A lição de Althusser

Por Luis Eduardo Gomes do Nascimento

Ao movimento operário brasileiro, donde podemos ler a realidade.

Em enunciado de fulgurante beleza, Louis Althusser afirma que sua época ficará marcada pela explicação dos gestos mais simples: ler, ouvir, escutar. Ler é a mera escansão de palavras, frases e enunciados? Ler aí aparece não como mera execução formal, mas como a apreensão da realidade. Apreensão que exige o ir e vir dialético entre a palavra e o mundo.

Por que, no manter acesa a palavra de Marx e o que ela tem de anúncio e de promessa, Althusser insere o gesto de ler no cerne de sua assinatura e projeto filosófico. Ler e, mais singularmente, ler Marx constitui não só um motivo que imanta a busca, mas o próprio móvel.

Ler Marx é, desde logo, apreender o modo como Marx ler, apreender a forma com que Marx, ao ler, especialmente, a economia clássica pode remontar toda a produção às fontes criadoras de valor, num gesto filosófico que, além de desnudar a estrutura do capitalismo, indica possibilidades de formas comuns de viver. Mas apreender a forma com que Marx ler significa fazer a articulação muitas vezes esquecida entre a lógica dialética e a história. Não há que analisar de forma estanque a relação entre as categorias, erigidas do concreto, mas, ao serem elevadas ao plano teórico, devem regressar à própria experiência donde emergiram. Já em Kant a dedução das categorias transcendentais, ainda que entendidas de forma aprioristas, o seu uso é de serem aplicáveis às experiências. As categorias são aplicáveis à experiência. No caso de Marx, há que entender de forma dialética que as categorias, apesar de emergirem da experiência, ganham alto teor abstrato, mas para regressar à realidade complexa mesma, permitindo sua compreensão.

Ler Marx não é incorrer no teoricismo. Ao revés, envolve a necessária compreensão de que sem teoria não há elucidação da realidade e, sem o trabalho da elucidação, a ação política torna-se cega e contraproducente. Aprender a ler não se torna apenas a aquisição da habilidade de codificação dos signos, mas em instigante ato político de compreensão das coordenadas sócio-políticas em que se está mergulhado, superando-se a consciência ingênua, aderida aos preconceitos que se antepõem à compreensão.

Ler, nesse sentido original, se torna uma tópica política crucial, isto é, significa tangenciar as contradições a partir das quais surge a consciência crítica e compromissada com a transformação radical. Porque somente quando se toca nas contradições das formações sociais é que a luta política tem um sentido coerente e força transformadora. A questão ‘’o que é se orientar na política?’’ emerge crucial e, ao entender que existe uma linha de demarcação justa, uma linha justa de definição, podemos evitar o diversionismo tão ao sabor do capital financeiro e devolver às formações sociais a orientação pela qual os problemas que lhe são congênitos sejam abordados e, por corolário, enfrentados corretamente. O pensamento, desde que funcional à realidade que aborda, pode ser fecundo na transformação da realidade.

Quando Louis Althusser exorta a ler Marx o que está em questão? Em que sentido ler Marx se torna tarefa que faz a filosofia ser interpelada pelo problema da política e da economia? O que se chama retorno a Marx não é mais que responder à injunção que, sendo intrínseca ao filosofar de Marx, faz da filosofia um lugar em que a questão das lutas de classes (no plural analógico) não pode ser contornada sem deixar o discurso perder a própria aproximação com a realidade? Em Marx, o que se vê e de forma premente, muitas vezes de forma desesperada, é a disputa pela realidade de tal forma que o próprio filosofar, mesmo que se declare alheio à dinâmica sócio-política, já revela uma noção precária da própria realidade que oculta e, ao mesmo tempo, revela essa precariedade a que sucumbiu.

A injunção, a que o filósofo Althusser não deixa de responder e a qual vinculou o seu destino humano, envolve a necessidade, em cuja realidade a presença da classe operária é fundamental, de repensar o sentido genuíno do retorno a Marx. Ou, para citar Zizek, repetir Marx. Repetir Marx, neste sentido, não seria um mero recomeço, mas engajar-se no problema que moveu Marx, junto a Marx, junto ao que seu texto nos revela, e aos problemas que trouxe, às práticas que desencadeou.

No prefácio de O capital, Marx assinala que, quando se declarava Hegel cachorro morto, passou a flertar com a terminologia hegeliana. Não se trata de mero flerte porque, como Lenin assertoava, não se compreende O capital sem compreender de forma profunda Hegel. Justamente, quando se decretava o fim da história e da vitória triunfante do capitalismo, Althusser, contra a corrente, reinvidica a leitura de Marx. Não apenas para dizer que, mesmo com a queda do muro de Berlim, o texto de Marx mantém sua importância e vigência, mas, sobretudo, para demonstrar que as análises de Marx contém um grau intenso de aproximação com a realidade e que abdicar de Marx é abdicar da compreensão mais penetrante do presente e abdicar de abrir horizontes novos para a própria humanidade.

Figuremos um exemplo: Rosa Luxemburgo, no repetir Marx, ao estudar a acumulação primitiva do capital, deparou-se com um problema espinhoso e ainda carente de estudos: o capitalismo subsume formas arcaicas de produção. Quando Marx estudou o tema, estudou-o com base na Inglaterra. Estudo limitado mais pela intempestividade do tempo do que pelo talento miraculoso de Marx. Rosa Luxemburgo logo viu que não haveria indústria têxtil inglesa sem a escravidão no Sul dos EUA em avanço teórico que o pensamento decolonial já tinha, à sua maneira, revelado e a qual nenhuma política pode se subtrair sob pena de virar pálida oposição consentida (1).

Nessa injunção é preciso : 1) deixar que o texto, sem as sobrecodificações de uma tradição ossificada e que serve de obstáculo à exegese correta do textos e dos problemas aos quais remete, fale e, ao falar, permita uma orientação política mais adequada à cambiante realidade; 2) que o texto de Marx, ao se inserir na tradição crítica, nunca dissocia a questão de tempo-espaço, mas, ao revés, coloca-os na dimensão correta de forma que o espaço, na medida em que exige o desafio do movimento, da velocidade e dos conflitos, para a ser visto como topos conflituoso no entrecruzamentos de povos, raças, anseios, angústias e, sobretudo, formas de ser e de habitar; 3) que em Marx se imiscui de forma fecunda a mais consequente voz científica, mas sem deixar de abrigar uma insolente paixão política, o que não diminui, ao contrário, faz retinir mais vívida a voz científica: 4) que, em Marx, o modelo produtivista não é nunca paradigma, pois, no estudar as formações sociais, o que se anela é pensar novas formas societárias arrimadas no trabalho vivo e na existência como manifestação estética e artística – o espírito é artesão, diria o mestre de todos nós Hegel; 5) que, no texto de Marx e no projeto civilizatório que o moveu, se consuma da forma mais plena a ideia de Edmund Husserl de que o filósofo é o mais alto funcionário da humanidade.

Afirma Althusser (2):

“Arquimedes não desejava mais que um ponto fixo para levantar o mundo. O tópico marxista designa o lugar onde nos devemos bater, porque é nele que se luta, para transforma o mundo. Mas esse lugar não é um ponto, nem é fixo, é sistema articulado de posições orientadas pela determinação em última instância”

Responder a essa injunção é apostar em outra civilização para além do equivalente geral.

  1. Sobre a subsunção de formas arcaicas de produção pelo capital e sobre o giro descolonizador ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.
  2. ALTHUSSER, Louis. Posições. Lisboa: Horizonte Universitário, 1977, p.148.

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