A polícia contra Pasolini, Pasolini contra a polícia

Por Wu Ming [1], via Internazionale traduzido por Matheus Muniz Weiss

  1. O desgraçado está morto”

Marcello Elisei, 19 anos, morre às 3:00, sozinho como um cão acorrentado em uma casa abandonada. Morre depois de um dia e uma noite de gritos, suplícios, gemidos, abandonado sem comida ou água, amarrado pelos pulsos e tornozelos a uma mesa numa cela da prisão de Regina Coeli. Ele tem broncopneumonia, está em um estado de choque, a cela está gélida. As cordas bloqueiam a circulação sanguínea. De uma cela próxima, outro detento – o neofascista Paolo Signorelli – escuta o jovem gritar por bastante tempo, então suspirar, pedindo por água, e, finalmente, um silêncio. Na manhã seguinte, pergunta o que aconteceu. “O desgraçado está morto”, responde rispidamente um guarda penitenciário. A data é 29 de novembro de 1959.

Marcello Elisei estava servindo uma sentença de quatro anos e sete meses por roubar pneus de automóveis. Havia demonstrado sinais de transtorno mental. O mais claro de todos: ele havia engolido pregos, então removidos com lavagem gástrica; no dia anterior, havia batido sua cabeça inúmeras vezes contra a parede, numa tentativa de suicidar-se. Os médicos da prisão acusaram-no de “simulação”. Os guardas arrastaram-no forçosamente e amarraram-no àquela mesa.

No dia 15 de dezembro, o diretor da prisão, Carmelo Scalia, resigna seu cargo, oficialmente por motivos de saúde. À parte disso, ninguém pagaria pela morte de Elisei. Investigações e julgamentos exonerarão todas as partes investigadas.

Lendo acerca da história, Pier Paolo Pasolini estava abalado. “Não sei como poderia escrever um artigo sobre esta morte horrível”, declara à revista Noi donne de 27 de dezembro de 1959. “Mas, certamente, é um episódio que incluirei em um dos contos que tenho em mente, ou mesmo, talvez, no romance Il rio della grana”. Um romance que permaneceu incompleto, então incluído na coleção Alì dagli occhi azzurri (1965). Se tivesse que escrever uma investigação, ele acrescenta, “eu seria absolutamente cruel com os responsáveis: dos guardas ao diretor da prisão. E não me faltaria implicar as responsabilidades dos governantes”.

A solitária agonia e morte de Marcello Elisei afetarão Pasolini por muito tempo, a ponto de inspirarem o final de Mamma Roma (1962). Porém, em 1959, Pasolini ainda não é um diretor. Ele tem 37 anos, é autor de coleções poéticas, roteiros e dois romances que provocaram agitação: Ragazzi di vita e Una vita violenta. Já tinha sido preso, denunciado e processado. O gabinete do primeiro-ministro estava diretamente envolvido com a censura de Ragazzi di vita. No entanto, isso não é nada comparado à perseguição fascista, ao assédio policial e judicial e ao linchamento midiático que ele está prestes a sofrer.

No livro coletivo Pasolini: cronaca giudiziaria, persecuzione, morte (Garzandi, 1977), Stefano Rodotà resume a questão em uma sentença: “Pasolini permaneceu initerruptamente nas mãos dos juízes de 1960 a 1975”. E muitas outras, na verdade. Post mortem. Rodotà fala de um “único julgamento”, uma longa cadeia de investigações e audiências que arrastaram Pasolini a tribunais inúmeras vezes, até várias ao longo de um dia, entre humilhações e assédios, enquanto a imprensa, fora, insultava-o, zombava dele e linchava-o.

  1. O jornalismo liberal

“Estamos, obviamente, de acordo contra a instituição da polícia”.

O homem que, em junho de 1968, escreve esse verso possui já quatro prisões, dezesseis denúncias e onze julgamentos como réu, além de três agressões por parte dos neofascistas (todas arquivadas pela magistratura) e uma busca pelo próprio apartamento feito pela polícia à procura de armas de fogo. “Assim que tiver um pouco de tempo”, ele escreve em uma nota inédita, “publicarei um livro branco com uma dúzia de sentenças pronunciadas contra mim: sem comentários. Será um dos livros mais cômicos das publicações italianas. Mas, agora, as coisas não são tão cômicas. São trágicas, porque já não concernem à persecução de um bode expiatório […]: agora, trata-se de um trabalho de repressão vasto, profundo e calculado, ao qual a parte mais reacionária da Magistratura tem-se dedicado com zelo…”. E ainda: “Gastei cerca de quinze milhões com advogados para defender-me em processos absurdos e puramente políticos”.

Hoje, é difícil, quase impossível, compreender o alcance da persecução sofrida cada dia por Pasolini em 15 anos. A exposição Una strategia del linciaggio e delle mistificazioni, inaugurada em 2005 e recentemente reorganizada na Salaborsa de Bolonha, restitui apenas tênues reverberações. Somente pode ser assim, para entender precisar-se-ia descer ao abismo – como fez Franco Grattarola, autor de Pasolini. Una vita violentata (Coniglio, 2005) – e refazer a sequência de surras da imprensa. Confrontar uma homofobia que macula só de imaginá-la. Pesar o corpo inteiro encharcado de artigos, denso como um grande bólus de excremento e vermes.

Entre os jornais, o Il Tempo destaca-se acima de tudo, mas é a imprensa periódica da direita que atormenta Pasolini de maneira bruta e ininterrupta. Revistas como Lo Specchio e Il Borghese dedicam-se à missão entusiasticamente, com repórteres e escritores perseguindo a vítima, provocando-a, atingindo-a, em todas ocasiões, com títulos como “Il c..o batte a sinistra2 e o estilo inconfundível herdado, hoje, pelo Libero – para citar apenas uma.

Nas páginas do Borghese, destacam-se como difamadores o crítico musical Piero Buscaroli e o futuro autor e diretor televisivo Pier Francesco Pingitore, fundador do Il Bagaglino. Outras invectivas vêm do escritor Giovannino Guareschi e, em uma ocasião, do crítico cinematográfico Gian Luigi Rondi; todavia, a rainha do antipasolinismo é, sem dúvidas, Gianna Preda, pseudônimo de Maria Giovanna Pazzagli Predassi (1922-1981), então cofundadora – adivinhem – do Bagaglino.

Ainda celebrada em um blog de direita como “a senhora do jornalismo liberal”, “fora da multidão”, “nunca moralista nem obscurantista” etc., Preda cultiva contra Pasolini uma obsessão homofóbica, sexofóbica e – ça va sans dire – ideológica. Muitas vezes, refere-se ao escritor/diretor como “La Pasolina”. Para os homossexuais, descritos como arquitetos de complôs sombrios, ela cunhou o termo “pasolinidi”. Ela continua por anos – mesmo depois da morte de Pier Paolo Pasolini (PPP) – a escrever coisas do gênero:

“[Pasolini] pôde, com desenvoltura intacta, continuar a confundir as questões da lombar com as do antifascismo […]. Uma secreta aliança […] faz do “invertido” o partido mais numeroso e mais firme da Itália; um partido que, mediante seus expoentes ilustres, acaba sempre conduzindo ou prestando serviços ao PCI […] O “invertido” sente, com o nariz, o que lhe convém e em que deve apoiar-se, se não quiser prestar contas à opinião pública sobre seu vício […] E, assim, nasce um novo mito… [Para celebrá-lo], pensam, então, os jornais de esquerda que conseguem camuflar de heroísmo o medo secreto desse ou daquele “invertido” clandestino. As sortes dos pasolinidi da Itália serão brilhantes. Já advertem-se os sinais dos sortudos daqueles que descobriram muito tarde a vantagem de ser pasolinidi […] Portanto, se tivermos novos choques com os marxistas […], antes de pensar em cobrir o peito, preocupemo-nos de cobrir o traseiro…”

O “método Boffo”3 vem de longe. Também as conspirações sobre a malvada “teoria de gênero”.

O equivalente de Gianna Preda no Specchio é o escritor ex-republicano Giose Rimanelli, escondido por trás do nom de plume A.G. Solari. Como é óbvio, os ataques frenéticos contra Pasolini remontam também ao Secolo d’Italia, mas um trabalho mais sutil e influente de character assassination acontece na revista popular nacional-conservadora, tal como a Oggi e Gente.

Infelizmente, isso estende-se muito mais. Pasolini parece ser o teste decisivo para o pior. Em 1968, o diretor Sergio Leone, interpelado pelo Borghese, sente a urgência de comentar as polêmicas acerca do filme Teorema: “Estou convencido de que tantos filmes sobre homossexualidade fizeram essa forma de relacionamento anormal tornar-se normal e legítima”. Até no Il Manifesto, encontram-se gracejos homofóbicos: “A tese [de Pasolini] reduzida ao osso (ao sacro) é muito clara…” (21 de janeiro de 1975). Como escreveu Tullio De Mauro:

“Os riachos negros acabam por poluir a água relativamente distante. A linguagem verbal não é feita somente do que dizemos e escutamos. É feita também do que, na memória comum, envolve o dizer e o escutar. O não-dito pesa ao lado do dito, orienta sua apreensão e entendimento. Quem lê a peça Pasolini benedice i nudisti [Pasolini abençoa os nudistas] no L’Espresso do dia 18 de fevereiro de 1968, com uma fotografia de um jovem ciociaro4 nu montando um violoncelo, envolve-se com os efeitos dos impulsos negros de origem fascista, goste ele ou não, queiram ou não os redatores do jornal semanal radical-socialista”.

É uma vasta campanha que favorece, ou melhor, instiga não somente as ações policiais e judiciais, mas também as agressões físicas por partes dos fascistas. Fascistas nunca tocados pela magistratura, que, então, acabarão em várias investigações sobre a estratégia de tensão, como Serafino Di Luia, Flavio Campo e Paolo Pecoriello.

Em 13 de fevereiro de 1964, frente à Casa do Estudante de Roma, um Fiat 600 tenta atropelar um grupo de amigos de Pasolini que o defendia contra uma emboscada fascista. Conduzindo o carro está Adriano Romualdi, discípulo de Julius Evola e filho de Pino, deputado e presidente do Movimento Sociale Italiano (MSI). O episódio é contado com detalhes e fontes em todas as biografias de Pasolini, enquanto está ausente no verbete que o Wikipedia dedica a Romualdi.

Pasolini não processa, nem pela difamação midiática ou pelas agressões físicas. É uma escolha pensada: não quer baixar-se ao nível de seus perseguidores. Ademais, se processasse, não faria nada senão aumentar a já enorme quantidade de tempo que ele gasta em tribunal.

  1. Por quê?

Por que tal perseguição? Por que era homossexual? Entre os artistas e escritores, não era certamente o único. Por que era homossexual e comunista? Sim, mas isso não basta. Por que era homossexual, comunista e expressava-se sem qualquer reticência contra a burguesia, o governo, a democracia italiana, os fascistas, a magistratura e a polícia? Sim, isso é suficiente. Sê-lo-ia em qualquer lugar, menos na Itália e naquela Itália.

Pasolini, escreveu Alberto Moravia, escandalizou essa “burguesia italiana que, em quatro séculos, criou os dois movimentos conservadores mais importantes da Europa, isto é, a contrarreforma e o fascismo”.

A burguesia italiana vingou-se e, de modos mais oblíquos, continua a vingar-se. O absurdo de que “Pasolini estava com a polícia”, repetida pelos fascistas, pelos respeitáveis e pelos falsos inconformistas de hoje, continua a révanche dos fascistas, dos respeitáveis e dos falsos inconformistas de ontem.

Também a apologia póstuma de um Pasolini simplificado, achatado, polido e reduzido a santinho faz parte da révanche.

  1. Não poderão mentir para sempre”

Em março de 1960, Fernando Tambroni, já ministro do Interior e, depois, do Orçamento e da Programação Econômica, tornou-se chefe de um governo democrata-cristão. O executivo forma-se graças aos votos dos parlamentares missinos5. Apenas quinze anos depois da libertação, uma força neofascista aproxima-se da área de governo. Protestos e tumultos eclodem em todo o país. Em 30 de junho, dezenas de milhares de manifestantes encontram-se com a polícia de Genova, cidade operária e partisan escolhida pelo MSI para seu congresso. Em 7 de julho, em Reggio Emilia, a polícia e os carabineiros6 disparam contra uma manifestação sindical, matando cinco pessoas. Em 19 de julho, Tambroni demite-se.

A revista Vie nuove – na qual Pasolini possui uma coluna em que dialoga com os leitores – produz instantaneamente um registro sobre o massacre de Reggio Emilia. Trata-se da gravação do tiroteio. Em Vie Nuove, ano XV, número 33, de 20 de agosto de 1960, Pasolini comenta: “esse que golpeia […] é a frieza organizada e mecânica com a qual a polícia atirou: os golpes sucedem-se, rajada atrás de rajada, sem que nada possa detê-los, como um jogo, quase com a voluptuosidade distraída de uma diversão”.

Estes são os dias do julgamento do nazista Eichmann, e Pasolini conecta as duas histórias:

“Matava assim, com esse distanciamento frio e esperado, com essa dissociação insana. É de esperar-se que as justificativas dos policiais […] serão todas similares àquela já bem conhecidas… Também falarão de ordens, de deveres etc. […] A polícia italiana… configura-se quase como o exército de uma potência estrangeira, instalada no âmago da Itália. Como lutar contra essa potência e seu exército? […] Temos um meio potente de luta: a força da razão, com a coerência e a resistência física e moral que fornece. É com ela que devemos lutar, sem perder um golpe, sem nunca desistir. Nossos adversários são tanto, crítica e racionalmente, fracos quanto, à maneira de policiais, fortes: não poderão mais mentir”.

Em 1961, Pasolini grava seu primeiro filme, Accattone. Em um país no qual lê-se pouquíssimo, o cinema é potencialmente mais perigoso do que a literatura. A reprovação, a censura e a repressão burguesas desencadeadas pelos filmes de Pasolini (todos, sem exceção) serão, incomensuravelmente, maiores do que aquelas provocadas por seus livros e artigos. E se um filme evoca a história de como morreu Marcello Elisei…

Em 1962, o final de Mamma Roma – filme que suscita violências fascistas e é subitamente proibido pela censura – mostra o jovem Ettore que morre na prisão, gemendo, febril e invocando a mãe, amarrado de cueca e camiseta a uma cama de contenção. “Socorro, socorro, por que me colocaram aqui? … Não faço mais isso, eu juro, não faço mais isso… Estou bem, agora… Mãe, estou a morrer de frio… Estou mal… Mãe!… Mãe, estou a morrer… Estou aqui a noite inteira… Não faço mais…”.

Em 31 de agosto de 1962, o tenente-coronel Giulio Fabi, comandante do grupo carabineiro de Veneza, denuncia Mamma Roma por obscenidade e cuidou-se de acrescentar: “Faz-se presente que o autor e diretor Pasolini e um de seus intérpretes, Citti, deveriam ter um registro criminal no Tribunal de Roma”. Entre os que seguem e apreciam Pasolini, circula a hipótese de que foi o final do filme que irritou a arma.

A partir daqui, Pasolini é atingido por uma onda de censura e repressão que não há correspondências na carreira de outros artistas italianos.

  1. Destrua o Poder”

Aqui está o sentido do advérbio “obviamente”, utilizado por Pasolini para reforçar uma premissa que considera importante. É bastante óbvio que PPP é contra a instituição da polícia.

Ainda mais óbvio é o verso seguinte: “Mas ataquem a magistratura e aí vocês verão!”. Essa magistratura que tanto perseguiu, continua e continuará a perseguir Pasolini, mesmo depois de sua morte.

É mediante essa posição que o autor do poema Il PCI ai giovani confia a um punhado de “versos feios” – definição sua – uma reflexão confusa, a qual descarrilha imediatamente e torna-se uma saída, uma invectiva antiburguesa. Como escreverá pouco depois: “Estou muito traumatizado pela burguesia e o meu ódio por ela, agora, é patológico”.

Entretanto, por mais feia e carente de foco nos conteúdos que possa ser a injúria a nível formal, depois de lê-la por inteira (por inteira, não somente os 4-5 versos extrapolados e brandidos como clubes de algum capanga), é difícil concluir que “Pasolini estava com a polícia”.

Pasolini descreve os policiais que entraram com os estudantes em Valle Giulia como “humilhados pela substituição da condição de homens / por aquela de policiais”. A instituição da polícia desumaniza. Por isso, os estudantes – “mil ou dois mil jovens, meus irmãos, / que operam em Trento ou Turim, / Pavia ou Pisa, / Florença e um pouco também Roma” estão “do lado da razão” e a polícia “do lado errado”. Se não se compreende isso, não se capta o intuito paradoxal de Pasolini. O paradoxo serve-lhe para especificar que a revolução não será nunca feita pelos estudantes, porque são filhos dos burgueses. No máximo, poderão fazer uma “guerra civil” geracional, dentro da burguesia. A Revolução, Pasolini diz, somente pode ser feita pelos operários, os quais nunca serão bajulados pela grande imprensa burguesa, como, ao invés, na hipérbole pasoliniana, está-se fazendo com os estudantes. São os operários o verdadeiro perigo para o poder capitalista, então, serão eles quem sofrerão maior repressão policial: “A polícia vai se limitar a levar umas pauladas / dentro de uma fábrica ocupada?”, questiona-se retoricamente o autor. Por conseguinte, aí devem-se encontrar os estudantes, caso queiram ser revolucionários: entre os operários. “Os Mestres se fazem ocupando as fábricas, / não as universidades”. Contudo, acima de tudo, os estudantes devem assumir à mão “o único instrumento de fato perigoso / de combate contra seus pais, / ou seja: o comunismo”. Pasolini convida-os a assumir o PCI, partido que possui “o objetivo teórico” de “destruir o Poder” (extinção do Estado que Marx coloca como objetivo final da luta de classes e do socialismo), porém terminou em mãos indignas, as mãos de “senhores / em modestas casacas”, “burgueses da mesma idade de seus pais idiotas”. Ocupar as federações do PCI, diz Pasolini, ajudaria o partido a “destruir / o que de burguês traz em si”.7

Essa exortação ocupa toda a segunda metade do texto, mas – por acaso – não será mais citada.

Eu sei, a cabeça está girando. Disseram-lhe que Il PCI ai giovani falava bem da repressão policial. Ouviu versos citados desse poema pelos promotores, enquanto pediam penas pesadíssimas contra os manifestantes do No TAV. Escutou-os dos lábios de Belpietro. Leu-os nos comunicados do Sap e do Coisp…

  1. Um mantra infame

Il PCI ai giovani foi atacada imediatamente e não só pelos estudantes que criticava. Franco Fortini amolou Pasolini com insultos. Sobre o amontoado desses, as críticas eram certas. Pasolini tentou explicar-se, procurando não se retratar quanto ao paradoxo. Esses versos eram “feios” porque não eram suficientes para, “sozinhos, expressar o que o autor [queria] expor”. Eram versos cindidos, isto é, irônicos e autoirônicos. Tudo é dito entre aspas. Faliu de “boutade”, “captatio malevolantiae8, mas nunca se afastou do ponto que tinha escolhido e decidido defender: o convite aos estudantes a “fazerem a última escolha ainda possível […] em favor do que não é burguês”.

Mas, agora, o estrago já estava feito e permaneceria assim pelos próximos quarenta anos, para o deleite dos “pós-fascistas”, dos ciellini9, sindicatos amarelos, pensadores de talk show, escritores tudólogos e comentaristas pavlovianos.

Sempre que se manifesta o conflito social e a polícia intervém a reprimi-lo, recomeça o “infame mantra” sobre Pasolini que estava com a polícia e os cassetetes, como chamou-o um mestre desonesto. Com esse mantra, justifica-se cada uso de violência pelas forças da ordem. Espancamento, balas disparadas na face, gases tóxicos, o assassinato de Carlo Giuliani, o ataque à escola Diaz de Gênova, a solidariedade aos assassinos de Federico Aldrovandi etc. Periodicamente, frases descontextualizadas sobre manifestantes “filhos de papai” e policiais proletários são usadas contra populações precárias, despejadas ou que se opõem à devastação do próprio território.

Tenho, porém, a suspeita de que o mantra seja imposto só a partir dos anos de 1990, junto a certa “apropriação” do pensamento de Pasolini. Certamente, no período de 1968-1975, nenhum detentor de poder, nenhum membro do bloco da ordem leu esses versos como verdadeiramente apologéticos à repressão. Basta ver como seguiram os relatos entre Pasolini, a polícia e a magistratura, e como evoluíram aqueles entre Pasolini, o movimento estudantil e a esquerda extraparlamentar.

  1. Propaganda antinacional”

Em agosto de 1968, dois meses depois da polêmica de Il PCI ai giovani, Pasolini participa da contestação contra a Exposição de Arte Cinematográfica de Veneza, ocupa o prédio de cinema em Lido, sofre um despejo policial e é denunciado pela enésima vez. Será processado, juntamente a outros diretores, com a acusação de ter “perturbado a posse pacífica de bens imóveis de outras pessoas”. Será absolvido em outubro de 1969.

Na revista Tempo, ano XXX, número 39, de 21 de setembro de 1968, a coluna Il Caos, editada por Pasolini, contém uma “Lettera al Presidente del Consiglio” [Carta ao Primeiro-Ministro], o qual, nesse dia, é Giovanni Leone, ainda não presidente da República, tampouco impichado. O escritor acusa o chefe do governo pela repressão em Veneza. Quantos creem que Pasolini era contra 1968 e os manifestantes ficariam estupefatos lendo essa passagem (grifo meu):

“Em 1944-1945 e em 1968, ainda que parcialmente, o povo italiano sabia o que significa – talvez somente a nível pragmático – autogestão e descentralização e viveu, com violência, uma reivindicação, embora indefinida, de democracia real. A Resistência e o Movimento Estudantil são as duas únicas experiências democrático-revolucionárias do povo italiano. Em seu entorno, há silêncio e deserto: a apatia política, a degeneração estatista, as horrendas tradições saboiana, bourbons e papais”.

Leone responde de forma tortuosa, Pasolini continua mirando diretamente e, no número 41, de 5 de outubro de 1968, reitera: “Eu estava presente nessa noite. E vi com os meus olhos as violências da polícia”.

Dois meses depois, no número 52, do dia 21 de dezembro de 1968, Pasolini comenta mais um massacre pelas mãos da polícia – dois trabalhadores crivados com balas em Avola, na Sicília – e sustenta a proposta feita pelo PCI, ainda distante, de apoio às leis especiais de desarmar a polícia:

“Desarmar a polícia significa, de fato, engendrar as condições objetivas para uma modificação imediata da psicologia do policial. Um policial desarmado é outro. De repente, colapsaria nele o fundamento da “falsa ideia de si” que o Poder lhe deu, adestrando-o como um autômato”.

Em um episódio da coluna permanecido inédito e redescoberto por Gian Carlo Ferretti, Pasolini responde a uma leitora de direita, Romana Grandi, a qual enviou-lhe um panfleto do MSI-DN cheio de injúrias contra ele e outros intelectuais: “Poderia fazer, ao menos, um pequeno esforço, visto que escreve e reescreve sobre ser uma trabalhadora: não percebeu que quem é atingido pela polícia são os trabalhadores (e os estudantes que lutam ao lado dos trabalhadores)?”.

O outono de 1969 – o considerado outono quente – é uma estação de grandes lutas e vitórias operárias. Em 12 de dezembro, por sua resposta, explode uma bomba na praça Fontana. Como um ciclo, inicia-se uma campanha para envolver os anarquistas, os esquerdistas e o movimento operário. Em 15 de dezembro, morre Giuseppe Pinelli. Em 16 de dezembro, o repórter do TG1 Bruno Vespa comunica a milhões de pessoas que “Pietro Valpreda é o culpado, um dos responsáveis pelo massacre em Milão”. O anarquista Valpreda torna-se o monstro.

Pasolini, Moravia, Maraini, Asor Rosa e outros intelectuais assinam um apelo “contra a onda repressiva”. No Borghese de 28 de dezembro de 1969, Alberto Giovannini não perde a chance e escreve:

“Entre os presos, além de Valpreda, acostumado a dar as costas não somente à odiada burguesia, mas também aos jovens amados, há muitos “travestis” e “bichas”; e o fato não pode deixar indiferente P.P. Pasolini, o qual é, certamente, o pai espiritual dos invertidos de toda Itália, visto que a natureza ingrata […] não lhe permitiu ser mãe”.

No número 2, ano XXXII, do Tempo, de 10 de janeiro de 1970, Pasolini dirige-se ao deputado social-democrata Mauro Ferri e escreve:

“O extremismo dos grupos minoritários e extraparlamentares de esquerda não levam, de forma alguma, ao massacre da Praça Fontana (é infame pensar assim): levou à grande vitória dos metalúrgicos. Antes que Potere Operaio e outros grupos minoritários extrapartidários agissem, os sindicatos estavam adormecidos”.

A partir de 1° de março de 1971, por dois meses, Pasolini presta-se a ser o diretor responsável pelo jornal Lotta Continua, aceitando o risco de ser investigado, indiciado e processado pelo conteúdo do jornal. Isso acontece em 18 de outubro do mesmo ano, por ter “instigado militares a desobedecerem a lei […], feito propaganda antinacional e pela subversão das ordens econômicas e sociais do Estado [e] publicamente incitado publicamente a cometerem delitos”. Pena máxima prevista pelo Código: 15 anos de reclusão. Testemunhas da acusação: oficiais, suboficiais e agentes de segurança pública e dos carabineiros.

Após esse indiciamento, desafiando qualquer presunção de inocência, a RAI [Radio Audizioni Italiane] bloqueia a transmissão do programa de Enzo Biagi Terza B: facciamo l’appello. Hoje é uma das mais famosas aparições televisivas de Pasolini, porém muitos não sabem que foi censurada e só foi ao ar depois de sua morte, cinco anos posteriores ao registro.

Enquanto isso, membros das forças da ordem atuam à vanguarda para pedir – e mais frequentemente obter – a apreensão das obras de Pasolini. Em Bari, a inspetora de polícia Santoro marca a obscenidade “horripilante” do filme Decameron. Em Ancona, o inspetor florestal Lorenzo Mannozzi Torini, um “pioneiro no cultivo de trufas”, faz uma denúncia também contra esse.

Certamente desgastado, embora nada intimidado, Pasolini financia e grava, junto ao coletivo cinematográfico da Lotta continua, um documentário-investigação sobre a praça Fontana e sobre o estado das lutas na Itália. Com roteiro de Giovanni Bonfanti e Goffredo Fofi, o documentário lança-se em 1972 com o título 12 dicembre e a menção “De uma ideia de Pier Paolo Pasolini”.

Ainda em novembro de 1973, quando a relação com a Lotta continua está tensa e prestes a romper, Pasolini declara: “Os rapazes da Lotta continua são extremistas, de acordo, talvez fanáticos e arrogantemente rudes do ponto de vista cultural, entretanto, tentam a sorte e parece-me que, por conta disso, merecem ser apoiados. É necessário querer muito para conseguir pouco”.

  1. Nossos velhos conhecidos”

A última fase, “corsária” e “luterana”, é caracterizada pelo pedido reiterado e implacável de um grande processo contra a Democracia Cristã, os seus dirigentes, notáveis e os cúmplices de suas políticas.

Depois de Il PCI ai giovani, algumas frases de efeito de Pasolini de 1974-1975 são descontextualizadas e submetidas a leituras instrumentais.

Por exemplo, extrapolam-se paradoxos como “o fascismo dos antifascistas” para defender os comícios de extrema direita, cuidando-se para não mencionar que Pasolini usava a expressão a fim de atacar a hipocrisia do considerado arco constitucional, o conjunto de partidos políticos no poder, aqueles que – diz em uma entrevista de junho de 1975 – “continuarão a organizar outros assassinatos e massacres e, portanto, a inventar sicários fascistas; criando, por conseguinte, uma tensão antifascista para reestabelecer uma virgindade antifascista e para roubar os votos dos ladrões; mas, concomitantemente, mantendo a impunidade dos bandos fascistas que eles, se quiserem, liquidariam em um dia”.

Sem o contexto, o que permanece? Uma miríade de imagens – vaga-lumes10, o fim do mundo camponês, os corpos homologados de cabelos compridos – reduzidas a clichês e tornadas inócuas. Permanece o “mito técnico” de um falso Pasolini light e livre de lactose, servido pela mesma cultura que o perseguiu, pelos jornalistas herdeiros de seus difamadores e pelos políticos sucessores de quem o atacava na rua.

No dia 8 de outubro de 1975, no Corriere della Sera, Pasolini comenta sobre a transmissão de Accattone pela RAI. Em seu filme de estreia, escreve, encenou dois fenômenos de continuidade entre o regime fascista e o regime democrata-cristão: “Primeiro, a segregação do subproletariado em uma marginalidade na qual tudo era diferente; segundo, a violência policial impiedosa, criminosa e inquestionável”.

Concernente ao primeiro fenômeno, escreve Pasolini, a sociedade do consumo “integrou” e homologou também o subproletariado, seus hábitos e seus corpos. Portanto, o mundo representado em Accattone está acabado para sempre.

Passado um pouco de tempo, essas partes de Roma mudaram. Pasolini atravessa-as e, atrás de cada cruzamento, atrás de cada edifício, atrás de cada aglomerado de jovens, vê – em uma sobreposição levemente aturdida – como eram o cruzamento, o edifício e aqueles jovens não muito tempo antes. Tudo é semelhante, porém a tonalidade emotiva está alterada, a nota de base é irreconhecível. Para um relato psicogeográfico potente dessa “duplicidade”, refiro-me à caminhada da Merda em Petrolio, notas 71-74ª.

Todavia, o que diz Pasolini a respeito do segundo fenômeno de continuidade entre o regime fascista e o regime democrata-cristão? “Nesse ponto, todos entendemo-nos imediatamente”, escreve, sabendo que é provocador. Está falando aos leitores do Corriere della Serra, é implausível que todos estejam de acordo com a consideração de que a violência policial seja “cruel” e “criminosa”.

Porém, o autor é inflexível: “É inútil gastar palavras. Parte da polícia é ainda assim”. Segue-se uma referência à polícia espanhola, a guarda civil do regime franquista. Referência, hoje, incompreensível, se não se sabe o que acontecia na Espanha naquele dia. Aqui, um título da Unità de 5 de outubro de 1975: “Tortura em Madri. / Usada pela polícia franquista de modo sistemático contra não menos que 250 bascos – As conclusões de uma investigação da Anistia Internacional – Testemunhos arrepiantes”.

A passagem é rápida, no entanto, não superficial. Mostra-nos um outro “mundo duplo” aturdido. Na polícia fascista de Madri e Barcelona, escreve Pasolini, revemos a nossa polícia, “os nossos velhos conhecidos em todo seu esplendor esquálido”.

  1. O homem que sorri

Três semanas depois, a noite entre 1° e 2 de novembro, o corpo de Pasolini jaz na lama de Óstia, massacrado, reduzido a um único trapo encharcado de sangue.

Agora, para encerrar, tomo emprestadas as palavras de Roberto Chiesi:

“Se olharem entre as terríveis fotos da descoberta do cadáver de Pasolini, há uma, talvez a mais terrível, que mostra o corpo virado e torturado, com alguns investigadores e policiais sentados de joelhos ao seu redor. Em particular, há um policial que sorri ao lado do cadáver de Pasolini. A foto mostra-o de maneira inequívoca: é um sorriso de escárnio, de desprezo. Essa imagem pode ser captada como a amostra de uma Itália pior, a ser rejeitada, condensada naquela imagem em preto e branco, que apareceu na capa de tantos jornais da época”.

Pasolini continuava a ser contra a polícia, a polícia continuava a ser contra Pasolini.


Notas

1 Pseudônimo literário de Roberto Bui, membro do coletivo Wu Ming. É um escritor e tradutor italiano [N.T.].

2 Poderia ser traduzido, vulgarmente, como “O cu bate à esquerda” [N.T.]

3 Ataques midiáticos difamadores com o objetivo de deslegitimar uma figura pública [N.T].

4 Referente à Ciociaria, nome, durante o século XIX, de alguns territórios das regiões de Lazio e Campania [N.T].

5 Referente ao MSI (Movimento Sociale Italiano), partido italiano de direita fundado no segundo pós-guerra e herdeiro da experiência e ideologia fascista [N.T].

6 Uma das forças armadas da Itália [N.T].

7 A tradução dos versos de Il PCI ai giovani foi cotejada pela edição brasileira dos poemas de Pasolini, organizada por Alfonso Berardinelli e Maurício Santana Dias: PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. São Paulo, Cosac Naify, 2015 [N.T.].

8 Uso de uma figura retórica a qual não existe, tampouco pode existir, almejando contrapor-se ao ouvinte e colocá-lo contrário ao falante [N.T.].

9 Referente ao movimento CL (Comunione e Liberazione) [N.T.].

10 Referência ao texto Il vuoto del potere in Italia de Pier Paolo Pasolini, publicado na Corriere della Sera. Presente como “O artigo dos vaga-lumes” em PASOLINI, Pier Paolo. Escritos corsários. São Paulo: Editora 34, 2020, p.162-169 [N.T.].

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