Por Heribaldo Maia
Nas últimas semanas, graças ao texto “Democratizar a psicanálise” de Érico Andrade, que saiu na Folha[1], houve um grande debate sobre a necessidade da democratização da formação em psicanálise. O que se seguiu, para a surpresa de uns, outros e, inclusive, minha, foram reações cheias de ad hominem e carteiradas, típicas de democratas até a página dois.
Como sabem, não sou psicanalista, cheguei à psicanálise após ler uma biografia de Freud a muitos anos atrás, e a figura de fundador da psicanálise, por algum motivo, me afetou positivamente, desde então fui tomado pelo desejo de ler, estudar e conhecer tal campo, bem antes de entrar na universidade até. Após entrar na universidade, meus laços com a psicanálise se estreitaram, isso porque a teoria social crítica, da qual eu me vinculo, possui diálogo aberto com a psicanálise, basta lembrar que autores que são referências para mim hoje – Adorno, Horkheimer, Erich Fromm, Benjamin etc. – sempre dialogaram abertamente com Freud e seus textos.
Então, perdoem minha intromissão, mas como interessado na formação em psicanálise, darei meus centavos nesse debate, afinal, primeiro que o tema levantado por Érico Andrade me toca não só enquanto bandeira política, mas como interesse pessoal e, segundo que se eu não sou psicanalista de formação (estou em formação ainda), ao mesmo tempo a psicanálise é uma ética que se baseia na escuta do desejo, então, enquanto sujeito pobre e da periferia do Recife, mas que deseja profundamente se formar psicanalista, me farei ouvir.
Quando Érico Andrade lançou seu texto logo eu me identifiquei e percebi sua importância para o debate da psicanálise, afinal eu sou um jovem adulto, tenho 32 anos, que por anos e anos tentei fazer a formação em psicanálise, mas esbarrei num ambiente muito fechado para quem não conhece como funciona os acessos e dinâmicas internas, isso porque o acesso a informações é difícil para a maioria das pessoas que não tem um background cultural ou acesso a círculos intelectuais da sociedade psicanalítica. E não falo isso na tentativa de reforçar qualquer visão prévia das sociedades e escolas psicanalíticas, mas como alguém que buscou tais informações e, por um tempo, não tinha tal acesso. Também os valores são gritantes na maioria dos casos, e os locais onde os preços são pouco mais acessíveis, muitos não respeitam o tripé (formação teórica, análise e supervisão) ou não são bem vistos pelas principais escolas psicanalíticas, vetando o reconhecimento dos pares necessários para a formação – vide a aberração que é a graduação em psicanálise.
É óbvio que eu não estou afirmando que a psicanálise, enquanto comunidade, não tem tentado se abrir mais de seu encastelamento, acho que esse diagnóstico, de certo modo já circula entre psicanalistas, mas só diagnosticar não é suficiente, apesar de ser um primeiro passo. Há ações de psicanalistas, escolas e alguns centros de formação que visam construir clínicas públicas, ligações com movimentos sociais etc., porém na formação a coisa anda pouco mais devagar, e foi isso que Érico Andrade apontou.
Eu até considero normal, pela história da psicanálise no Brasil, que esses processos tenham tempos diferentes e processos de aberturas não síncronos. Mas me surpreendeu que as reações ao texto de Érico Andrade não foram de recepção de uma autocrítica importante para se pensar um retrato de agora da democratização da formação em psicanálise, possibilidades e saídas para tal questão, ao contrário, o que vimos foi uma reação de autodefesa do modelo de formação atual ou, no máximo, de aceitar o problema passivamente.
Percebam, Érico não falou em nenhum momento sobre a psicanálise não estar se abrindo ao social, mas de que considerando essa abertura, no que diz respeito a formação, esse processo anda mais lento. Bem, eu poderia – se houvesse em maior abundância escolas com bolsas, cotas ou programas para receber interessados na psicanálise sem condições financeiras – já ter concluído minha formação, porém tive que trabalhar bastante, juntar uma boa quantia, até conseguir pagar a formação (também não se afirmou que não há tais iniciativas, porém elas ainda são pontuais, exceções que confirmam a regra da elitização da formação). Mas quantos não tem ou terão o privilégio de conseguir juntar esse dinheiro até que esse desejo de formação se esvai? Basta olhar a proporção de negros para brancos nas escolas e círculos psicanalíticos, para ficar em um exemplo. (Afinal, o desejo não é uma abstração no mundo, desejar somente não é suficiente, é preciso que hajam condições objetivas para que tal desejo seja concretizado).
Pela complexidade da formação em psicanálise, que extrato social tem dinheiro para os cursos, grupos de estudos, análise pessoal, supervisão e congressos, além de compra de livros (a maioria muito caros!)? Então, quando surge uma graduação em psicanálise, que motivou todo esse debate, ainda que seja absurda sua proposta, expressa uma demanda, como um recalcado que retorna distorcido. Qual recalcado é esse? O fato de que, quando se trata de formação, mesmo com o crescimento das clínicas públicas e ações pontuais de democratização da formação, a psicanálise ainda tem forte viés classista, sendo ainda privilégio de poucos.
Claro que esse retrato da psicanálise não é sua exclusividade, como se fosse uma ilha de desigualdade e elitismo no meio de um país igualitário, mas reflete a situação social e econômica do país. Em alguns pontos a psicanálise têm pouco a fazer mesmo, pois se trata de uma questão estrutural que transcende ao horizonte de ação da psicanálise brasileira, porém a aceitação do problema, por ser estrutural, como algo que não se debate ou só se faz o mínimo, é um sintoma mais grave que o problema em si. É preciso não só afirmar a existência do problema, como problematiza-lo, como faz Érico Andrade, para estressar as contradições, bagunçar o cenário da psicanálise e, assim, quem sabe, como diz Chico Science, desorganizando poder organizar.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/01/democratizar-a-psicanalise.shtml
4 comentários em “O caráter classista da formação em psicanálise”
Heribaldo,
Coordeno um grupo de formação em Psicanálise que vai de encontro a esse conceito “classista” que você abordou no seu excelente artigo.
Trata-se do Tópica Psicanalítica, via online, daqui de Salvador, Bahia.
Se quiser conhecer o nosso grupo, envie comunicação para o meu e-mail.
Será um prazer poder compartilhar essa formação com você.
Temos orientação freudo-lacaniana.
Saudações!
Ah! Meu e-mail: [email protected]
Lá vem a cilada. Uma psicanálise que precisa de licença para se entrar, já diz mais de quem tá falando sobre ela e do como se falará de psicanálise, do que das ideias sendo postas e defendidas deste quem as propõe.
O interessante do texto “proposto” pelo autor (do qual não conheço) é que me chamou mais atenção por seu chamariz ou por um certo tom de embuste de discussão, do que necessariamente por uma crítica necessária acerca de um problema histórico do campo psicanalítico, os elementos aludidos pelo autor são cruciais para serem aprofundados, interrogados e investigados, no entanto, novamente, é uma antiga discussão dentro deste campo que já possui um percurso.
Além do autor parecer estar mais ambientado nesta discussão do que o texto de fato demonstra, novamente, chama atenção o que está “proposto”, que aqui vem com aspas porque tem mais cara de tentativa tática inserida numa estratégia maior, de alguém(ns) que têm um plano na manga, com respostas prontas para antigas perguntas, do que necessariamente a proposição de uma discussão profunda e complexa acerca deste grave impasse… lá vem cilada. Embora tenha cara de discussão, tem mais cara de tática, não há aí uma tática? Não cabe alguma desconfiança neste tom adotado pelo texto?
Bem, na semana passada o LP publicou o texto do Rodrigo Alencar que já antecipa e toca em um bom tanto destes impasses e das fragilidades na psicanálise diante da mesma discussão…
Bem, cabe agora só esperar e aí, de fato, ver quem serão estes os “desorganizadores” eleitos para organizar o campo da psicanálise ao qual o texto está aludindo. Em breve, uma formação em psicanálise que já vem com selo de garantia da luta de classes… Se não me engano, foi o Zizek que em algum canto fala sobre os perigos do apaixonar-se por si mesmo em sua fidelidade por um acontecimento (no caso, o do sujeito do inconsciente), talvez aqui a passagem do esloveno caiba ser lida como certo tom de aviso…
Seu texto chega para mim em um momento que vivencio a mesma angústia de busca de um caminho de formação em psicanálise.Sou licenciada em história, uma graduação em psicologia não concluída e um desejo cada vez mais permanente de ter uma formação em psicanálise…ando pesquisando formações e grupos e confesso que estou bem perdida.
Sou professora da rede estadual de SP contratada e atualmente sem aula e sem renda.Se puder indicar alguma formação ou grupo é te agradeço.
Parabéns pelo texto e a linguagem.
Forte abraço.