“Falta um presente – a menos que a multidão se declare”: Alain Badiou sobre Ucrânia, Egito e finitude

Por Alain Badiou, traduzido por Diogo Fagundes, via o seminário “Imanência das Verdades (2013-14)” do filósofo francês. Trata-se da sessão do dia 12 de março de 2014.

Direi mais uma vez que acho que a figura fundamental da opressão contemporânea é a finitude. O eixo estratégico deste seminário é fornecer os meios para uma crítica do mundo contemporâneo, identificando algo dentro de sua propaganda, atividade etc. em cujo centro está a imposição da finitude, ou seja, a exclusão do infinito do possível conjunto de horizontes da humanidade. Em cada sessão, de agora até o final do ano, quero dar um exemplo da maneira como algo acontecendo hoje, ou alguma categoria comum ou constantemente usada, pode ser representada como uma figura ou operação de redução à finitude. Como tal, cada uma dessas coisas pode ser encapsulada em termos da visão opressiva geral da finitude.


Hoje gostaria de tomar o exemplo da Ucrânia, a forma como os acontecimentos históricos na Ucrânia servem ao consenso propagandista que tanto o constitui como o envolve (nas nossas próximas sessões abordarei duas noções conexas, que são igualmente hegemônicas e gozam de consenso: as noções de república e de secularismo – e o que chamo de falsos invariantes: o que se supõe ser um invariante, um lugar-comum de pensamento e até uma prova do que é que nos une).

O que me impressiona na situação ucraniana, considerando o que aprendemos lendo a imprensa, ouvindo rádio etc., é que ela é captada e compreendida segundo uma operação que eu chamaria de completa estagnação do mundo contemporâneo. A narrativa banal é dizer que a Ucrânia quer ingressar na Europa livre, rompendo com o despotismo de Putin. Há um levante democrático e liberal cujo objetivo é unir nossa amada Europa – a pátria da liberdade em questão – enquanto as manobras sórdidas e arcaicas do homem do Kremlin, o terrível Putin, são dirigidas contra esse desejo natural. O que impressiona em tudo isso é que tudo é enquadrado em termos de uma contradição estática. Bem antes do caso da Ucrânia já havia um esquema fundamental constantemente em ação, distinguindo o Ocidente livre de todo o resto. O Ocidente livre tem apenas uma missão, a de intervir em todos os lugares que puder para defender aqueles que querem se juntar a ele. E essa contradição estática não tem passado nem futuro.

Ela não tem passado porque – e é particularmente típico no caso ucraniano – nada sobre a própria história real da Ucrânia é considerado, nomeado ou descrito. Quem se importava com a Ucrânia antes da semana passada? Muita gente nem fazia ideia de onde era… A Ucrânia, campeã da liberdade europeia, de repente sobe ao palco da História; e isso é possível porque o que está acontecendo lá pode ser descrito em termos da contradição estática entre a Europa, pátria da liberdade, democracia, livre iniciativa e outros esplendores semelhantes, frente a todo o resto, incluindo a barbárie de Putin e o despotismo que o acompanha. Não tem passado porque não sabemos de onde vem tudo isso, por exemplo, o fato de a Ucrânia ser parte integrante do que durante séculos foi chamado de Rússia; que só muito recentemente se formou uma Ucrânia independente, no quadro de um processo histórico muito particular: o desmoronamento da União Soviética. Da mesma forma, o fato de que a Ucrânia sempre teve tendências separatistas e que estas foram constantemente reativas: isto é, apoiadas por potências fortemente reacionárias e coisas piores ainda. O clero ortodoxo ucraniano, cuja cidade sagrada é Kiev, desempenhou um papel determinante em tudo isso, e nem é preciso dizer que é o mais reacionário da Terra, um centro megalomaníaco da ortodoxia imperial. Esse separatismo em certos momentos chegou a extremos que ninguém poderia esquecer, principalmente o povo russo, sabendo que a vasta massa dos exércitos armados e organizados por nazistas vindos do território russo eram ucranianos. O exército Vlasov era um exército ucraniano. Hoje podemos até ler a história dos ucranianos transformando aldeias inteiras em sangue e fogo, incluindo as francesas. Boa parte da repressão ao maquis no centro da França foi realizada por ucranianos. Não somos identitários, não vamos dizer: ‘Que bastardos, esses ucranianos!’, mas tudo isso constitui uma história, a história de um certo número de sujeitos políticos na Ucrânia.

Além disso, a contradição não tem futuro, porque o futuro é pré-constituído: o desejo dos ucranianos será unir-se à boa e velha Europa, uma cidadela de liberdade já existente. As operações que impõem essa finitude aqui incidem sobre o próprio tempo. Se o tempo acabou, é porque foi parado. O tempo da propaganda é um tempo imóvel. É muito difícil fazer propaganda para um tempo em devir: podemos fazer propaganda para o que é, mas não para o que está por vir. E aqui temos a propaganda de que a revolta ucraniana é estática, na medida em que surgiu do nada e caminha para algo que já existia, uma Europa livre democrática.

Na França há uma personificação essencial de tudo isso, a saber, Bernard-Henri Lévy. Cada vez que a finitude precisa ser imposta, ele aparece para entregá-la. Poderíamos dizer que quando BHL assume o comando, ele o faz para bater os tambores da finitude. Mas a operação fundamental não diz respeito à Ucrânia: os propagandistas franceses deste caso não se importam com o destino da Ucrânia, acredite. O que lhes interessa é a boa e velha Europa, querendo que todos vejam as ações dos ucranianos como uma prova clara do enorme valor que temos para toda a humanidade. Se mesmo os ucranianos, dos quais ninguém sabe nada e que são apresentados como figuras bastante distantes e ligeiramente obscuras, querem entrar na Europa com tanta força, a ponto de arriscar a vida – e de fato houve mortes na Praça Maidan – é porque a Europa democrática, apesar de tudo, não é nada. É uma apologia ao Ocidente que cria uma espécie de desejo pelo Ocidente – em parte real, ponto ao qual voltarei – consolidando assim nossas próprias posições ideológicas, políticas, institucionais etc.

Poderíamos também dizer que a Ucrânia não é de todo apreendida em um presente genuíno, mas apenas falso. Como logo ficará claro, um tema fundamental do meu seminário “Imagens do tempo presente” é que cada presente genuíno é constituído pelo passado sendo torcido em direção ao futuro. O presente não é o que se inscreve como um bloco homogêneo entre o passado e o futuro, mas o que se declara, implicando assim uma repetição vinda do passado, assim como a curva, a tensão, projetada para o futuro, de tal forma que o presente é portador de uma infinidade de potenciais. Se o presente da insurreição ucraniana é um presente falso, isso quer dizer que não tem passado e que seu futuro já chegou. É por isso que não há declaração genuína, sendo este o marcador de qualquer presente genuíno. Dito de outra forma, a imposição da finitude faz parecer que a revolta ucraniana realmente não declarou nada de novo. E quando nada de novo é declarado, nada é declarado, no final das contas. O que Mallarmé disse foi muito relevante: falta um presente a menos que a multidão se declare. O que os ucranianos dizem é exatamente o mesmo que qualquer propagandista daqui poderia dizer, significando: 1. Eu quero entrar na maravilhosa Europa; 2. Putin é um déspota sombrio. Mas dizendo isso, eles não estão dizendo muito, e nada com qualquer conexão histórica com a Ucrânia, com a vida real de seu povo e seu pensamento, etc. Eles não fazem nada além de dizer o que os outros querem que eles digam, apenas desempenhando seu papel nas relações difíceis e desarmônicas entre a Europa – que nada mais é do que a mediação institucional local do capitalismo globalizado – e Putin, que eles dizem não ser muito democrático (o que não é algo que ele próprio realmente quer ser, não é da sua conta). É uma peça cujo roteiro já foi escrito.

O que podemos dizer é o seguinte: a instância contemporânea da declaração é a tomada de uma praça pública. Isso não é sempre o caso. Há casos em que a declaração está cercando um prédio público, uma grande marcha de protesto, etc. Mas, já há um bom tempo, a forma histórica de coletividade popular tem sido a ocupação prolongada de uma praça (Praça Tahrir, Praça Taksim, Praça Maidan…). E essas ocupações constituem seu próprio tempo particular; tempo e espaço estão profundamente unificados, como em Parsifal: ‘aqui o tempo se torna espaço’. É um tempo que nos permite que a ocupação não tenha que falar do seu próprio fim. Uma manifestação começa e termina, uma insurreição é bem-sucedida ou falha, e assim por diante. Quando você ocupa uma praça pública, você realmente não sabe: pode durar, talvez por muito tempo. Tudo parece como se uma nova forma de declaração nascesse, ou pelo menos uma nova forma de possibilidade de declaração, que consiste em ocupar um espaço aberto na cidade. Acho que isso tem muito a ver com o fato de estarmos vivendo a época absoluta da soberania urbana. Não há jacqueries camponesas, longas marchas e assim por diante. A cidade é o modo coletivo de existência predominante, mesmo em países muito pobres, na forma de monstruosas megalópoles. A ocupação da cidade, na forma restrita da ocupação da praça central, seu coração urbano, é cada vez mais a forma concentrada da possibilidade da declaração – e ninguém a inventou; é uma criação histórica. Por outro lado – e insistirei neste ponto – esta é apenas a condição formal, tateante e pouco clara da declaração. O que acontece na praça é uma declaração negativa. As pessoas que se reúnem na praça, quando têm algo a dizer em comum, gritam ‘Mubarak, renuncie!’ ou ‘fora Ben Ali!’, ou, na Ucrânia, ‘não queremos mais este governo!’

Há, então, um novo tipo de positividade coletiva em um determinado espaço, a ocupação das praças centrais das grandes cidades, cujo substrato mais significativo é de fato sua própria organização prolongada, pois é aqui que a unidade do povo é selada (para sobreviver na praça por um período prolongado é necessário organizar comida, banheiros e assim por diante). Mas, de forma simples, a declaração não vai além de sua forma puramente negativa, pois a assembleia que ocupa a praça está dividida ao longo de um eixo modernidade-tradição.

O Egito é o exemplo canônico. Como você sabe, não havia uma unidade genuína e positiva entre a facção que não queria mais Mubarak porque ele era seu inimigo histórico – a Irmandade Muçulmana – e aqueles que não queriam mais Mubarak porque eles também passaram a nutrir um certo desejo pelo Ocidente, e não queriam nem opressão religiosa nem militar, mas uma certa série de liberdades fetichizadas como “liberdades européias”.

O que está acontecendo, em casos como este? O resultado da declaração é totalmente precário porque aqui temos apenas uma meia declaração. Para ser vitoriosa, uma declaração estritamente negativa pressupõe a unidade absoluta daqueles que a declaram. Essa foi, vale dizer, a grande ideia de Lenin. Ele disse que sem disciplina de ferro não teremos sucesso, porque se não tivermos uma unidade positiva e organizada, a unidade negativa logo começará a se romper, dividir e se dispersar. Não estamos tratando aqui de leninismo, mas podemos ver bastante bem na Praça Maidan ou em qualquer uma das outras praças de que falamos, que além da simples declaração de que ‘não queremos mais…’ tropeçamos numa divisão irredimível. Isso é exatamente o que está acontecendo agora na Ucrânia. Efetivamente, você tem, por um lado, democratas e liberais movidos por um certo desejo pelo Ocidente (aqueles que nossa própria imprensa chama de “os ucranianos”) e, por outro, pessoas muito diferentes, organizadas em grupos de choque armados na tradição histórica do separatismo ucraniano, e cuja visão do mundo é mais ou menos abertamente – mas sem dúvida – fascista. Eles estão felizes em dizer que são a favor da Europa, com a condição de que isso os liberte dos russos; é um elemento absolutamente identitário composto por nacionalistas ucranianos da velha escola que não vêem seu futuro em termos de “liberdades europeias”. O problema é que, do ponto de vista do ativismo de praça, são suas forças que dominam; todo o resto pode muito bem ser gente boa, mas na realidade eles são em grande parte desorganizados (e na medida em que são organizados, é para ganhar votos eleitorais).

Finalmente, poderíamos dizer o seguinte: em todas essas situações contemporâneas de assembleias de praças fazendo suas declarações, há três e não dois lados envolvidos. Você tem, por um lado, os governos, autoridades institucionais, partidos, facções do exército, polícia etc. que compõem o poder estatal estabelecido e geralmente têm algum parceiro estrangeiro: por exemplo, por décadas o parceiro estrangeiro de Mubarak foram os Estados Unidos e, para dizer a verdade, o Ocidente como um todo. Depois, unidas na praça por uma declaração negativa comum, duas outras forças, e não uma: um elemento identitário (a Irmandade Muçulmana, os nacionalistas ucranianos) e depois os ‘democratas’, isto é, aqueles inspirados pelo desejo de modernidade ocidental. Ou seja, temos uma polaridade tradição-modernidade, entendendo-se que a modernidade hoje significa modernidade sob a égide do capitalismo globalizado, não sendo a modernidade representada de outra forma, principalmente se não for lucrativo fazê-lo. Esse confronto de três lados não pode ser reduzido a um confronto bilateral, a menos que a finitude esteja sendo imposta à situação.

Devemos refletir sobre toda a história do Egito, que é uma história fascinante. No Egito, também, houve um confronto de três lados: primeiro Mubarak, o aparato militar egípcio e suas redes de clientes e patrocinadores, e depois os dois elementos na Praça Tahrir: o componente voltado para a modernidade capitalista ocidental, por um lado, e por outro lado, a Irmandade Muçulmana – que, deve-se dizer, estava em grande maioria – representando uma força singularmente tradicional. A unidade deles era negativa (‘Mubarak, renuncie!’), mas quando viram as coisas começarem a se abrir, eles tiveram que propor algo. Esse algo eram as eleições, eleições que serviram de falso cenário, arbitrando a relação entre dois elementos cuja unidade era puramente negativa. E o que aconteceu? Bem, a Irmandade Muçulmana ganhou as eleições com facilidade, e o elemento ocidental, democrático e educado foi deixado para trás. A pequena burguesia egípcia descobriu que sua conexão com a massa do povo egípcio era realmente tênue. Justamente irritado, como se tivesse se levantado à toa, esse setor modernizador da sociedade egípcia voltou às ruas: daí as manifestações de junho passado, onde se levantou novamente, mas desta vez sozinho. E por si só não contava muito. Assim, acolheu favoravelmente a intervenção de… quem? Bem, os militares. A irresponsabilidade pequeno-burguesa – desculpem a linguagem tão grosseira – produziu esse fenômeno extraordinário: as mesmas pessoas que alguns meses antes gritavam “Mubarak, renuncie!” agora gritavam “Mubarak, volte!”. Ele se chamava Al-Sisi, o nome havia mudado, mas era exatamente a mesma coisa: era o regime de Mubarak, segundo mandato. Começou por se comprometer com algumas operações bastante marcantes, poderíamos dizer: isto é, prender todo o pessoal de um governo eleito por grande maioria (durante esse período, a imprensa hesitou em falar de golpe de Estado, porque, você deve entender, se a Irmandade Muçulmana for colocada na prisão, isso não é verdadeiramente um golpe de estado…) e quando seus partidários protestaram, foram fuzilados. O exército disparou contra a multidão sem escrúpulos, no modelo do esmagamento da Comuna de Paris; para entendermos, em um único dia cerca de 1.200 pessoas foram mortas, de acordo com observadores ocidentais. A esterilização-por-finitude na situação egípcia foi extraordinária, porque em última análise representava uma circularidade: a luta de três lados foi um processo circular. A contradição entre a pequena burguesia educada em ascensão e a Irmandade Muçulmana com sua clientela de massa foi tal que foi o terceiro lado que venceu.

Vocês podem ver bem o que estava em jogo aqui: há um futuro real, uma declaração, na forma que conhecemos há muitos anos, ou seja, a mobilização compósita ou mesmo contraditória que se une negativamente, em oposição ao governo despótico existente? Devemos ainda – para nos colocarmos esta questão de modo simples – começar reduzindo tudo a uma finitude pré-constituída que reduz tudo, em última análise, à luta histórica entre democratas e ditadores? Especialmente se alguns estão felizes – se posso colocar assim – em não se preocupar muito com o retorno dos ditadores, como no caso egípcio.

Para que aconteça uma invenção da história, uma criação – isto é, algo dotado de uma verdadeira infinitude – é preciso que haja uma nova forma de declaração, estabelecendo uma aliança entre os intelectuais e grande parte das massas. Essa nova aliança não estava presente nas praças públicas. Todo o problema é inventar uma modernidade diferente do capitalismo globalizado, e fazê-lo por meio de uma nova política. Enquanto não tivermos os primeiros rudimentos dessa modernidade diferente, teremos o que vemos agora, ou seja, unidades negativas que acabam girando em círculos. E, do ponto de vista da propaganda, a repetição da ideia de que é a luta do bem contra o mal, posta em termos que são uma caricatura da situação real.

Esse confronto de três lados é falsificado porque o termo “modernidade” já foi capturado. Ele enquadra a “aspiração” em termos de consumo e do regime democrático ocidental, ou seja, a aspiração de se integrar à ordem dominante tal como ela é agora. Afinal, o ‘Ocidente’ é o nome educado para a hegemonia do capitalismo globalizado. Se você quiser se integrar a isso, bem, isso depende de você, mas é preciso aceitar que não é uma invenção, nem uma nova liberdade ou qualquer outra coisa. Se você quer outra coisa, não basta ser anticapitalista, que é se basear em uma abstração, mas também inventar e propor uma forma viva de modernidade que não esteja sob a égide do capitalismo globalizado. Esta é uma tarefa de extraordinária importância que apenas começou a ser resolvida. De fato, o marxismo clássico acreditava ser o herdeiro historicamente legítimo da modernidade capitalista. Ele viu muito bem que essa modernidade capitalista levou, ou já era, a barbárie, mas acreditava que o movimento interno geral dessa barbárie produziria um legado de civilização, que os revolucionários herdariam. Essa abordagem do problema é bastante equivocada. Podemos perfeitamente imaginar que a modernidade capitalista é uma modernidade sem outra herança além da destruição. Meu ponto de vista é – para onde ela está indo? As pessoas que se unem sob sua bandeira, sem saber, na realidade aspiram a um niilismo organizado. O “mal-estar da civilização” de que Freud falava era muito mais profundo do que os marxistas entendiam. Não se tratava apenas de uma questão de distribuição, divisão ou acesso aos frutos milagrosos da civilização; nem se tratava de educação (a grande ideia de gente como Tolstoi ou Victor Hugo era a universalização da educação, proporcionando civilização a todos e, portanto, sua reinvenção nas mãos de quem a recebeu) – ideias que permaneceram fortes no final do século passado.

Parece que todo esse empreendimento requer uma inovação própria, tocando o simbólico: isto é, inventar novos parâmetros para a civilização. Foi o que vi nas praças onde as multidões se aglomeravam. Falta um presente – a menos que a multidão se declare. Talvez estejamos no estágio em que a multidão gostaria de se declarar, ou seja, o que eu chamei com otimismo de “despertar da história”. Mas esta declaração não tem recursos simbólicos sobre os quais recorrer. Politicamente, a questão é bastante clara: a modernidade capitalista, em certo sentido, pressupõe que todos os tipos de meios sejam usados ​​para garantir que a fração educada da população (a pequena burguesia urbana, as classes médias etc.) permaneça profundamente desconectada da massa fundamental da população. Podemos identificar os mecanismos de propaganda que servem a esse propósito, e devo dizer que, infelizmente, o “secularismo” é um deles. A política consiste em superar esses mecanismos, indo além deles. Isso é o que chamamos de ligação dos intelectuais com as massas, para usar o velho jargão. Ou seja, a capacidade dos intelectuais de exigir não só para si mesmos, mas também para os outros, em nome de uma modernidade transformada, a capacidade de dizer o que o protesto está fazendo na praça, e não se apegar ao seu monopólio e assim deixar de repente o outro componente, seja eleitoralmente ou pela violência, vencer no final, inclusive dentro da atividade negativa que os uniu. O Egito dá uma lição universal sobre esse ponto, e a Ucrânia verá a mesma coisa, embora em variantes que ainda não conheço.

As operações de propaganda reducionista que são aplicadas a determinadas situações históricas devem ser chamadas de ‘finitude’, e o desvelamento da finitude de ‘infinitização’ – isto é, o momento em que os parâmetros da declaração finalmente foram reunidos, o momento em que você pode, certamente, declarar ‘Mubarak, renuncie!’, mas também outra coisa. O quê, então? Bem… em todo caso, não o desejo pelo Ocidente – não é isso que pode tapar o buraco. Estamos vivendo um ponto de inflexão histórica essencial, um momento que já existiu no século XIX, quando as pessoas tinham clareza sobre a negação, mas não sobre seu correlato afirmativo. E nesse vácuo, o velho mundo reapareceu porque tinha a seu favor a virtude de já estar lá.

Conheça mais da obra de Alain Badiou em seu Manifesto pela filosofia.

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