário: que um deveria se abrir à contingência radical do outro. Segundo o meu entender, o grande mérito de Badiou frente a essas duas posições complementares reside em ter modificado todo campo com a sua Ética. O problema não é a alteridade, mas o Mesmo.[3] Tal é, para mim, o primeiro gesto do filósofo quando o importunam com demandas: modificar os conceitos mesmos do debate. Atualmente, por exemplo, a realidade virtual é um tema na moda; vivemos em um universo virtual. Diante disso, surgem as seguintes perguntas: perdemos contato com a realidade autêntica? Estamos completamente alienados? Aqui, nos chocamos de novo com a síntese disjuntiva: podemos imaginar pós-modernistas cuja maravilhosa subjetividade nômade poderia passar de uma realidade artificial a outra; ou conservadores nostálgicos e conservadores de esquerda para quem isso seria um horror e que opinariam que em lugar disso deveríamos – não importa de que maneira – regressar à experiência autêntica. Teríamos que fazer algo distinto: descartar os conceitos do debate e afirmar que o problema não é a realidade virtual, mas a realidade do virtual. Como é isso?

Quero dizer que a realidade virtual – Badiou escreveu isto em algum lugar – é uma ideia bastante banal. Não nos dá nada para pensar. A realidade virtual significa o seguinte: “Veja como podemos produzir com nossos joguinhos técnicos uma aparência que ao final consideramos realidade”. Acredito que a realidade do virtual é, por sua vez, mais duvidosa. O virtual é algo, porém algo que não é em sua totalidade; é, se assim quisermos, o efeito que de fato produz o real. Aí reside o verdadeiro problema.

Passemos ao seguinte tema que comove os jornais: o hedonismo. Também temos que adotar uma posição a seu respeito. Que fazer quando os antigos valores se desmoronam e os homens perdem a fé, se entregam ao egoísmo e dedicam sua vida tão somente à busca por prazer? Novamente, o campo se divide em duas frentes: toda postura moral inclui um ato de violência – Judith Butler representa essa postura tipicamente pós-moderna em seu último livro, disponível até o momento apenas em sua edição em alemão: Kritik der etischen Gewalt[4] –, devemos ser flexíveis e outras coisas mais, o que desemboca de novo no tema da subjetividade nômade; o país necessita de valores e obrigações firmes, é a resposta que chega da outra frente. Obviamente, deveríamos mais uma vez abordar o problema de maneira direta e primeiramente questionar os conceitos do debate, aplicando uma espécie de Verfrerndung brechtiano; a coisa em si se tornaria estranha: “Alto lá! Do que estamos realmente falando?”. Do hedonismo em uma sociedade de consumo cuja característica principal é a proibição radical de se gozar de maneira direta. Nos dizem o tempo todo: “Você deve gozar, porém para poder realmente gozar, você deve primeiro correr, fazer dieta e ser proibido de assediar alguém sexualmente”. Por trás disso há uma absoluta disciplina corporal. No entanto, voltemos à fé, ao clichê de que hoje em dia perdemos a fé. Não se trata de nada mais que um pseudodebate: hoje cremos mais do que nunca – e nisso está o problema, tal como mostrou Robert Pfaller. Os conceitos do debate já não são, pois, os mesmos. Porém, lamentavelmente, a grande maioria dos filósofos não está à altura do desafio nesse nível e nos aborrecem com resposta falsas.

As piores são, sem dúvida, as respostas ao estilo das monstruosidades new age, que já não merecem a honra de ser denominadas “filosofia”. A todos nós deve ocorrer alguns exemplos interessantes. Compare – se for velho o bastante, como lamentavelmente somos eu e alguns de vocês – uma livraria típica dedicada às ciências sociais e humanas de hoje com uma de vinte e cinco anos atrás. Hoje se fala três vezes mais de sabedoria, iluminação e new age que de filosofia. O que expus até aqui referia-se a primeira falsa resposta, o que já era demais. Outras duas respostas falsas me parecem muito mais problemáticas. Quais? Voltarei a me remeter a Badiou, que destaca que a filosofia e a política não deveriam se misturar. A meu ver, em seu texto sobre o final do comunismo, ele afirma que no que diz respeito ao totalitarismo, o problema está no fato de não termos uma teoria sociopolítica apropriada, com a qual se possa analisar a base conceitual desses fenômenos claramente detestáveis, como o nazismo e o stalinismo, enquanto projetos políticos. Dar uma resposta filosófica fast-food que se venda como explicação profunda, quando na realidade é só um substituto que nos exime de pensar, seria o pior que poderia fazer um filósofo – e que infelizmente se faz. Talvez eu os decepcione com isso, mas meu respeito por Adorno não me impede de dizer que nisso reside o problema da Dialética do Esclarecimento[5]. Em vez de uma análise concreta, nos é oferecido um exemplo paradigmático de confusão (no sentido negativo da palavra) filosófica, uma espécie de curto-circuito político-ontológico: a categoria pseudotranscendental de “projeto iluminista” deveria explicar os fenômenos totalitários de maneira imediata. Uma versão recente desse gesto filosófico dissimulado e falso, cuja filosofia nos livra de pensar, é o curto-circuito pós-moderno do totalitarismo político com o conceito filosófico de totalidade. Aqui, a revelação ontológica é convocada como uma explicação imediata quase transcendental de fenômenos políticos concretos. A filosofia pós-moderna oferece a aparência de pensamento para desacreditar de antemão todo acontecimento – no sentido badiouniano do novo que irrompe. Isso é também o que nos últimos dez ou quinze anos está na moda a respeito do Holocausto e outras formas do mal radical irrepresentável: a proibição de analisar esses fenômenos – só poderíamos ser testemunhas deles, toda explicação implicaria em trair as vítimas…

Nisso subjaz, acredito eu, a representação de que devemos viver com nosso mundo imperfeito, já que toda alternativa radical conduz cedo ou tarde ao Gulag. Nos advertem sobre o perigo de toda mudança radical. Todo o discurso sobre a abertura à alteridade radical não é senão a advertência frente ao perigo da mudança radical! Essa é, pois, a ideologia filosófica pós-moderna. Junto dela encontramos outra questão, não menos interessante: uma espécie de neokantismo. Na França isso é representado por Alain Renault, bem como por Luc Ferry que inclusive é, atualmente, ministro da Educação; na Alemanha por Habermas, o qual – ele gostando ou não – atua hoje, como se sabe, como filósofo do Estado; [José María] Aznar confirmou de maneira evidente o que geralmente era somente insinuado, quando há dois anos atrás propôs nomear oficialmente Habermas como filósofo do Estado da Espanha. Como isso é possível?

Acredito ter conseguido resolver esse dilema com sucesso. Certo neokantismo encaixa perfeitamente com a definição da filosofia do Estado (digo isso apesar de meu carinho por Kant). Qual é a função principal da filosofia do Estado na atual dinâmica da sociedade capitalista? Deve endossar o desenvolvimento, irrenunciável para o capitalismo, de novas ciências, da técnica e da economia, porém, ao mesmo tempo, bloquear suas radicais consequências éticas e sociais. Isso é precisamente o que Habermas fez, pelo menos com sua intromissão no debate biogenético. Ele representa a solução tipicamente neokantiana: na ciência se pode fazer o que quiser, desde que se esteja lidando com o que se move no âmbito estreito dos fenômenos cognitivos. Porém, outra coisa é o homem como sujeito moral que atua de maneira autônoma, e esse âmbito deve ser protegido contra qualquer ameaça. É desse modo que surgem todos esses pseudoproblemas: quão longe podemos chegar na biogenética? Ela ameaça nossa liberdade e autonomia? Na minha opinião, essas são perguntas falsas; em todo caso, não são perguntas realmente filosóficas. A única pergunta realmente filosófica é a seguinte: há nos resultados da biogenética algo que nos obrigaria a redefinir o que entendemos por natureza humana, o que entendemos sobre a maneira humana de ser?

É muito triste ver como Habermas tenta controlar os resultados explosivos da biogenética, conter suas consequências filosóficas. Toda sua intervenção revela o temor de que algo possa modificar-se profundamente, de que possa surgir uma nova dimensão do “homem”, e de que a velha representação da dignidade e da autonomia humanas não se mantenha ilesa. Suas reações exageradas são ilustrativas, como no caso do discurso de Slorterdijk em Elmau a respeito da biogenética e Heidegger: quando Sloterdijk assinalou que a biogenética nos obriga a formular novas regras da ética, Habermas captou somente o eco da eugenia nacional-socialista. Essa postura frente ao progresso científico desemboca em uma “tentação da tentação (para resistir)”. Porém, a tentação que se deve resistir é a postura pseudomoral que representa a descoberta da ciência como tentação, como o que nos permite “ir longe demais” – até o âmbito proibido (da manipulação genética e assim por diante) – e desse modo colocar em perigo o núcleo mais íntimo de nosso próprio ser enquanto humanos.

A recente “crise” moral, provocada pela biogenética, culminou de fato na necessidade de uma filosofia que possa ser chamada, com toda razão, “filosofia do Estado”: uma filosofia que, por um lado, tolera em silêncio o progresso científico e técnico, mas, por outro, tenta controlar seus efeitos sobre nossa ordem sociossimbólica, isto é, impedir que se modifique a atual imagem teológico-ética do mundo. Não surpreende, então, que aqueles que chegam mais longe nisso sejam neokantianos. O próprio Kant se encontrava frente ao problema de respeitar a ciência newtoniana, mas ao mesmo tempo garantir que houvesse um reino de responsabilidade moral fora da ciência. Foi assim que ele delimitou o campo de validade do conhecimento a fim de criar um espaço para a fé e a moral. Por acaso não se encontram os atuais filósofos do Estado frente a mesma tarefa? Seu esforço talvez não toque na questão sobre como se pode, por meio de distintas versões da reflexão transcendental, circunscrever a ciência a seu horizonte de significado estabelecido, e como poderiam ser denunciadas por “inadmissíveis” suas consequências para o âmbito moral-religioso? O interessante é que a proposta de Sloterdijk acerca de uma síntese “humanística” das novas verdade científicas e do velho horizonte de significados, ainda que seja mais refinada, irônica e cética que a “filosofia do Estado” de Habermas, somente se diferencia dela por uma linha de demarcação quase invisível (ou, para ser mais exato: a proposta de Sloterdijk oscila entre o compromisso de Habermas e as monstruosidades new age).

Quando falamos de filosofia e política, geralmente encontramos, entendo eu, a explicação do fracasso da Escola de Frankfurt. Qual é o resultado da Escola de Frankfurt? Como sintetizá-la? Seu princípio fundamental é a Dialética do Esclarecimento[6]: a representação de que há um erro estrutural que é inerente ao projeto moderno de emancipação; todas essas coisas horrorosas, totalitarismos entre outras, não são resíduos do passado, mas seu produto lógico. Permitam-me continuar como se fosse bobo, e então eu diria: o stalinismo deveria ter sido o exemplo paradigmático, porque – para utilizar conceitos extremamente simplificados e estúpidos – o fascismo foi uma reação conservadora. Por trás dele havia pessoas que – para expressar outra vez de uma forma bastante ingênua – conceberam algo extremamente mal e colocaram em prática algo extremamente mal, no entanto (que surpresa!), o verdadeiro trauma é o stalinismo. O projeto comunista – espero que estejam de acordo comigo – surgiu com um potencial emancipador violento e fracassou. Esse é o trauma da dialética do esclarecimento. E o que encontramos na Teoria Crítica? Nada disso. Encontramos esta Behemoth[7] de Neumann, a pior sociologia jornalística que se pode imaginar, baseada na ideia da moda sobre uma convergência na qual o New Deal norte-americano de Roosevelt, a Alemanha nazista e a União Soviética tendem a mesma sociedade organizada. Este O marxismo soviético[8] de Marcuse, um livro muito raro, que não deixa sequer entrever onde se situa o autor. Depois, há ainda algumas tentativas de habermasianos, como Andrew Arato, de utilizar a ideia da sociedade civil como lugar de existência contra o domínio comunista totalitário. Porém, nem mesmo ali se acha uma teoria que ajude a explicar o comunismo stalinista. Além disso, acredito que a teoria da sociedade civil é totalmente errônea. De todo modo, devo admitir que cheguei à conclusão de que tanto no caso do desmoronamento da Iugoslávia, como na maioria dos outros conflitos entre Estado e sociedade civil, sempre estive do lado do Estado. A sociedade civil implicava oposição democrática, porém implicava também nacionalismo violento. A fórmula de Milošević descrevia exatamente essa mescla extremamente explosiva de sociedade civil nacionalista e nomenclatura de partido. Os dissidentes exigiam um diálogo entre a nomenclatura do partido e a sociedade e civil, e Milošević colocou isso em prática.

Tomemos Habermas: a leitura de seus livros revela que a metade de seu país, a Alemanha, era socialista? Não. É como se esse fato não existisse. Acredito que isso é, segundo um conceito da moda, uma espécie de lacuna sintomática, um lugar vazio.

A partir de agora serei um pouco mais conciso, e gostaria de fechar com uma observação sobre o possível papel da filosofia em nossa sociedade. Sobre isso, observa-se uma série de posições filosóficas falsas: a filosofia do Estado neokantiana, o neosofismo pós-moderno etc. O pior é a extrema moralização da filosofia, cuja lógica se expressa mais ou menos da seguinte maneira: “Sou filósofo e como tal idealizo grandes sistemas metafísicos, mas também sou uma boa pessoa e reflito sobre quanto mal há neste mundo. Devemos combater esse mal…”. Derrida é o mais frágil nesse ponto, quando, em meio a seu livro Espectros de Marx[9], torna-se completamente não-filosófico e enuncia sobre o mal deste mundo em dez pontos. Inacreditável! Não podia acreditar no que via com meus olhos quando li isso, porém ali estavam os dez pontos, e davam conta de uma total falta de pensamento: os excluídos de nossas cidades, que carecem de exemplo e recursos; os cartéis de drogas; o domínio dos monopólios midiáticos etc. Como se quisesse passar a impressão de que não só é um grande filósofo, mas também um homem de bom coração. Perdoem-me, mas eu só consigo pensar em uma comparação relativamente brutal: no final das obras de literatura popular normalmente há uma breve descrição do autor ou da autora e, para exaltar um pouco seu currículo, acrescenta-se algo como: “Vive atualmente no sul da França rodeado por muitos gatos e dedica-se à pintura…”. Trata-se mais ou menos do mesmo. Quase me faz querer acrescentar algo malicioso ao meu próximo livro: “Em sua vida privada tortura cachorros e mata aranhas”, simplesmente para levar esse costume ao absurdo. Porém, com isso, quero dizer o seguinte: quando perguntam a nós, filósofos, nossa opinião, na realidade o que se pretende, geralmente, é que nos representemos a nós mesmos. Nosso conhecimento é, pois, uma espécie de referência vaga que confere autoridade a nossas opiniões. É como se perguntassem a um grande escritor o que gosta de comer e este respondesse que a cozinha italiana é melhor que a chinesa. Considero, portanto, que devemos responder somente ao que é inerente à filosofia.

Qual é, portanto, o papel da filosofia? Aqui, nos chocamos com um paradoxo: a filosofia não desempenha quase nunca, e menos ainda em seus períodos criativos, um papel normal como mera filosofia. Vejamos alguns fatos desconectados a respeito: no século XIX, a literatura desempenhou frequentemente, em alguns países, como Hungria e Polônia, o papel da filosofia; por exemplo, a visão filosófica ou ideológica subjacente ao movimento nacional foi formulada de modo predominante no marco da literatura. Inclusive nos Estados Unidos, em 99% dos casos busca-se em vão a denominada filosofia continental nas faculdades de filosofia (e isso deve ser tomado de maneira literal: de 4000 universidades norte-americanas que contam com uma faculdade de filosofia, somente em 15 ou 20 delas a filosofia continental é representada de maneira séria). Em vez disso, encontra-se nos estudos culturais, nos departamentos de inglês, francês e alemão. Quando se quer ler Hegel e Badiou é preciso, paradoxalmente, escolher, como matérias centrais, literatura comparada em francês e alemão. Por outro lado, quando se investiga o cérebro de ratos e se faz experimentos com animais, então deve-se concorrer às faculdades de filosofia. No entanto, não é incomum que a filosofia ocupe o lugar de outra matéria: quando o comunismo caiu, a filosofia foi o primeiro espaço no qual uma resistência foi formulada. Nesse momento, foi mais política do que nunca. Talvez poderiam objetar que a grande filosofia alemã não foi nada mais que filosofia. De modo algum: já desde Heine, e não só a partir de Marx, sabe-se que a filosofia foi o substituto alemão da revolução. Este é o dilema: não se pode ter as duas coisas. É falso afirmar que os franceses poderiam ter filosofado caso fossem suficientemente inteligentes. Inversamente, a ausência de revolução foi a condição para a filosofia alemã. Minha ideia é, portanto, a seguinte: talvez devamos deixar que se quebre o sonho de que haja uma filosofia normal. Talvez a filosofia seja a anormalidade por excelência. Eu leria assim a teoria de Badiou. (Badiou e eu trocamos flores, mas na verdade nos odiamos. Costumamos brincar que se um de nós tomar o poder, o outro será enviado a um campo de concentração; mas isso é outra história). Estou completamente de acordo com sua tese sobre as condições da filosofia, segundo as quais ela é, por definição, excessiva e, literalmente, só existe através o vínculo excessivo com condições externas que são de natureza amorosa, política, científica ou artística.

Antes de terminar, gostaria de acrescentar uma crítica, ainda que muito amigável. Nossa distinta avaliação de Kant poderia ser entendida como uma discrepância entre mim e Badiou. E eu gostaria de lhe perguntar, talvez somente de maneira retórica, se por acaso ele também acredita que há em Kant – apesar de todas as coisas terríveis que disse acerca de certo neokantismo – algo que vale a pena ser resgatado. O que? Da filosofia, me interessa, sobretudo, o momento de estranheza mencionado por Badiou. Por acaso não está no começo da filosofia? Os denominados “filósofos jônicos da natureza” apareceram na atual Ásia turca com o desenvolvimento da produção de mercadorias.[10] Não quero traçar aqui um paralelismo marxista vulgar de que a produção de mercadorias implica uma abstração e que essa abstração da mercadoria subjaz à abstração filosófica. Aonde quero chegar é a esse momento de estranheza que surge através de uma deslocação; a filosofia – assim Heidegger nos diria –[11] desde sempre não foi o discurso de quem se sentia em casa. É sempre necessário um mínimo de decomposição da sociedade orgânica. Desde Sócrates, encontramos sem cessar essa alteridade, essa lacuna, e, curiosamente, até mesmo em Descartes pode se descobrir o estranho – e, com isso, ridicularizar seus difamadores. No segundo parágrafo do Discurso do método encontramos, acredito eu, sua célebre observação sobre como descobrimos, ao viajar, não só a estranheza de outros costumes, mas também a nossa própria cultura parece não menos estranha, inclusive ridícula, se a vemos com outros olhos.[12] Esse é, em minha opinião, o grau zero da filosofia. Todo filósofo ocupa esse lugar de deslocação.

Concluo com outra pergunta para Badiou, pois gostaria agora de reabilitar o conceito kantiano de Weltbürgergesellschaft [sociedade civil cosmopolita], frequentemente interpretado de maneira leviana.[13] Acredito que esse conceito deve ser vinculado com a diferenciação que Kant faz entre o uso público e o uso privado da razão, cuja particularidade consiste em que se opõe à intuição: o que Kant denomina de uso privado da razão refere-se ao trabalho do servidor do Estado no aparato do Estado. Quanto aos debates intelectuais, inclusive quando são desenvolvidos de maneira privada, ele denomina, ao contrário, uso público da razão. O que Kant aponta com isso? Para ele, o privado é, em primeira instância, a comunidade particular enraizada em um lugar, porém sua ideia é que, como intelectuais, deveríamos ocupar a posição do universal singular; isto é, de uma singularidade que participa da universalidade de maneira imediata, uma vez que rompe a representação de uma ordem particular. Só se pode ser humano de maneira imediata sem ser antes alemão, francês, inglês etc. Esse legado de Kant é hoje mais atual que nunca. A ideia de um debate intelectual que rompe a ordem particular contradiz a teoria conservadora segundo a qual somente a identificação total com as próprias raízes permite ser humano no sentido empático da expressão. Conforme essa teoria, se é completamente humano enquanto se é completamente austríaco, esloveno, francês etc. Porém, a mensagem fundamental da filosofia consiste em dizer que se pode participar de maneira imediata da universalidade, para além das identificações particulares.


* Texto elaborado por cotejamento de Filosofía y actualidad: el debate e Philosophy in the Present, versões em espanhol e inglês do original alemão Philosophie und Aktualitat. Ein Streitgespräch


Nota:

[1] N. T.: Slavoj Žižek está se referindo a Alain Badiou. Isto porque o presente ensaio remete a um debate mais amplo entre os dois filósofos – realizado em 2004, em Viena –, cujas partes foram todas publicadas no LavraPalavra. O debate como um todo conta: com uma exposição de Badiou, intitulada Pensando o evento (https://18.118.106.12/2020/09/24/pensando-o-evento/); a presente exposição de Žižek, sob o título A filosofia não é um diálogo; e uma Discussão (https://18.118.106.12/2020/10/29/discussao-alain-badiou-e-slavoj-zizek/) entre ambos.

[2] N. T.: Cf. Platão. Sofista. In: Pessanha, J. A. M. (Org.)., Os pensadores: diálogos Platão (pp. 127-196). São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[3] Alain Badiou, Ethik, Viena, 2003, págs. 40 e seguintes. [N. T.: Cf. Alain Badiou, Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.]

[4] Judith Butler, Kritik der ethischen Gewalt, Franfurt: Suhrkamp Vcrlag, 2003. [N. T.: Atualmente já há edição inclusive em língua portuguesa. Cf. Judith Butler, Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.]

[5] N. T.: Cf. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

[6] N.T.: Idem.

[7] N. T.: não há versão em língua portuguesa.

[8] N.T.: Cf. Herbert Marcuse, O marxismo soviético, Rio de Janeiro: Editora Saga, 1969.

[9] N.T.: Cf. Jacques Derrida, Espectros de Marx, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.]

[10] Cf. Friedrich Albert Lange, Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1974, vols. 1 e 2.

[11] Cf. Martin Heidegger, Die Crundbegriffe der Metaphysik, Frankfurt, 1983, págs. 7 e seguintes. [N. T.: Cf. Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metafísica (2ª ed.), Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.]

[12] Cfr. Rene Descartes, Abhandlung über die Methode, richtig zu denken und Wahrheit in den Wissenschaften zu sachen, 1, 30, In: René Descartes philosophische Werke, Berlim, 1870. [N. T.: Cf. René Descartes, Discurso do método, Porto Alegre: L&PM, 2016.]

[13] Cf. Immanuel Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarung, In: Werke in 12 Bänden, Frankfurt, 1977, vol. 11, pág. 56. [N. T.: Cf. Immanuel Kant, Resposta à pergunta: o que é o iluminismo? In: Immanuel Kant, A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, 2008.]

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