O direito como forma burguesa da política

Por Bernard Edelman traduzido por Reginaldo Gomes

Por que não produzimos uma teoria marxista do Estado? Essa questão, que está no centro da intervenção de Althusser, perturba os partidos comunistas europeus. Os marxistas tem oferecido uma primeira resposta teórica, apontada por Althusser:


“A isto se acrescenta, ademais, o fato de que, também a propósito da sociedade capitalista e do movimento operário, a teoria marxista quase não diz nada sobre o Estado, nem sobre a política, nem sobre a ideologia e as ideologias, nem sobre as organizações da luta de classes (estruturas, funcionamento). É um “ponto cego” que testemunha, sem dúvida, alguns limites teóricos contra os quais Marx se chocou, como se estivesse paralisado pela representação burguesa do Estado, da política etc., a ponto de reproduzi-la sob uma forma apenas negativa (crítica de seu caráter jurídico). Ponto cego ou zona proibida, o resultado é o mesmo.”

Por que essa falta se perpetuou? Por que, no decurso das lutas operárias e do desenvolvimento do aparelho político-jurídico, não adequamos o marxismo aos novos fenômenos que tomavam forma diante de nossos olhos? Ou melhor: por que só agora começamos a “perceber” que Marx estava “paralisado” pela representação burguesa do Estado, que é essencialmente uma representação jurídica? Talvez nossa cegueira, nossa obstinação com o direito civil, tenha nos deixado igualmente cegos e obstinados na crítica a esse direito realizada por Marx?

Não foi isso que nos impediu a “retificação”? Aceitemos provisoriamente essa hipótese. Mas então as coisas são mais graves. Como é possível que as “lacunas” de Marx tenham se convertido em nossas lacunas? Seremos tão pobres que um “vazio” na teoria nos impeça de ver a “realidade”? Seremos tão religiosos que a insuficiência do dogma nos converta em crianças perdidas e perturbadas?

Em resumo: o que aconteceu com o marxismo que se transformou de teoria revolucionária em teoria da cegueira?

Um primeiro ponto é evidente. O marxismo se converteu, nas mãos dos partidos comunistas europeus e dos países do “socialismo real”, em uma ideologia jurídico-política que desempenha exatamente a mesma função que as teorias políticas burguesas. Assim elevado ao posto de ideologia, o marxismo reproduziu, a seu modo, as funções daquela: a duplicidade, a participação na causa, o código.

A duplicidade. Nós zombamos bastante da lei burguesa, de sua “formalidade” que cobria as práticas de classes mais piedosas. Ficamos bastante indignados com essa duplicidade. O direito diz que você é livre? Mas veja a que se reduz essa liberdade! Expressar uma opinião pela manhã, antes de ir para o trabalho, diante de uma taça de vinho. Depois, para a fábrica!

Tudo isso é justo, naturalmente. O ruim é que nunca aplicamos o mesmo juízo ao uso que foi feito no marxismo. Pensando bem, todas as grandes categorias políticas burguesas da política, todas aquelas que podem definir-se como “formas jurídicas” da política – o povo, a soberania, a legitimidade, o Estado de Direito… – operaram dentro dos conceitos marxistas. Simplesmente mudaram de nome. Com o proletariado ou a classe operária, é o povo que triunfa (todo o povo, ou a união do povo da França); sob a ditadura do proletariado, é o estado totalitário que governa; sob a democracia avançada, é a ditadura do partido que se perfila.

O marxismo se converteu em uma imensa impostura. Enquanto os seus conceitos ocupavam o palco, nos bastidores a opressão alcançava o seu clímax. Stalin podia, por um lado, promulgar a constituição mais democrática do mundo e, por outro, assassinar em massa o povo russo: o PCF pôde apresentar-se como o partido mais democrático do mundo e desencadear contra alguns de seus militantes uma campanha no mais puro estilo staliniano.

Participação na causa. A ideologia burguesa põe em causa os indivíduos enquanto sujeitos de direito; faz com que eles se constituam para e pelo direito, para desempenhar uma função jurídica com sua capacidade, seu patrimônio, a relação de propriedade consigo mesmo, com as coisas, com os homens e as mulheres. Já o denunciamos suficientemente. Mas já denunciamos alguma vez a participação do marxismo na causa dos indivíduos na forma como ele se desenvolveu? Denunciamos a negação implacável do indivíduo, não do sujeito de direito mas do indivíduo, enquanto produto também de sua própria história, do indivíduo que diz “eu” na luta de classes? Eu não quero a felicidade de todos, dizia Boris Vian, é a felicidade de cada um que me interessa. O marxismo implica a causa deste “cada um”?

Apenas um exemplo: na França os comunistas formam um bloco de 630 mil adeptos. Ai daquele que disser “eu”…! A dissidência o espera em uma emboscada. O “eu” não faz parte do centralismo democrático.

O código. Quando a dogmatização marxista é apresenta como um fenômeno bíblico, é evidente que não se compreendeu nada. A palavra de Deus nunca foi suficiente, nunca foi capaz de preencher seus vazios, e Pascal demonstrou o quão trágico é isso. Mas a palavra legal! Ouçam-na! Ela põe cada um em seu lugar porque é um sistema de distribuição. Homens, conceitos, territórios, espaços, poderes. Essa palavra elabora sua jurisprudência teórica e política, com seus antecedentes, suas modificações, seus cancelamentos, o que implica que existem juízes de instrução, procuradores, tribunais, prisões, execuções.

A palavra legal se apresenta em um corpus – o código – rigorosamente articulado. Lá estão os capítulos. Por exemplo: capítulo Economia, capítulo Política, capítulo Ideologia, capítulo Revolução, capítulo Homem, capítulo Ciência… Existem as seções. Por exemplo, o capítulo Ideologia pode compreender: 1) a relação superestrutura/infraestrutura; 2) o efeito de retorno da superestrutura sobre a infraestrutura e vice-e-versa; 3) as ideologias locais em sua autonomia relativa; 4) o homem da ideologia e a ideologia do Homem, 5) a ideologia dos cães de Pavlov, mas isso é apenas uma piada, ai de mim! Estão lá as subseções. Por exemplo, nas ideologias locais: a moral, a religião, o direito, a filosofia… Como se articulam entre si, como se refletem especularmente umas nas outras, aquilo que se deve pensar etc.

E esse código comporta também o seu esprit des lois, o que faz com que tudo circule, o que em Marx desempenharia a função que a ideia desempenha em Hegel. Quer dizer, a dialética. Um exemplo: qual é o efeito do socialismo sobre os reflexos burgueses do cão de Pavlov? Bulgákov escreveu sobre esse tema em um livro muito bonito, um livro sobre os “transplantes”: o transplante do coração de um cachorro para o corpo de um homem. Que belo funeral!

Finalmente, e acima de tudo, o código previu suas próprias lacunas. Artigo 4º do Código Civil: “O juiz que se negar a julgar, com o pretexto do silêncio, a obscuridade ou a falta da lei, poderá ser processado como culpado de desacato à justiça.” Esse artigo é sublime. Prevê todas as figuras da carência: ou a lei não disse nada, e é o caso do silêncio; ou disse mal, e é o caso da obscuridade; ou disse pouco, e é o caso da insuficiência. E ainda prevê a sanção: se processará o próprio juiz. Em outras palavras, a lei obriga o juiz a ditar a lei. O juiz não pode escapar da lei.

Apliquemos essa lei ao marxismo. O marxismo é mudo, obscuro ou insuficiente acerca da teoria do Estado e do direito? Não importa! O marxismo – ou seja, aqueles que estão oficialmente encarregados de falar dele – deve preencher os vazios, em nome da própria lei. Com velocidade violenta.

Uma última palavra acerca da transformação do marxismo em ideologia. Afinal de contas, o marxismo se converteu em uma teoria da cegueira em nome de uma política da representação. Todo o “novo” é reduzido ao antigo ou, se se preferir, o antigo “representa” o novo. No curso de um ano qualquer, por exemplo, o PCF se converteu (quem poderia imaginar?) no “partido das mulheres”. Mas de que maneira são representadas as mulheres? Segundo a velha oposição proletariado/burguesia! A ecologia? É levada ao antigo esquema natureza/cultura, herdado do século XIX. As relações internacionais? Se age como se a URSS fosse um país socialista, e se fala então de luta entre o imperialismo e o socialismo.

O reformismo, dizia Lênin, pensa a revolução socialista segundo o modelo de 1789. Consequentemente, não existe nada impossível para o marxismo, uma vez que a revolução se tornou impossível. A representação através das palavras e dos modelos – aquelas que Lênin chamava as “palavras-chave” ou as “palavras mortas” – destruiu aquela impossibilidade teórica que é um fundamento constitutivo do marxismo: a fusão entre a teoria e o movimento operário, substituída pela absorção do movimento operário no código marxista.

Se pode, então, compreender melhor porque nunca elaboramos uma “verdadeira” teoria do Estado e do direito, porque deixamos o campo livre aos teóricos burgueses. Temos sido vítimas e produtores da relação burguesa teoria/política. “Teoricamente” éramos marxistas-leninistas; na prática nunca tivemos algo para propor, exceto misérias ridículas, ou mentiras que permitiam indignar o inimigo de classe, ou crimes que o proporcionavam espaço para se apresentar como reparador de erros. Em teoria falamos de ditadura do proletariado e do desgaste do Estado, na prática os ideólogos sorriram maliciosamente quando nos viram retomar por nossa conta a explicação oficial do stalinismo: uma violação da legalidade socialista. Os especialistas em ciência política tinham que se regozijar, que se encher de júbilo sobre a relação teoria-prática.

Essa história continua quando nos lançamos com todo nosso peso sobre a “melhor constituição”, o “melhor regime político”, o melhor método de escrutínio, ou sobre a maneira em que se havia que “democratizar” – respirem fundo – a empresa, a escola, o Estado, a administração, a família, o casal, a sexualidade, e um ou outro dia a lua e Marte e os deuses gregos!

Tudo isso hoje está em via de extinção. Por que? Porque pela primeira vez na história do movimento operário desde que se constituiu em partidos e sindicatos poderosos, se coloca uma pergunta que talvez permita sair do impasse: são talvez os partidos comunistas partidos “como os outros”? Que função desempenham no espaço político burguês? Acaso os sindicatos são também estruturas como as outras, com um espaço designado para eles? E para dar um exemplo: a relação partido/sindicato/, reproduz talvez o poder burguês em sua distinção sociedade civil/Estado? Por um lado, o trabalho “incumbe” aos sindicatos, por outro, a política “incumbe” aos partidos. Não há nisso uma institucionalização, dentro das próprias organizações operárias, da separação fundamental entre o “profissional” e o “político”, que é o segredo da hegemonia burguesa? Porque está totalmente claro que até que o “trabalho” não se converta em “político”, e a política não seja expressão do “trabalho”, permaneceremos na determinação do poder burguês.

Desta maneira, pouco a pouco, vem à tona uma pergunta: não terá “inventado” a burguesia os partidos comunistas e os sindicatos para governar por meio de um aparelho intermediário? Quando digo “inventado” quero dizer contaminado até o ponto que, em última instância, os faz funcionar em seu próprio benefício. Por certo que não diretamente, não vulgarmente, não facilmente, porque a luta de classes existe, mas através de estratégias de confusão, de integração, através daquilo que tem sido chamado “legalização da classe operária”. Posto que, talvez, a ilusão maior que temos herdado consiste em crer que a classe operária “existe”. A classe operária nunca “existiu”, nunca; algumas vezes ela irrompeu, em pessoa, na história – a Comuna, outubro de 1917, maio de 1968, em nossa memória ocidental –, se infiltra por vezes pelos interstícios das práticas, dos discursos, das estruturas, mas nunca existiu exceto como categoria metajurídica com funções de álibi. A classe operária foi legalizada, enquadrada, posta em ordem, e suas organizações de classe participaram nessa legalização. Isso é demonstrado facilmente em um estudo sobre a greve, sobre o direito sindical, sobre o direito constitucional.

Se coloca uma última pergunta, surgida dos escombros e das derrotas: no que não são social-democratas os partidos comunistas?

Sabemos que os partidos social-democratas são uma criação da burguesa, que foram produzidos pelo sistema estatal burguês e que não podem sair dos limites do sistema do qual nasceram. Sabemos, graças a Kautsky, a Bernstein, a social-democracia alemã e ao trabalhismo inglês, que esses partidos não podem se pensar fora do Estado e do direito. Kelsen, o maior filósofo do direito do século XX, amigo de Kautsky, redigiu também o projeto de uma constituição, na qual os partidos haviam sido constitucionalizados!

Por essa razão Lênin recordava, depois de Marx e Engels, que os comunistas se distinguem de todos os demais pela questão do Estado, que é esse o ponto nevrálgico.

Pobre Lênin! Dizia essas coisas sem saber que já a história o estava desmentindo! O dizia precisamente no momento no qual o Partido Comunista Bolchevique se dava uma estrutura e um funcionamento de tipo político-jurídico. O dizia, vítima ele mesmo de sua própria visão da “necessidade”.

Necessidade insuperável de uma organização estatal, de um partido que sustentasse essa organização, que devia criar ao mesmo tempo o proletariado e a burguesia, e destruir a segunda mediante o primeiro. Necessidade voraz, necessidade de Leviatã, que excluía do Estado a própria ideologia político-jurídica, a maneira em que esta funciona nas “consciências” e nos “corações”, a maneira com que sustenta a ordem nas contingências e no vivido mais cotidiano e mais contingente.

Como pudemos esquecer, esquecer no sentido político, as páginas de Marx sobre o matrimônio, a admiração de Engels por Fourier? Como pudemos calar que a política está em toda parte, que, portanto, também a revolução está em toda parte? Como pudemos encerrar a política nos partidos e os partidos no Estado, e continuar proclamando-nos revolucionários, ou seja, diferentes? Diferentes? Sim; em um único lugar, crucial, fundamental, decisivo.

Os partidos comunistas não tem em absoluto a tendência a converter-se em partidos do governo – isso eles já são –, mas de converter-se, eles, em Estado. Não é o Estado que tende a absorver o partido, é o partido que tende a absorver o Estado; é o partido que, nos fatos, proporciona a estrutura do Estado futuro. Não me refiro aqui a nova constituição soviética, onde o fenômeno foi formalizado. Falo do que temos hoje ante nossos olhos.

Consideremos, por exemplo, o estatuto dos militantes comunistas. O que é um militante ideal? Um subproduto do dirigente ideal, que é um homem arrogante, pedante, “astuto”, zelador da história, que ele já não vive, das misérias operárias; zelador da felicidade futura; é um homem, em suma, de costas largas.

Mas o que é o militante “real”? Um homem atormentado pelas contradições da burguesia, do partido e do sindicato, um pouco desorientado, carente de certezas, que aspiraria encontrar o eco de suas incertezas na certeza do impossível.

A imagem do militante comunista é trágica. Deve saber tudo, ter uma resposta para tudo, prever tudo: de outra maneira, falta a seus deveres com o partido. Deve representar a totalidade do partido, deputado de um novo gênero, investido por essa missão pelo centralismo democrático. Posto que o baixo vai até o alto e vice-versa, o militante leva em si a totalidade, ou seja, “tudo” consigo. Quem se ocupará desse último “avanço”? A ideologia dominante? Que maravilhoso!

Tenho visto companheiros que expressam suas angustias, suas incertezas, seus silêncios, lançados a tarefas em que deviam parecer seguros de si mesmos, nas quais deviam transformar seus tormentos em dialética! Nem o Estado burguês submete os seus funcionários a uma violência como essa. O procurador da república, homem de governo como poucos, pode ao menos dizer o que pensa: “A caneta é uma serva, mas a palavra é livre”. No partido estamos, todavia, na coletivização das consciências. Perinde ac cadáver [como um cadáver].

Esses militantes são o produto de nossa teoria do Estado e do direito. Porque temos uma teoria do Estado: é a do partido. Nossa identidade é nossa organização de partido; nossa diferença, a respeito da social-democracia, é nossa teoria e nossa prática do partido. A esse respeito, Bentham triunfará sempre sobre Freud; a contabilidade das virtudes estará sempre por cima da liberação do desejo; a repetição será o amor castigado.

Para isso o partido deve aparecer como uma Cidade de Sol. O amanhecer dissolve os fantasmas. Deste navio em naufrágio fugirão, em primeiro lugar, as mulheres e as crianças.

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