Breve introdução ao livro realismo capitalista de Fisher

Andre Po Sheng Yu[1]

O presente texto busca apresentar aos leitores e leitoras de maneira introdutória o livro do escritor crítico Mark Fisher, obra de 2009 e que foi publicada pela editora Autonomia Literária no ano de 2020 no Brasil. A obra provoca a reflexão sobre os sentimentos de impotência e desesperança por um mundo para além do capitalismo, mesmo quando as próprias pessoas sabem que as coisas não vão bem nele.

A expressão realismo capitalista não é original de Fisher, já foi usada na década de 1960 por alguns artistas alemães como referência jocosa ao realismo socialista e o que o autor fez foi ressignificar e expandir a expressão, de modo a abranger a estrutura social, abarcando a própria cultura, educação, trabalho, esfera privada e até o modo de sofrer. Assim, realismo capitalista é ao mesmo tempo uma crença e conjunto de práticas materiais que repousam na viabilidade política e econômica única do modo de produção capitalista, muito similar à perspectiva deflacionária da pessoa depressiva: o estado positivo para além do capitalismo, ou mesmo alternativas ao capitalismo são perigosas ilusões.

A proposta fisheriana é justamente ir além da crítica moral ao capitalismo – ao enfatizar que o capitalismo gera desigualdades, miséria e sofrimento, ocorre a reafirmação do realismo capitalista –, expor que o realismo do capitalismo não é tão realista quanto se difunde, uma vez que a difusão e instalação da ontologia empresarial tanto na esfera pública e privada decorrem da ação dos neoliberais, que formaram a vanguarda intelectual de think tanks para que o realismo capitalista fosse concebido.

Tal vanguarda foi responsável por desmantelar as classes sociais em indivíduos e de captar o Estado ao poder gerencial do capital e ao mesmo tempo manter a constante vigilância dos indivíduos e a concorrência entre eles, destruindo a solidariedade e impedindo a sua organização coletiva. Ao prometer libertar as pessoas das amarras da burocracia estatal, o realismo capitalista nos enlaça em uma burocracia própria e se impõe como único modo realista de governo.

Fisher discorre que a crise identitária que oscila entre o antigo sujeito de instituições disciplinares e o novo estatuto do consumidor provoca o que ele chama de impotência reflexiva entre a geração mais nova: sabe que algo está errado e que as coisas não vão bem, mas ao mesmo tempo não é capaz de mudar, muito menos ir além da busca por prazer.[2] E essa crise não se circunscreve somente aos jovens e estudantes, mas também aos adultos e ao próprio mundo do trabalho, já que no pós-fordismo a estabilidade e a orientação da ação a longo prazo desaparecem, exigindo-se constantemente novas habilidades dos trabalhadores e trabalhadoras enquanto perambulam por diferentes trabalhos.[3]

Outro sintoma do capitalismo tardio é a responsabilização individual, de modo que cada um é responsável pela própria condição de pobreza, da falta de oportunidades ou de desemprego. Reside aqui uma contradição profunda impregnada nos indivíduos: ao mesmo tempo que não são capazes de mudar a própria condição, são bombardeados pela crença de que são potentes para fazer tudo que quiserem.

Em Fisher, a análise das enfermidades mentais sobre quadros analíticos individuais e psicológicos não elucidam as suas causas, em que pese a relação de tais enfermidades com a instância neurológica, o autor sugere buscar nas realidades político-sociais. A sugestiva mudança para quadros analíticos impessoais e políticos busca compreender e combater as patologias no capitalismo tardio, marcado por ciclos de euforia e depressão, o que em muito se assemelha à prosperidade momentânea da bolha econômica, seguida por sua queda.

Articulando com a elaboração de Slavoj Zizek sobre o Grande Outro – que se trata da ficção coletiva -, Fisher demarca que os nossos desejos e preferências são moldados pelo Grande Outro, porém isso é ocultado e se apresenta como algo inerente a nós e que essa inculcação ocorre em amplas esferas da estrutura social e ao mesmo tempo dificulta o encontro e responsabilização dele. O que ocorre é que o realismo capitalista protege o sistema capitalista culpando os indivíduos pelos desvios perpetrados contra ele e não propriamente o sistema.

Mas esta evasão é, na verdade, um procedimento de dois passos: a estrutura será muitas vezes invocada (implícita ou abertamente) precisamente no momento em que existe a possibilidade de indivíduos que pertencem à estrutura empresarial serem punidos. Neste ponto, de repente, as causas dos abusos ou das atrocidades são tão sistêmicas, tão difusas, que nenhum indivíduo pode ser responsabilizado.[4]

O livro de Fisher, mais que descrição do realismo capitalista, nos oferece um horizonte e papel da esquerda: “desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”.[5] Como dito alhures, o realismo é fruto de uma luta político-ideológica, em que os neoliberais triunfaram em fazer com que as pessoas acreditem que o capitalismo é melhor para as próprias pessoas, apesar dos conflitos, contradições, disputas e antagonismos.

O que fazer? Conquistar politicamente o Estado – Fisher critica a ação direta que abandona o espaço político estatal e os meios de comunicação, facilitando a apropriação pelos neoliberais – e ir além, articulando com a potência fora do Estado e reunir forças de diferentes grupos visando romper com o realismo, ao mesmo tempo construindo novos desejos para substituir aqueles difundidos pelos think tanks neoliberais. A luta é justamente em sentido oposto pela normalização da precariedade econômica, social e existencial promovida pela governança liberal, que converteu os antagonismos políticos em condições sociais.[6]

Uma frase de esperança do autor:

A longa e escura noite do fim da história deve ser encarada como uma enorme oportunidade. A própria generalidade opressiva do realismo capitalista significa que mesmo tênues vislumbres de possibilidades políticas e econômicas alternativas são capazes de gerar um efeito desproporcionalmente grande. O menor dos eventos pode abrir um buraco na cinzenta cortina reacionária que encurtou os horizontes de possibilidade sob o realismo capitalista. De uma situação em que nada pode acontecer, de repente, tudo é possível de novo.[7]

Ao mesmo tempo que o mundo se apresenta hoje insuscetível a mudanças para além do capitalismo, é nosso papel angariar forças para mostrar o contrário, que a projeção do realismo capitalista se assenta no individualismo, competição e na destruição da solidariedade. O real ainda está por vir, para além do capitalismo.

______

[1] Bacharel em geografia pela Universidade Estadual de Londrina e bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – câmpus Londrina.

[2] Ler o capítulo “Impotência reflexiva, imobilização e comunismo liberal”.

[3] Nas palavras de Fisher: “Trabalho e vida tornam-se inseparáveis. O capital te acompanha até nos sonhos”. p. 62.

[4] FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Tradução Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato, Maikel da Silveira. 1. ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 116.

[5] Ibidem, p. 142.

[6] Nas palavras do autor: “Devemos converter os problemas generalizados se saúde mental em condições medicalizadas em antagonismos efetivos. Os transtornos afetivos são formas de descontentamento capturado; essa insatisfação pode e deve ser canalizada para fora, direcionada para a sua verdadeira causa, o capital”. p. 132.

[7] Ibidem, p. 133.

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