A Revolução Russa, as mulheres negras bolcheviques e a Reprodução Social

Por Bill V. Mullen, via ViewPoint Magazine, traduzido por Vinicius Medeiros

Em seu livro de 1981 a respeito da Revolução de Fevereiro, Tsuyhoshi Hasegawa apresenta a história de uma jovem caminhando em direção à linha das tropas cossacas que haviam confrontado as mulheres em marcha no Dia Internacional da Mulher. Essas mulheres tinham se reunido para protestar contra a guerra, a alta do preço dos alimentos e a necessidade (como dizia o slogan) de “Pão para os trabalhadores!”. “Do seu casaco”, escreve Hasegawa sobre a garota, “ela tirou uma porção de rosas vermelhas e as estendeu ao oficial da tropa. O fato de ele ter inesperadamente aceitado as rosas tornou-se um símbolo de paz e revolução ao mesmo tempo.”[1] Para Jane McDermid e Anna Hillyar, autoras de Midwives of the Revolution: Female Bolsheviks and Women Workers in 1917 [Parteiras da Revolução: Mulheres Bolcheviques e Trabalhadoras em 1917[1]], esse evento sublinha não apenas a centralidade das mulheres bolcheviques[2] no começo da Revolução, como também seu programa de fusão das reivindicações “econômicas” e “políticas”.


Como escreveu Wendy Goldman a respeito da Revolução, as mulheres bolcheviques defendiam que o “capitalismo tinha criado uma nova contradição, experienciada mais duramente pelas mulheres, entre as exigências do trabalho e as necessidades da família”. [2] A opressão das mulheres, afirmavam as bolcheviques, situava-se no trabalho realizado na chamada esfera “privada” do lar, um fardo particular para as mulheres proletárias especificamente. Por sua vez, mulheres como Alexandra Kollontai pressionaram diversas vezes Lenin e os outros líderes bolcheviques a lutarem pela socialização do trabalho doméstico e pela “superação da família” enquanto uma instituição burguesa de opressão. [3]

Da nossa visão atual privilegiada, nós compreendemos a luta por “Pão e Rosas” na Revolução Russa enquanto um esforço de preencher uma lacuna da tentativa marxista de compreender a opressão das mulheres no capitalismo. Um momento marcante desse entendimento foi e continua a ser o livro de 1983 de Lisa Vogel, Marxism and the Oppression of Women [Marxismo e a Opressão das Mulheres]. O livro afirmava que Marx e Engels não haviam analisado satisfatoriamente a família por não enxergarem a relação entre os chamados vida e trabalho “domésticos” e a “o local produtivo” de trabalho. Mais especificamente, Vogel argumenta que, sob o capitalismo, as mulheres têm um papel essencial na reprodução da “força de trabalho”, necessária à reprodução do sistema capitalista em sua totalidade. Vogel escreve:

A luta de classes acerca das condições de produção representa a dinâmica central do desenvolvimento social em sociedades caracterizadas pela exploração. Nessas sociedades, o mais-trabalho é apropriado pela classe dominante e uma condição essencial à produção (…) é a renovação de uma classe de produtores diretos subordinada ao processo de trabalho. Comumente, as reposições geracionais fornecem a maior parte dos trabalhadores necessários para o restabelecimento dessa classe; a capacidade das mulheres de gerar filhos tem, portanto, um papel essencial na sociedade de classe (…) Nas classes dos proprietários (…) a opressão das mulheres resulta de seu papel na manutenção e herança da propriedade (…) Em classes subordinadas (…) a opressão feminina (…) tem origem no envolvimento das mulheres em processos que renovam os produtores diretos, bem como seu envolvimento na produção. [4]

Como, então, poderia a teoria da reprodução social funcionar enquanto estrutura de análise para formas históricas específicas da prática política? Aqui, eu usarei como estudo de caso o impacto da Revolução Russa nos militantes radicais negros – especialmente mulheres negras radicais – que se inspiraram nesse exemplo político. Como sugere a imagem abaixo (um pôster de 1971 de Paul Adams para o National Union of Healthcare Employees – Sindicato Nacional de Trabalhadores da Saúde -, imagem 1), os esforços para conjugar e sintetizar as lutas trabalhistas e domésticas no capitalismo são parte de uma trajetória ativa da política negra radical ao longo do século XX. A seguir, examinarei como as mulheres negras comunistas nos Estados Unidos se referenciaram intelectual e politicamente na Revolução Russa em sua luta pelos direitos trabalhistas das mulheres negras, pelos direitos das trabalhadoras domésticas e por direitos dentro da esfera privada do lar. A atenção que elas prestaram às trabalhadoras domésticas remuneradas nos Estados Unidos produziu, de fato, um insight premonitório sobre a “contradição” que Goldman apontou ter afligido as bolcheviques acerca das “exigências do trabalho e necessidades da família”. Como o trabalho doméstico prestado por elas para pessoas brancas era também trabalho pago, as mulheres negras radicais chegaram a uma análise avançada sobre o papel fundamental do trabalho doméstico na reprodução do sistema capitalista: seus salários literalmente produziam e reproduziam a classe trabalhadora negra, que era sua própria família. Na segundo parte deste ensaio eu trarei outra parte desse fio histórico para observar como ativistas negras/os, pertencentes e próximas/os ao Partido dos Panteras Negras, tiveram a Rússia de 1917 como um modelo para a criação de programas sociais como creches gratuitas e café-da-manhã gratuito. Ao grito bolchevique por “paz, terra e pão”, por exemplo, os Panteras Negras adicionaram comida, vestuário e educação, itens básicos de provimento social. A teoria da reprodução social nos ajuda a perceber o entendimento urgente que essas/es ativistas tinham da maneira desproporcional com que a classe trabalhadora negra era reproduzida socialmente, a ausência ou a excessiva presença da racialização e da generificação no apoio estatal a essa reprodução, e como militantes radicais negras/os buscaram desafiar politicamente essa desigualdade capitalista ao trabalharem na esfera da reprodução social e chamarem a atenção à sua função vital.

Por fim, embora a teoria da reprodução social não fosse um quadro analítico desenvolvido e disponível às primeiras gerações das militantes negras radicais que estão em discussão aqui, seus projetos políticos concretos na área da reprodução social podem ser uma base para as/os teóricas/os da reprodução social atualmente.

Pôster para o Sindicato Nacional de Trabalhadores da Saúde, 1971, Paul Adams.

Os passos iniciais em direção a uma análise integrada da opressão das mulheres sob o capitalismo foram dados cuidadosamente pelas mulheres bolcheviques entre as revoluções de 1905 e 1917. Lembremo-nos da formação dos clubes de mulheres socialistas em São Petersburgo em 1905, do primeiro Congresso de Mulheres de toda a Rússia em 1908 patrocinado pelas/os bolcheviques, da celebração inaugural do Dia Internacional da Mulher em 1913, assim como o lançamento, no mesmo ano, do Rabotnitsa, o jornal bolchevique para mulheres trabalhadoras. Esses eventos refletem a posição material importantíssima das mulheres no proletariado russo (em 1914, metade da classe trabalhadora fabril era composta de mulheres) [6] e as intervenções políticas de líderes socialistas femininas como Alexandra Kollontai. Kollontai se juntou aos bolcheviques em 1904 e foi eleita delegada para o Soviete de Petrogrado em 1917. Na primavera de 1917 ela ajudou a coordenar um sindicato municipal de lavadeiras em São Petersburgo. Ao fazer isso, Kollontai procurava costurar os objetivos “políticos” mais amplos do bolchevismo à localização social das mulheres: “Para as escolas, para os hospitais, para moradia, maternidade, benefícios de cuidado às crianças? Não, nada disso está acontecendo. O dinheiro do povo está indo para o financiamento de combates sangrentos”. [7] O sucesso da agitação das bolcheviques dentro do partido fica evidente na lista bem conhecida de feitos da Revolução: creches, licença maternidade, divórcio a pedido de qualquer um dos cônjuges, intervalos no trabalho para amamentação e programas de alimentação para as crianças. Uma conquista singular da Revolução, o Zhenotdel ou Departamento de Mulheres do Partido, foi estabelecido pelo Comitê Central em 1919 para ampliar a definição de “trabalhador” a fim de incluir mulheres e camponeses.

As mulheres negras atraídas ao Partido Comunista dos Estados Unidos [PCUSA] depois da Revolução podiam agradecer, em parte, à imitação dos bolcheviques pelo partido estadunidense. Em 1919, o partido criou o Departamento de Mulheres do Comitê Central (o Zhenotdel americano) e começou a publicar o jornal The Working Woman [A Mulher Trabalhadora], o Rabonitsa estadunidense. A segunda edição do jornal trouxe um artigo sobre os preços exorbitantes do aluguel no bairro de Harlem, destacando os impactos disso sobre as mulheres negras na esfera doméstica: “Esse peso”, escreveu a repórter Grace Lamb, “recai fortemente sobre as mães e esposas negras, que precisam, por necessidade, suplementar o baixo salário arduamente ganho de seus maridos. Essas mulheres da classe trabalhadora têm suportado as agruras de condições de moradia insalubres”. [8] A terceira edição incluía uma carta de uma trabalhadora doméstica negra se queixando que a jornada de trabalho de 14 horas, somada ao salário de seu marido, era quase insuficiente para sustentar seus 6 filhos. Em resposta à questão feita por ela (“eu me pergunto o que pode ser feito para melhorar nossa condição”), a nota da edição respondia: “A organização é o único caminho para lutar efetivamente por melhores condições de trabalho, jornadas reduzidas e salários mais altos. A exploração de trabalhadores, negros e brancos, só pode ser abolida transformando o atual governo capitalista num governo de trabalhadores, como o da União Soviética”. [9]

Essa análise provisória da esquerda comunista a respeito das vidas das mulheres negras da classe trabalhadora no capitalismo se mostraria consistente com as condições das mulheres negras no trabalho doméstico. Aqui, voltamo-nos às significativas contribuições do movimento comunista dos Estados Unidos nas figuras de Louise Thompson Patterson, Esther Cooper Jackson e Claudia Jones. O ensaio de Patterson de abril de 1936 no Working Woman, intitulado “Toward a Brighter Dawn” [Rumo a um Amanhecer Mais Luminoso], pode ser considerado, em retrospectiva, um momento pioneiro na análise do trabalho doméstico feito por pessoas negras como um ponto nodal dentro do capitalismo. O ensaio de Patterson assumia a forma de um relatório produzido como cobertura de uma “Subseção” especial “da Mulher” no Women’s Comittee of the National Negro Congress [Comitê de Mulheres do Congresso Nacional de Negros], uma frente formada inicialmente pelo CPUSA em 1925 – outro eco da organização bolchevique. Patterson foi a primeira a usar o termo “tripla exploração” para descrever as condições das mulheres negras no capitalismo enquanto “trabalhadoras, mulheres e negras”. [10] O que Patterson queria dizer com “tripla exploração” pode ser melhor compreendido através da ênfase da teoria da reprodução social na integração das esferas doméstica e do trabalho. Patterson elaborou da seguinte maneira:

A crise econômica colocou sobre a mulher negra o teste mais duro. Representando a maior proporção de trabalhadores desempregados no país, negros são discriminados nos auxílios em geral e nos auxílios a desempregados. Negros pagam aluguéis altos nas piores moradias em qualquer cidade. Bairros segregados de negros têm invariavelmente deficiências de creches, parques infantis, unidades de saúde comunitárias, escolas. E diante dessas condições adversas, as mulheres negras precisam sustentar e criar suas famílias. [11]

Voltando a um insight de Lisa Vogel, “nas classes dos proprietários (…) a opressão das mulheres resulta de seu papel na manutenção e herança da propriedade (…) Em classes subordinadas (…) a opressão feminina (…) tem origem no envolvimento das mulheres em processos que renovam os produtores diretos, bem como seu envolvimento na produção.“. Para Patterson, as mulheres negras constituem uma “classe subordinada” explorada no trabalho e em casa e, ainda assim, encarregada de “renovar” os produtores diretos de força de trabalho no capitalismo: “As mulheres negras precisam sustentar e criar suas famílias”. Aqui, o percurso que ela traça é similar à análise de Vogel. O foco do National Negro Congress [Congresso Nacional de Negros] nas condições de trabalho das mulheres negras no trabalho doméstico, colocado no relatório de Patterson, fala dessa capacidade dialética de uma vocação a revelar a opressão simultânea das “classes de proprietários” (ou seja, mulheres brancas burguesas), que contribui com a “manutenção e herança da propriedade”, e das trabalhadoras negras, que trabalham simultaneamente em duas instâncias de reprodução do sistema capitalista: o trabalho doméstico no lar e as tarefas opressivas de uma esfera desarraigada de reprodução social negra, com redução de escolas, parques infantis, creches e moradias.

O escrito seminal de Esther Cooper Jackson sobre as domésticas negras vem diretamente da análise de Patterson. O estudo de Jackson sobre as domésticas foi sua dissertação de mestrado no Oberlin College, finalizado em 1940. Assim como Patterson, seu foco nas mulheres da classe trabalhadora ligava-se diretamente à Revolução Russa. Jackson cita em seu estudo o Decreto da Trabalhadora Doméstica de 1926, na União Soviética, que regulamentava as condições de emprego para as trabalhadoras domésticas, sendo parte da inclusão delas nos sindicatos soviéticos após a Revolução. O título do estudo de Jackson, “The Negro Woman Domestic Worker in Relation to Trade Unionism” [A Mulher Negra Trabalhadora Doméstica em Relação ao Sindicalismo] indica fortemente a influência que teve a Revolução. A análise de Jackson das trabalhadoras domésticas negras realizou diversos avanços a partir de uma perspectiva da reprodução social. Em primeiro lugar, ela situou o trabalho doméstico feito por pessoas negras na década de 30 (o período de foco do estudo) dentro da proletarização do trabalho de negros/as após a Grande Migração Negra. Ciente de que as mulheres negras domésticas haviam sido excluídas dos benefícios sociais do New Deal, como os benefícios para desempregados, Jackson busca inscrever as domésticas remuneradas na categoria “trabalhadora”. [13] Em segundo lugar, o ensaio insere o trabalho doméstico remunerado realizado por pessoas negras na trajetória histórica do capitalismo, fluindo e refluindo de acordo com a oferta e demanda, a mecanização e as condições econômicas dos empregadores/as. Em terceiro lugar, a análise situa empregadores/as brancos/as e trabalhadoras/es negras/os dentro de um entendimento unitário da exploração capitalista. A observação de Jackson, por exemplo, de que aparelhos feitos para economizar tempo de trabalho doméstico das classes médias afetavam os níveis de empregabilidade doméstica de mulheres negras, fornece uma perspectiva integrada sobre a funcionalidade da opressão das mulheres sob o capitalismo, atravessando as demarcações de classe e raça.

Essencialmente, o chamado que o ensaio fazia à “sindicalização” das trabalhadoras domésticas pretendia estabelecer uma solidariedade entre trabalhadores que não fosse apenas contra a tendência do mercado à divisão por meio da competição, mas contra o mercado em si. Cooper situa o trabalho doméstico dentro de uma economia política cambiante da opressão das mulheres na modernidade capitalista. Ela nota que entre 1900 e 1914 a proporção de mulheres negras empregadas no trabalho doméstico reduziu devido a uma

tendência a casas menores, nas quais as donas de casa poderiam realizar as tarefas domésticas sozinhas ou com uma trabalhadora doméstica. As padarias, as lojas de roupa, lavanderias, armazéns, etc. começaram a fazer o trabalho que era tradicionalmente destinado à trabalhadora doméstica. [14]

A privatização crescente do trabalho doméstico era, para Cooper, um indicador da integração sempre crescente da reprodução social às relações sociais capitalistas. Nesse crescimento, as trabalhadoras domésticas negras seriam, ao mesmo tempo, uma “luz de alerta” e também aquilo que Marx chamou, ao se referir à escravidão, de “pivôs” da indústria burguesa.

É a expressão de Claudia Jones, das mulheres negras como “pivôs”, seguindo fielmente as raízes das bolcheviques, que de fato se tornou sua contribuição marcante para a análise da vida da classe trabalhadora negra. Podemos voltar o olhar para três ensaios de Jones, publicados em 1949 e 1950, onde isso aparece. No ensaio de 1949, “An End to the Neglect of the Problems of Negro Women” [Um Fim para a Negliência dos Problemas das Mulheres Negras], publicado no Political Affairs [Questões Políticas], o periódico teórico de estreia do CPUSA, Jones aponta ao partido que “é necessária uma abordagem especial com as trabalhadoras negras, que, de maneira desproporcional às outras trabalhadoras, são o ganha-pão de suas famílias”. [16] Jones insiste que a proletarização das mulheres negras dá uma centralidade singular ao fardo duplo da exploração e da opressão nas esferas do trabalho e do lar e dos perigos extrativistas sob o capitalismo do assalariamento, ou, eufemisticamente, do “ganha-pão”. Desse modo, num ensaio correlato publicado no mesmo ano, “We Seek Full Equality for Women” [Nós Buscamos Igualdade Completa para as Mulheres], Jones argumenta que “o status de tripla opressão das mulheres negras” era um “indicador do status de todas as mulheres (ênfase minha) e que a luta pela igualdade completa da mulher negra, econômica, política e social, é de interesse direto vital para os/as trabalhadores/as brancos/as, de interesse vital na luta para alcançar igualdade para todas as mulheres”. [17] Jones dá centralidade à análise da reprodução social como hermenêutica: a exploração do trabalho das mulheres negras como trabalho remunerado e a opressão doméstica são, enquanto instâncias de reprodução da classe trabalhadora, uma estrutura explicativa de diagnóstico e batalha contra o capitalismo em sua totalidade. A posição dela talvez ecoe deliberadamente uma de suas influências de outro lugar, Clara Zetkin, que afirmou, num discurso do congresso de fundação da Segunda Internacional em 1890: “Não é o trabalho realizado por mulheres em si que, ao competir com o trabalho masculino, rebaixa os salários, mas sim a exploração do trabalho feminino pelos capitalistas que dele se apropriam”. [18] Ambas Jones e Zetkin afirmam que a exploração e a apropriação do trabalho remunerado feito por mulheres pelo capital é um “indicador” da exploração da classe trabalhadora como um todo. Como diz Jones, “a desigualdade das mulheres vem da exploração da classe trabalhadora pela classe capitalista.” [19]

A influência de Zetkin e do feminismo das bolcheviques aparece mais nitidamente no ensaio de Jones escrito em 1950, “International Women’s Day and the Struggle for Peace” [O Dia Internacional da Mulher e a Luta Pela Paz]. O ensaio foi escrito originalmente como um discurso a ser feito no Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 1950. Como é sabido, o Dia da Mulher foi comemorado primeiramente pelas mulheres estadunidenses em 1908, mas tornou-se Dia “Internacional” da Mulher por iniciativa de Zetkin na Conferência da Internacional Socialista de 1910. Em seu ensaio, Jones “bolcheviza” as origens do Dia Internacional da Mulher, apontando que Lênin estava presente na Conferência da Internacional Socialista e havia pedido, em 1907, que “a questão das mulheres fosse precisamente mencionada no programa socialista por conta dos problemas, necessidades e reivindicações específicos das mulheres laboriosas”. Jones procura ambiciosamente fazer uso do 8 de Março para criar uma nova “frente unificada” contra a guerra e o imperialismo dos Estados Unidos. O discurso integra mais de 50 manifestações ao longo dos Estados Unidos, manifestações por “paz, liberdade e direitos das mulheres”, um eco adicional do grito bolchevique por “Paz, Terra e Pão”. Assim como em 8 de março de 1917, as mulheres – e agora, as mulheres negras – constituiriam vanguarda nessa frente unificada. Harriet Tubman e Sojourner Truth são evocadas como “proletárias militantes das trabalhadoras têxteis”. “As mulheres trabalhadoras, que são”, escreveu Jones, “as mais oprimidas de todos os oprimidos, nunca estiveram afastadas, e não poderiam estar afastadas, da grande marcha da emancipação” [20]. Elas “podem e devem se tornar (…) um exército regular da classe trabalhadora, lutando lado a lado do grande exército do proletariado” [21]. Este é um eco de outras demandas que lhes eram contemporâneas de autonomia das lutas da classe trabalhadora negra. [22] O que é mais importante para a nossa intenção aqui é entender que a caracterização de Jones das mulheres negras como “as mais oprimidas dentre os oprimidos” movia-se em direção à generalização das experiências das mulheres negras com o racismo e o sexismo como endêmicas ao capitalismo enquanto sistema. Como escreveu Sue Ferguson,

Se, por um lado, Jones (assim como suas camaradas do Partido Comunista) via a chave para a emancipação das mulheres (negras) como uma luta por melhorias salariais e de condições, ela também ultrapassou isso ao afirmar que o trabalho não é apenas uma questão “econômica”. É pela força de trabalho estadunidense ser tão racializada que não pode haver melhorias para todos/as até que o racismo seja confrontado e destruído. Essa é uma inovação importante e radical. Ela coloca o trabalho remunerado feito por mulheres como ligado intricadamente não apenas ao sexismo, mas ao racismo, fazendo surgir o espectro – ainda que não o analisando por completo – de uma lógica sistêmica mais ampla. [23]

Uma estimativa completa do envolvimento das comunistas negras com o pensamento das bolcheviques ultrapassa o escopo deste artigo. O que é possível dizer aqui é que a junção delas expande o nosso universo de entendimento da linhagem política da análise da teoria da reprodução social do século 20. Para completarmos essa genealogia provisória, voltarei brevemente à política Black Power dos anos 60, especialmente a política do Partido dos Panteras Negras. Um renascimento saudável nos estudos sobre as mulheres negras nos Panteras Negras, como Bettye Collier-Thomas (Sisters in the Struggle) [Irmãs na Luta], Robyn C. Spencer (The Revolution Has Come) [A Revolução Chegou] e Donna Murch (Living for the City) [Vivendo pela Cidade], combinado com relatos em primeira pessoa de Panteras vivas, como Kathleen Cleaver e Erica Huggins (tema de uma futura biografia escrita por Mary Phillips), começa a redesenhar as barreiras de gênero do movimento e de sua época. [24] Kiran Garcha, num ensaio importante publicado em 2015 na Viewpoint, “Bringing the Vanguard Back Home: Revisiting the Black Panther’s Sites of Class Struggle” [Trazendo a Vanguarda de Volta à Casa: Revisitando os Lugares da Luta de Classes dos Panteras Negras], persegue uma linha de raciocínio que justifica um maior desenvolvimento, examinando a “unidade do lar e da família” como localizações políticas dentro da prática do partido. Como ela observa, “a política anticolonial dos Panteras era comumente transferida de geração a geração não nos centros comunitários ou salas do Partido, mas a portas fechadas, nos espaços íntimos das salas de estar, cozinhas e quintais.” [25]

Como meu lugar de partida, focarei no ponto 10 do programa de 10 pontos original do Partido. Ele é a demanda mais ampla, uma genuína lista extensa de palavras-chave da reprodução social: “Queremos terra, pão, moradia, educação, vestimenta, justiça e paz”. Podemos reconhecer mais uma vez os ecos imediatos de 1917, “Terra, Pão, Paz”, adicionados de reivindicações da esfera “doméstica: educação, vestimenta, moradia. Tal qual foi mostrado por estudos históricos recentes, os Panteras estavam oferecendo uma versão de “Great Society” de Lyndon Johson produzida através de uma política de autodeterminação anticapitalista. [26] Daí vem o conhecido Programa de Café da Manhã Gratuito dos Panteras e o estabelecimento tanto da Escola Comunitária de Oakland, como uma alternativa às escolas vistas como racistas e dominadas por brancos, quanto das Clínicas de Saúde Gratuitas para o Povo. Como aponta habilmente Alondra Nelson, o programa médico dos Panteras era um “movimento social de saúde” ou “política por outros meios”. [27]

Eu diria que os insights vindos da teoria da reprodução social elucidam bem a “política” e o amplo “movimento social” que Nelson descreve. A maior parte dos quadros partidários envolvidos no programa de saúde dos Panteras era composta de mulheres. Além de exames para detectar anemia falciforme, os serviços incluíam exames ginecológicos, papanicolau e exames de ISTs. Em 1971 as mulheres do partido pressionaram pela ampliação da contracepção, afirmando que os muitos cuidados com a criação de filhos poderiam limitar a participação política tanto das mulheres quanto dos homens. Em 1972, num pequeno artigo do partido, Audrea Jones recomenda que homens e mulheres tenham aulas de métodos contraceptivos. Ainda no mesmo ano, o Comitê Central do partido sugere o estabelecimento de um programa de “Planejamento Familiar” dentro da organização; em 1974, a liderança partidária publica uma normativa para que membros do partido façam uso de contraceptivos. [28] A ênfase nisso que pode ser chamado de justiça reprodutiva e sexual para as mulheres negras é um indicador político do que Dorothy Roberts se referiu como o “genocídio” de corpos negros no capitalismo [29], assim como um enfoque na capacidade – e responsabilidade – reprodutiva compulsória da regeneração do sistema por meio das mulheres trabalhadoras. Justiça social e reprodutiva era para os Panteras, em outras palavras, uma questão precisamente de classe, parte da análise “anti-pobreza” mais ampla do partido, assim como um indicador do fardo duplo das mulheres negras trabalhadoras enquanto reprodutoras da força de trabalho num sistema capitalista com poucas redes de segurança.

Um último retrato da política de reprodução social anticapitalista dos Panteras é nitidamente visto na litografia icônica de 1972 de Emory Douglas, “Vote for Survival” [Vote pela Sobrevivência] (Imagem 2). A imagem apresenta uma mulher negra “lumpen” como encarnação da consciência de classe em relação ao apoio do partido. O cartaz que ela segura, “Vote for Survival”, indicava não apenas o objetivo eleitoral do partido naquele ano, mas também a “Black Community Survival Conference” [Conferência da Sobrevivência da Comunidade Negra], que incluiu literalmente “um frango dentro da sacola de cada pessoa” e um formulário de registro eleitoral para quem comparecesse. Em seu bolso a mulher tem também um par de calçados infantis com uma etiqueta dizendo “David Hilliard, People’s Free Shoe Program” [Programa de Calçados Gratuitos para o Povo]. A imagem defende que a estrada para a consciência revolucionária passa pelo lar e que as exigências de “pão e sapatos” unem as reivindicações “econômicas” às “políticas”. Nesse retrato de uma nova revolucionária, os Panteras anunciam uma crítica anticapitalista abrangente (mesmo se talvez reformista) do sistema, além de uma nova figura da vanguarda.

Vote For Survival, 1972, Emory Douglas

Susan Ferguson e David McNally falam da capacidade da teoria da reprodução social em iluminar movimentos sociais que exigem “um fim às degradações variáveis da vida humana, acesso completo e comunal aos meios de subsistência, controle sobre nossos próprios corpos humanos.” [30] A história que eu esbocei, de 1905 em São Petersburgo a 1972 em Oakland, a “longa” era da reprodução social como tal, ajuda-nos também a compreender de que forma e por que o capitalismo identificou há tempos a mulheridade negra como uma  ameaça aos seus esforços estatais de gerir as relações de classe. Mesmo com o grande empenho das bolcheviques, das/os comunistas negras/os e do Partido dos Panteras Negras, a tendência geral do capital de empurrar os custos do provimento social para a classe pobre e trabalhadora produziu seu próprio inimigo, constantemente, na figura de uma mulher negra. As “welfare queens”[3] de Ronald Reagan são, do ponto de vista da reprodução social, as bolcheviques à porta. Os recorrentes ataques do reaganismo e o neoliberalismo ao que um dia foi conhecido como “welfare state” produziram repetidamente uma linguagem tristemente familiar da dominação de classe. “Não é por coincidência”, escrevem Salar Mohandesi e Emma Teitelman,

que o ataque ao bem-estar social falava uma língua racista e sexista. Mães negras foram demonizadas como irresponsáveis, desonestas e promíscuas; pessoas negras e latinas foram vilipendiadas como criminosas ou drogadas preguiçosas. A expectativa era convencer outros trabalhadores, como homens brancos pobres ou desempregados, a culparem a “welfare queen negra” ou o “racismo reverso” por suas próprias condições, ao invés de culparem os capitalistas. Dessa forma, a batalha a respeito da reprodução social teve um papel insuperável no sentido de fazer setores heterogêneos da classe trabalhadora voltarem-se uns contra os outros. [31]

Nós conhecemos essa história tão bem que não nos arriscamos a repeti-la. O que deveríamos repetir neste centésimo aniversário de 1917 é o desafio político presente em quadros analíticos por meio dos quais conhecemos o passado e o futuro. Nossas lutas contemporâneas contra o trumpismo, a all-right, contra a misoginia viral e o racismo de nossos tempos, contra o fascismo insidioso, fariam bem em ter mais – não menos – bolchevismo se esperamos sanar o que nos aflige. Não há nada de velho no apelo feito há quase 70 anos por Claudia Jones: “ao dominarmos bem nossa teoria da questão da mulher, organizarmos as massas de mulheres estadunidenses e focarmos a atenção primeiramente nos problemas e necessidades das mulheres da classe trabalhadora” nós podemos renovar os gritos da reprodução social por “terra, pão e paz”, e, assim, forjar o que Louise Patterson chamou há quase um século de “amanhecer mais luminoso”.


* O autor gostaria de agradecer Tithi Bhattacharya, Susan Ferguson e Charlie Post por suas observações num rascunho inicial desse ensaio.


Notas:

[1] Tradução livre. Todas as traduções feitas aqui de nomes de congressos, livros, impressos, etc. são traduções livres.

[2] O autor usa o termo Bolshevichki para se referir às mulheres bolcheviques, em contraposição a Bolshevik (homens bolcheviques). A fim de facilitar a tradução e o entendimento geral, usarei os termos homens bolcheviques/os bolcheviques e mulheres bolcheviques/as bolcheviques ao longo do texto.

[3] “Welfare queen” é um termo usado e popularizado nos anos 70 para se referir pejorativamente a mulheres que supostamente receberiam benefícios de assistência por meio de fraudes e outras formas escusas.

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