A literatura da colônia e o colonialismo supérstite

Por José Carlos Mariátegui, via Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana*, traduzido por Mikael Abrão-Bombassaro

Mariátegui investiga a literatura peruana pela raiz, desenvolvendo uma crítica ao impacto da colonização espanhola na cultura do Peru. Tomando através da história um viés crítico explícito e pungente, marxista por excelência, e indagando sobre as mais diversas marcas espanholas no Peru e na América – forçosamente impostas pelos colonizadores nos povos originários e descendentes – elabora, tratando da literatura colonial e pós-colonial peruana, uma crítica precisa, que fecha muito bem os Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana apresentando sua atenção ao lado artístico em sua análise da realidade histórica de seu país. Esta tradução apresenta na íntegra dois capítulos do sétimo ensaio da obra, intitulado El proceso de la literatura: La literatura de la colonia e El colonialismo supérstite, onde Mariátegui fundamenta suas críticas e introduz sua investigação literária, histórica, e completamente inserida em seu tempo, em sua realidade sul-americana, descobrindo no passado as razões do presente e o buraco deixado pela opressão espanhola em suas colônias.

A LITERATURA DA COLÔNIA

Matéria primária de unidade de toda literatura é o idioma. A literatura espanhola, com a italiana e a francesa, começa com os primeiros cantos e relatos escritos nessas línguas. Somente a partir da produção de obras propriamente artísticas, de méritos perduráveis, em espanhol, italiano e francês, aparecem respectivamente as literaturas espanhola, italiana e francesa. A diferenciação destas línguas do latim não estava ainda acabada, e do latim se derivavam diretamente todas elas, consideradas por muito tempo como linguagem popular. Mas a literatura nacional dos ditos povos latinos nasce, historicamente, com o idioma nacional, que é o primeiro elemento de demarcação dos limites gerais de uma literatura.

O florescimento das literaturas nacionais coincide, na história do Ocidente, com a afirmação política da ideia nacional. Forma parte do movimento que, através da Reforma e do Renascimento, criou os fatores ideológicos e espirituais da revolução liberal e da ordem capitalista. A unidade da cultura europeia, mantida durante o Período Medieval pelo latim e pelo papado, se rompeu a causa da corrente nacionalista, que teve uma de suas expressões na individualização nacional das literaturas. O “nacionalismo” na historiografia literária, é por tanto um fenômeno da mais pura tradição política, estranho à concepção estética da arte. Tem sua mais vigorosa definição na Alemanha, desde a obra dos Schlegel, que renova profundamente a crítica e a historiografia literária. Francesco de Sanctis – autor da justamente célebre Storia della letteratura italiana, da qual Brunetiére escrevia com fervorosa admiração: “esta história da literatura italiana que eu não me canso de citar e que não cansam, na França, de não ler” – considera característico da crítica oitocentista: “quel pregio de la nazionalitá, tanto stimato dai critici moderni e pel cuale lo Schlegel esalta il Calderón, nazionalissimo spagnuolo e deprime il Metastasio non punto italiano”. [1]

No Peru, a literatura nacional, como a nacionalidade, é de irrenunciável filiação espanhola. É uma literatura escrita, pensada e sentida em espanhol, embora nos tons, e mesmo na sintaxe e na prosódia do idioma, a influência indígena seja em alguns casos mais ou menos evidente e intensa. A civilização autóctone não chegou à escrita e, portanto, não chegou própria e estritamente à literatura, ou melhor, esta se deteve na etapa dos aedos, das lendas e das representações coreográfico-teatrais. A escrita e a gramática quéchua são obras de origem espanhola, e os escritos quéchuas pertencem totalmente a literatos bilíngues como El Lunarejo, até o surgimento de Inocencio Mamani, o jovem autor de Tucuípac Munashcan[2]. A língua castelhana, mais ou menos americanizada, é a linguagem literária e o instrumento intelectual desta nacionalidade cujo trabalho de definição ainda não foi concluído.

Na historiografia literária, o conceito de literatura nacional do mesmo modo que não é atemporal, tampouco é demasiado concreto. Não traduz uma realidade mensurável e idêntica. Como toda sistematização, apreende apenas a mobilidade dos fatos (a própria nação é uma abstração, uma alegoria, um mito, que não corresponde a uma realidade constante e precisa, cientificamente determinável. Remarcando o caráter de exceção da literatura hebraica, De Sanctis constata o seguinte: “Verdadeiramente, uma literatura de todo nacional é uma quimera. Ela teria como condição um povo perfeitamente isolado, como se diz que é a China (mesmo que a China tenha sido penetrada pelos ingleses). Tal imaginação e estilo, chamado hoje de orientalismo, não é nada de especial ao Oriente, mas sim do norte e de todas as literaturas bárbaras e nascentes. Α poesia grega tinha poesia asiática, e a poesia latina tinha poesia grega, e a poesia italiana tem poesia latina e poesia grega.”.[3]

O dualismo quéchua-espanhol, ainda não resolvido, faz da literatura nacional um caso de exceção impossível de estudar com o método válido para as literaturas organicamente nacionais, nascidas e desenvolvidas sem a intervenção de uma conquista. Nosso caso é diferente dos de outros povos da América, onde a mesma dualidade não existe, ou existe em termos inócuos. A individualidade da literatura argentina, por exemplo, está em estrito acordo com uma definição vigorosa de personalidade nacional.

A primeira etapa da literatura peruana não pôde escapar ao destino imposto por sua origem. A literatura dos espanhóis da Colônia não é peruana, é espanhola. Claro, não por estar escrita em espanhol, mas por ter sido concebida com espírito e sentimento espanhol. A este respeito, não me parece haver discrepância. Gálvez, hierofante do culto ao Vice-Reino em sua literatura, reconhece como crítico que “a época da Colônia produziu apenas imitadores servis e inferiores da literatura espanhola e especialmente a gongórica, de onde tiravam somente o inchado e o mau e que não tinham a compreensão nem o sentimento do meio, exceto Garcilaso, que sentiu a natureza, e Caviedes, que foi único em suas agudezas e que em certos aspectos da vida nacional, na malícia crioula, pode e deve ser considerado o antepassado distante de Segura, de Pardo, de Palma e de Paz Soldán”.[4]

As duas exceções, muito mais a primeira que a segunda, são incontestáveis. Garcilaso, sobretudo, é uma figura solitária na literatura da Colônia. Em Garcilaso, duas idades dão das mãos, duas culturas. Mas Garcilaso é mais inca que conquistador, mais quéchua que espanhol. É, também, um caso aparte. E nisto reside precisamente sua individualidade e sua grandeza.

Garcilaso nasceu do primeiro abraço, do primeiro amplexo fecundo de duas raças, a conquistadora e a indígena. É, historicamente, o primeiro “peruano”, se entendemos a “peruanidade” como uma formação social, determinada pela conquista e pela colonização espanhola. Garcilaso preenche com o seu nome e sua obra toda uma etapa da literatura peruana. É o primeiro peruano, sem deixar de ser espanhol. Sua obra, sob seu aspecto histórico-estético, pertence à épica espanhola. É inseparável da máxima epopeia da Espanha: o descobrimento e a conquista da América.

Colonial, espanhola, aparece a literatura peruana, em sua origem, até nos gêneros e assuntos de sua época. A infância de toda literatura, normalmente desenvolvida, é a lírica[5]. A literatura oral indígena obedeceu, como todas, esta lei. A Conquista transplantou ao Peru, com o idioma espanhol, uma literatura já evoluída, que continuou sua própria trajetória na Colônia. Os espanhóis trouxeram um gênero narrativo bem desenvolvido, que do poema épico avançava ao romance. E o romance caracteriza a etapa literária que começa com a Reforma e o Renascimento. O romance é, em boa conta, a história do indivíduo da sociedade burguesa; e deste ponto de vista Ortega y Gasset não está desprovido de razão quando registra a decadência do romance. O romance renascerá, sem dúvida, como arte realista, na sociedade proletária; mas, por hora, o relato proletário, enquanto expressão de epopeia revolucionária, é mais épico que o romance propriamente dito. A épica medieval, que decaía na Europa desde a época da conquista, encontrava aqui os elementos e estímulos de um renascimento. O conquistador podia sentir e expressar epicamente a Conquista. A obra de Garcilaso está, sem dúvida, entre a épica e a história. A épica, como observa muito bem De Sanctis, pertence aos tempos do maravilhoso[6]. A melhor prova da irremediável mediocridade da literatura da Colônia está no fato que, depois de Garcillaso, não houve nenhuma criação épica original. A temática dos literatos da Colônia é, geralmente, a mesma dos literatos da Espanha, e sendo repetição ou continuação desta, se manifesta sempre em retardo, pela distância. O repertório colonial se compõe quase exclusivamente de títulos que acusam o eruditismo, o escolasticismo, o classicismo abatido dos autores. É um repertório de rapsódias e ecos, senão de plágios. O acento mais original é, com efeito, o de Caviedes, que anuncia o gosto limenho pelo tom festivo e zombeteiro. El Lunarejo, não obstante seu sangue indígena, se destacou somente como gongorista, isto é uma atitude característica de uma literatura velha que, esgotada do renascimento, chegou ao barroquismo e ao culteranismo. O Apologético en Favor de Góngora desse ponto de vista, está dentro da literatura espanhola.

O COLONIALISMO SUPÉRSTITE

Nossa literatura não deixa de ser espanhola na data de fundação da República. Segue sendo por muitos anos, já em um, já em outro tresnoitado eco do classicismo ou do romantismo da metrópole. Em todo caso, não sendo espanhola, temos de chama-la, por longos anos, de literatura colonial.

Pelo caráter de exceção da literatura peruana, seu estudo não se acomoda aos tradicionais esquemas de classicismo, romantismo e modernismo, de antigo, medieval e moderno, de poesia popular e literária, etc. E não tentarei sistematizar este estudo conforme a classificação marxista em literatura feudal ou aristocrática, burguesa e proletária. Para não agravar a impressão de que minha alegação está organizada segundo um esquema político ou classista e conformá-lo melhor a um sistema de crítica e história artística, posso construí-lo com outro andaime, sem que isto implique outra coisa além de um método de explicação e ordenação, e por nenhum motivo uma teoria que prejulgue e inspire a interpretação de obras e autores.

Uma teoria moderna – literária, não sociológica – sobre o processo normal da literatura de um povo distingue nele três períodos: um período colonial, um período cosmopolita, um período nacional. Durante o primeiro período um povo, literariamente, é apenas uma colônia, uma dependência de outro. Durante o segundo período, assimila simultaneamente elementos de diversas literaturas estrangeiras. No terceiro, sua personalidade e seu próprio sentimento alcançam uma expressão bem modulada. Não prevê mais nada esta teoria da literatura. Mas não nos faz falta, por enquanto, um sistema mais amplo.

O ciclo colonial se apresenta na literatura peruana com muita precisão e clareza. Nossa literatura não é apenas colonial nesse ciclo por sua dependência e vassalagem à Espanha; é, sobretudo, por sua subordinação aos resíduos espirituais e materiais da Colônia. Dom Felipe Pardo, a quem Gálvez arbitrariamente considera como um dos precursores do peruanismo literário, não repudiava a República e suas instituições por simples sentimento aristocrático; as repudiava, sim, por um sentimento godo. Toda a inspiração de sua sátira – bastante medíocre – procede de seu mau humor de corregedor ou de “encomendero” a quem uma revolução igualou, na teoria, senão de fato, com os mestiços e os indígenas. Todas as raízes de sua burla estão em seu instinto de casta. O acento de Pardo y Aliaga não é o de um homem que se sente peruano, mas o de um homem que se sente espanhol em um país conquistado pela Espanha para os descendentes dos seus capitães e dos seus escolarizados.

Este mesmo espírito, em menores doses, mas com os mesmos resultados, caracteriza quase toda nossa literatura até a geração “colônida”, que, iconoclasta diante do passado e de seus valores, acata Gonzáles Prada como seu mestre, e saúda a Eguren como seu precursor, isto é, os dois escritores mais libertos do espanholismo.

Que coisa mantém viva durante tanto tempo em nossa literatura a nostalgia da Colônia? Por certo não somente o passadismo individual dos literatos. A razão é outra. Para descobri-la é preciso sondar um mundo mais complexo do que aquele que abarca a vista do crítico.

A literatura de um povo se alimenta e se apoia em seu substratum econômico e político. Em um país dominado pelos descendentes dos encomenderos e dos ouvidores do vice-reinado, nada era mais natural, por conseguinte, que a serenata às suas varandas. A autoridade da casta feudal repousava em parte sobre o prestígio do vice-reinado. Os medíocres literatos de uma república que se sentia herdeira da Conquista não podiam fazer outra coisa além de lustrar os brasões vice-reinais. Unicamente os temperamentos superiores – sempre precursores das coisas por vir, em todos os povos e em todos os climas – eram capazes de subtrair esta fatalidade histórica, demasiado imperiosa para os clientes das classes latifundiárias.

A fraqueza, a anemia, a flacidez de nossa literatura colonial e colonialista provem de sua falta de raízes. A vida, como afirmava Wilson, vem da terra. A arte tem necessidade de se alimentar da seiva de uma tradição, de uma história, de um povo. E no Peru a literatura não brotou de uma tradição, da história, dos povos indígenas. Nasceu de uma importação da literatura espanhola; se nutriu logo da imitação da mesma literatura. Um enfermo cordão umbilical a manteve unida à metrópole.

Por isso não tivemos quase nada além de barroquismo e culteranismo de clérigos e ouvidores, durante a colonização; romantismo e trovadorismo mal transferidos dos bisnetos dos mesmos ouvidores e clérigos, durante a República.

A literatura colonial, malgrado algumas solitárias e raquíticas evocações do império e suas pompas, sentiu-se estranha ao passado incaico. Careceu absolutamente de aptidão e imaginação para reconstruí-lo. Para o historiógrafo Riva Agüero isto lhe parecia muito lógico. Vedado de estudar e denunciar esta incapacidade, Riva Agüero se apressou em justifica-la, subscrevendo com complacência e convicção o juízo de um escritor da metrópole: “os sucessos do império incaico, segundo o dizer muito exato de um famoso crítico (Menéndez Palayo), nos interessam tanto quanto poderiam interessar aos espanhóis de hoje as histórias e conselhos dos Turdetanos e Carpetanos”. E nas conclusões do mesmo ensaio diz: “o sistema que para americanizar a literatura se remonta até os tempos anteriores à Conquista, e trata de fazer viver poeticamente as civilizações quéchua e asteca, e as ideias e os sentimentos dos aborígenes, me parece o mais estreito e infecundo. Não deve chamar-se americanismo, mas exotismo. Já disseram Menéndez Pelayo, Rubio e Juan Valera; aquelas civilizações ou semicivilizações morreram, se extinguiram, e não há modo de retomar sua tradição, posto que não deixaram literatura. Para os crioulos de raça espanhola, são estrangeiras e peregrinas e nada nos liga com elas; e estrangeiras e peregrinas são também para os mestiços e os índios cultos, porque a educação que têm recebido lhes europeizou por completo. Nenhum deles se encontra na situação de Garcilaso de Vega”. Na opinião de Riva Agüero – opinião característica de um descendente da conquista, de um herdeiro da Colônia, para quem constituem artigos de fé os juízos dos eruditos da Corte – “recursos muito mais abundantes oferecem as expedições espanholas do século XVI e as aventuras da conquista”[7].

Já adulta a República, nossos literatos não lograram sentir o Peru senão como colônia da Espanha. A Espanha partia, em busca não só de modelos mas também de temas, sua imaginação domesticada. Exemplo: a Elegia a Morte de Alfonso XII de Luis Benjamín Cisneros, que foi sem dúvida, dentro da vulgar e desbotada tropa romântica, um dos espíritos mais liberais e oitocentistas.

O literato peruano não soube quase nunca se sentir vinculado ao povo. Não pôde nem desejou traduzir o penoso trabalho de formação de um Peru integral, de um Peru novo. Entre o Incaico e a Colônia, optou pela Colônia. O peru novo era uma nebulosa. Somente o Incaico e a Colônia existiam clara e definidamente. E entre a balbuciante literatura peruana e o incaico, o índio se interpunha, separando-os, à Conquista.

Destruída a civilização incaica pela Espanha, constituído o novo estado sem o índio e contra o índio, a raça aborígene submetida à servidão, a literatura tinha que ser crioula, litorânea, na proporção em que deixava de ser espanhola. Não pôde, por isso, surgir no Peru uma literatura vigorosa. O cruzamento do invasor com o indígena não havia produzido no Peru um tipo mais ou menos homogêneo. Ao sangue ibérico e quéchua havia se mesclado copiosamente uma torrente de sangue africano. Mais tarde a importação de coolies adicionaria sangue asiático à esta mescla. Portanto, não havia somente um tipo, mas diversos tipos de crioulos, de mestiços. A função de tão distintos elementos étnicos, por outro lado, em um tíbio e sedante pedaço de planície, onde uma natureza indecisa e negligente não podia imprimir no brando produto desta experiência sociológica um forte selo individual.

Era fatal que o heteróclito e o variegado de nossa composição étnica transcendesse ao nosso processo literário. O orto da literatura peruana não poderia assemelhar-se, por exemplo, ao da literatura argentina. Na república do sul, o cruzamento do europeu e do indígena produziu o gaúcho.  No gaúcho se fundiram perdurável e fortemente a raça forasteira e conquistadora e a raça aborígene. Consequentemente, a literatura argentina – que é, entre as literaturas ibero-americanas, a que talvez tenha mais personalidade – está permeada de sentimento gaúcho. Os melhores literatos argentinos extraíram do estrato popular seus temas e suas personagens. Santo Vega, Martín Fierro, Anastasio el Pollo, antes que na imaginação artística, viveram na imaginação popular. Hoje mesmo a literatura argentina, aberta às mais modernas e distintas influências cosmopolitas, não renega seu espírito gaúcho. Pelo contrário, o reafirma altamente. Os mais extremistas poetas da nova geração se declaram descendentes do gaúcho Martín Fierro e de sua bizarra estirpe de pajadores. Um dos mais saturados de ocidentalismo e modernidade, Jorge Luis Borges, adota frequentemente a prosódia do povo.

Discípulos de Lista e Hermosillas, os literatos do Peru independente, ao contrário, quase invariavelmente desdenharam a plebe. O único que seduzia e deslumbrava sua cortesã e pávida fantasia de fidalgos da província era o espanhol, o do vice-reino. Mas a Espanha estava muito longe. O Vice-Reino – mesmo que subsistisse o regime feudal estabelecido pelos conquistadores – pertencia ao passado. Toda a literatura desta gente dá, por isto, a impressão de uma literatura desenraizada e raquítica, sem raízes em seu presente. É uma literatura de implícitos emigrados, de nostálgicos sobreviventes.

Os poucos literatos vitais, nesta palúdica e clorótica teoria de exaustos e esmagados retores, são os que de algum modo traduziram o povo. A literatura peruana é uma pesada e indigesta rapsódia da literatura espanhola, em todas as obras em que ignora o Peru vivente e verdadeiro. O ai indígena, a pirueta zamba, são as notas mais animadas e verossímeis desta literatura sem asas e sem vértebras. Na trama das Tradiciones não se descobre em seguida la hebra del chispeante y chismoso medio pelo limeño? esta é uma das forças vitais da prosa do tradicionalista. Melgar, desdenhado pelos acadêmicos, sobreviverá a Althus, a Pardo e a Salaverry, porque em seus yaravís o povo sempre encontra um vislumbre de sua autêntica tradição sentimental e de seu genuíno passado literário.

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[1] Francesco de Sanctis, Teoria e Storia dela Letteratura, vol.1, p.186 (…) [N.A.]

[2] Veja em Amauta 12 e 14 as notícias e comentários de Gabriel Collazos e José Gabriel Cosio sobre a comédia quéchua de Inocencio Mamani, cuja gestação provavelmente não é estranha ao ascendente fecundador de Gamaliel Churata. [N.A.]

[3] De Sanctis, obra citada p. 186 e 187 [N.A.]

[4] José Gálvez. Posibilidad de una genuina literatura nacional, p. 7 [N.A.]

[5] De Sanctis, em sua Teoria e Storia dela Letteratura (p.205), disse: “o homem, tanto na arte quanto na ciência, parte da subjetividade, e por isto a lírica é a primeira forma da poesia. Mas da subjetividade passa depois à objetividade, e temos a narração, na qual a comoção subjetiva é incidental e secundária. O campo da lírica é o ideal, o da narração é o real: na primeira, a impressão é fim, a ação é ocasião; na secunda sucede o contrário; a primeira não se dissolve na prosa, mas se destrói; a segunda se resolve na prosa, que é a sua tendência natural” [N.A.]

[6] “São os tempos de luta – escreve De Sanctis – em que a humanidade ascende de uma ideia à outra e o intelecto não triunfa sem que a fantasia seja sacudida: quando uma ideia triunfou e se desenvolve em exercício pacífico, não se tem mais a epopeia, mas a história. O poema épico, portanto, se pode definir como a história ideal da humanidade em sua passagem de uma ideia à outra.”. [N.A.]

[7] José de la Riva Agüero, Carácter de la Literatura del Perú Independiente, Lima, 1905. [N.A]

*Texto disponível em MARIÁTEGUI, José C. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana (VII, El proceso de la literatura); Peru, Lima: Editorial Amauta, 1952.

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