Greve dos Aluguéis de 2020: Uma Perspectiva Histórica

Por Rob Rooke, via Socialist Alternative, traduzido por Daiana Ferro

Os EUA foram catapultados pela maior crise de saúde, econômica e social em gerações. Um terço dos inquilinos de apartamentos não conseguiu pagar o aluguel integral em abril de 2020 e outros milhões estarão na mesma situação em maio deste mesmo ano. Os três milhões de pessoas que assinaram a petição RentStrike2020 sinalizam o esboço de uma resposta organizada a esta crise atual.


Para nos ajudar a navegar pelo próximo período em que a incapacidade de pagar o aluguel provavelmente se tornará cada vez mais generalizada, pode ser útil ter uma perspectiva das experiências históricas e internacionais de greves dos aluguéis. Neste artigo, analisamos algumas greves deste setor espalhadas pelo mundo desde o século XIX até hoje.

A grande maioria das greves de aluguel é desencadeada por uma de duas coisas: incapacidade de pagar devido a um aumento do aluguel ou protesto contra a negligência do proprietário em relação aos edifícios. Para as greves em Glasgow e Barcelona, os inquilinos se organizaram contra o aumento dos aluguéis, e em Soweto e Harlem, as greves foram principalmente contra as condições de precarização das moradias.

Glasgow: trabalhadores e inquilinos se unem

A greve de aluguel de Glasgow em 1915 decolou durante a Primeira Guerra Mundial. Glasgow havia se tornado um centro de construção naval, com trabalhadores se mudando para a cidade em busca de empregos e proprietários explorando o momento para aumentar os aluguéis. Um movimento liderado por mulheres da classe trabalhadora organizou uma campanha de não pagamento de aluguéis. O Partido Trabalhista local endossou a greve de aluguel, incluindo 20.000 famílias no movimento. O aparato do Estado, na forma da polícia, foi mobilizado para impor despejos sancionados pelo tribunal para interromper a greve. Centenas de mulheres bloquearam ruas. A violenta resposta da polícia criou um motim e os líderes da greve dos aluguéis foram todos presos.

A notícia da greve se espalhou para o sul, na Inglaterra, onde os inquilinos começaram a se organizar, muitas vezes por meio de suas filiais do Partido Trabalhista, para aderir à greve. No dia em que as mulheres líderes em Glasgow foram levadas ao tribunal, seus maridos, irmãos e filhos da indústria de construção naval entraram em greve em solidariedade. Eles se juntaram a uma marcha pela cidade de milhares de pessoas unidas contra o aluguéis altos. Este foi um divisor de águas para a greve do setor. O governo retirou todas as acusações contra seus líderes. Em 1915, o governo aprovou a Lei de Restrições de Aluguel, domando os piores excessos da classe dos proprietários e congelando os aluguéis no nível pré-guerra para locatários em toda a Grã-Bretanha. A líder mais proeminente da greve dos aluguéis foi a operária Mary Barbour. Após a guerra, Mary Barbour foi eleita vereadora socialista em Glasgow.

Esse movimento, juntamente com a ascensão dos Partidos Trabalhista e Comunista, contribuiu para a expansão pós-Segunda Guerra Mundial da habitação pública, ligada à demanda por moradias seguras e de baixo custo. No seu auge, em 1979, cerca de 42% da população da Grã-Bretanha vivia em habitações públicas com valores de aluguel médio equivalente a metade dos preços das habitações privadas. Na Escócia, entre 1945 e 1968, cerca de 85% das novas moradias construídas eram de propriedade pública.

Barcelona: corte de 40% no aluguel agora!

A grande greve dos aluguéis em Barcelona tem semelhanças com a greve de Glasgow. Foi provocado por um rápido crescimento da indústria durante a década de 1920 e uma migração maciça para as cidades. Como resultado, a população de Barcelona cresceu 60%. Em 1931, a ganância dos proprietários havia aumentado os aluguéis em 150%. A Confederação Nacional do Trabalho (CNT), uma central sindical radical, lançou a Comissão de Defesa Econômica como uma tentativa de organizar os inquilinos, em sua maioria trabalhadores. Eles exigiram uma redução de 40% nos aluguéis e se organizaram em prédios e bairros para uma greve de aluguel em 1º de julho.

De acordo com as estatísticas dos sindicatos, 45.000 pessoas estavam em greve no início daquele mês, crescendo para 100.000 em 3 de agosto. Os proprietários das casas tinham o apoio do governo autoritário. A greve foi derrotada apenas pela repressão maciça do Estado, com a polícia despejando à força e depois despejando novamente os inquilinos depois que o sindicato ajudou a colocá-los de volta em suas casas. Os líderes do movimento foram levados a julgamento e rapidamente presos. Apesar dessa derrota, muitos bairros mantiveram suas organizações de inquilinos ativas. A memória da greve foi uma parte crítica do desenvolvimento da militância em Barcelona que contribuiu para a cidade fosse o principal reduto da Revolução Espanhola no final da década.

África do Sul: maior greve de aluguel em massa

Durante o levante revolucionário contra o regime segregacionista do Apartheid, uma greve dos aluguéis explodiu em 1986 no maior município negro do país, Soweto. Fartos de condições de habitação miseráveis, a greve foi lançada contra a prefeitura da cidade, a autoridade de habitação pública do Apartheid. Mais de 80% dos locatários aderiram causa, que se tornou cada vez mais um movimento politizado contra todo o regime segregacionista. Coincidindo com o auge da ascensão do Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (COSATU), talvez a federação sindical mais ativa na militância do mundo na época.

A resistência em massa aos despejos resultou em disparos de arma de fogo efetuados pela polícia contra manifestantes em agosto, matando 20 manifestantes. O regime do Apartheid proibiu todos os funerais públicos para evitar manifestações de massa, mas também recuou cada vez mais das tentativas de despejar inquilinos e cobrar aluguéis. A greve continuou por pelo menos quatro anos até que o Apartheid fosse formalmente encerrado e as eleições fossem realizadas. O movimento desempenhou um papel importante, ao lado de outras lutas de massas dos trabalhadores, na derrubada do regime. Mesmo o novo governo do Congresso Nacional Africano teve problemas para cobrar aluguel em Soweto depois disso, pois as pessoas simplesmente se acostumaram a não pagar aluguel.

Greve dos alugueis de trabalhadores rurais americanos

A primeira greve de aluguel documentada nos Estados Unidos foi a revolta dos arrendatários no interior do estado de Nova York em 1839. Um pequeno número de famílias possuía milhões de acres, com a família dos Rensselaers, tendo 80.000 arrendatários em suas terras. A greve foi desencadeada por uma tentativa de um proprietário de cortar árvores na fazenda de um inquilino. O conflito começou e um dos homens do proprietário das terras foi morto. Depois de uma tentativa frustrada de prender o arrendatário, uma grande assembléia de arrendatários prometeu não mais aceitar as regras impostas pelos grandes proprietários de terras. Eles concordaram em parar de pagar aluguel, vendo sua luta como uma extensão da Guerra Revolucionária.

Cerca de 500 deputados montados a cavalo invadiram a área, mas enfrentaram uma cavalaria de mais de 2.000 trabalhadores rurais armados. Os xerifes recuaram. Eventualmente, a cavalaria federal chegou e ocupou a região, resultando em prisões e sentenças de morte contra os líderes dos arrendatários. Seis anos depois, quatorze deles foram eleitos como deputados estaduais. Em 1846, Nova York proibiu as piores práticas desse sistema feudal de arrendamento de terras no estado.

A grande Depressão

A chocante quebra do mercado de ações em outubro de 1929 nos EUA não levou inicialmente à organização de inquilinos nos Estados Unidos. A fome generalizada e a ameaça dela, levaram o Partido Comunista a iniciar manifestações pelo pagamento do seguro-desemprego, sob as bandeiras de “Trabalho ou Salário” e “Lute – Não Morra de Fome”. Começando na primavera de 1930, as ligas dos desempregados lideraram marchas de até 35.000 pessoas em Nova York e 60.000 pessoas em Pittsburgh. A resposta dos empregadores e dos governos locais foi bastante uniforme: enviar a polícia para acabar com os protestos pacíficos, às vezes antes mesmo dos líderes começarem a falar sobre o protesto.

À medida que a depressão se arrastava, milhões de trabalhadores atrasaram seus aluguéis. Na Filadélfia, em 1933, cerca de 63% das famílias brancas e 66% das famílias negras estavam com seus aluguéis atrasados. Na cidade de Nova York, os proprietários das casas, os tribunais e a polícia estavam ocupados expulsando as pessoas de suas casas. Nos oito meses anteriores a junho de 1932, os tribunais de Nova York enviaram 186.000 avisos de despejo.

A virada do movimento contra as ações de despejo durante este período levou ao aumento da opressão policial, resultando em grandes motins em cidades dos Estados Unidos. Em  Nova Iorque, tornou-se cada vez mais comum milhares de pessoas se reunirem para impedir fisicamente a polícia de despejar os inquilinos sob o slogan “Não pague aluguel! Lute ou morra de fome!.” As organizações de inquilinos, lideradas por comunistas e socialistas, organizaram a população local para invadir suas casas e reocupá-las. Uma ação contra execuções de bancos e despejos de proprietários. De acordo com “A história não contada dos trabalhadores” (Labour’s Untold Story), de Richard Boyer, 77.000 famílias foram restauradas em suas casas pelo movimento de inquilinos em Nova York durante esse período.

As manifestações de locatários em Chicago em 1931 foram brutalmente atacadas pela polícia, deixando três inquilinos mortos e três policiais feridos. As autoridades queriam espremer o último centavo dos inquilinos, mas também estavam preocupadas com a crescente influência do Partido Comunista e das ideias socialistas. O prefeito de Chicago respondeu ordenando uma moratória sem precedentes sobre os despejos.

Greve dos alugueis no Harlem, 1960 (bairro na alta Manhattan, Cidade de Nova Iorque)

A Liga dos Inquilinos no Harlem, de predominancia negra e latina, iniciou uma greve envolvendo centenas de prédios em novembro de 1963. Prédios privados se tornaram caixas eletrônicos para proprietários onde eles recebiam aluguéis, mas se recusavam a investir na manutenção de propriedades levando a uma infestação generalizada de ratos no bairro. Centenas de pessoas que moravam em edifícios prometeram apoiar a greve aumentando o movimento a cada dia.

Treze mil inquilinos marcharam até o centro da cidade para avisar a prefeitura que eles estavam fartos dos proprietários dos cortiços e barracos. Muitos carregavam ratos de borracha com eles e o governador afirmou ter recebido 52 ratos mortos pelo correio. O movimento às vezes se fundia com o movimento trabalhista que lutava por um salário mínimo de $ 1,50 e pelo fim das favelas.

Em janeiro de 1964, o prefeito foi forçado a afirmar que estava do lado dos grevistas e que o dinheiro da cidade seria gasto na limpeza de prédios e propiedades. O movimento tomou enormes proporções de forma que os inquilinos conquistaram o direito de greve se os proprietários violassem as leis de habitação. Os inspetores da prefeitura acabaram por multar os donos dos prédios e barracos. Os inquilinos obtiveram algumas vitórias, mas a pobreza no Harlem nunca foi resolvida.

Greve dos alugueis de 2020

Embora elas tenham sido usadas contra o aumento dos aluguéis ou contra os proprietários que não mantem boas condições suas propriedades, temos uma situação diferente em 2020. A greve é para ajudar a encorajar a organização entre os milhões que não podem pagar o aluguel e lutar pelo congelamento e cancelamento de aluguel, hipoteca e pagamentos de contas de água, gás e eletricidade durante a crise atual.

É provável que o desenvolvimento da resistência neste ano coincida com a experiência passada assim que as atuais moratórias sobre despejos expirarem. Após o não pagamento, os proprietários colocam avisos de despejo nas portas e, se os inquilinos não sairem, os proprietários entram com ação judicial. Após isso, geralmente algumas semanas depois, o xerife chega e coloca os móveis dos inquilinos na rua. Esta batalha foi travada desde que o aluguel comecou a existir. A principal diferença estará na capacidade da classe trabalhadora de se organizar para adiar esse processo.

Para que os inquilinos sobrevivam economicamente a este momento, sem entrar nos próximos anos com níveis de endividamento devastadores, a organização coletiva é a melhor defesa. Antes de realizar uma greve dos aluguéis em um prédio ou propriedade, os inquilinos devem trabalhar para se organizar em nível de prédio e bairro enquanto um movimento nacional se desenvolve.

Habitação com Financiamento Público

Em última análise, para que os locatários possam respirar livremente com aluguéis mais baixos e moradia segura, devemos retirar os grandes proprietários desta equação. Os 10 maiores proprietários da América possuem 822.000 unidades habitacionais. As 10 maiores administradoras de apartamentos controlam 1,6 milhão de unidades habitacionais. Essas empresas devem ser transformadas em propriedades pública democrática e administradas para o benefício das pessoas e não como máquinas de extração de riqueza.

Em Berlim, na Alemanha, onde 85% dos residentes são locatários, um movimento ativo de moradores da região forçou a cidade a congelar os aluguéis por cinco anos, afetando 1,5 milhão de unidades habitacionais. A legislação proíbe aluguéis acima de 20% do aluguel médio da cidade para tamanhos comparáveis. Os grandes magnatas do setor imobiliário consideram isso um um desastre, com alguns grandes proprietários agora sendo forçados a reduzir os aluguéis. O próximo passo do movimento foi adiado pela pandemia da COVID-19, enquanto o órgão judiciario da Alemanha avalia a constitucionalidade de uma proposta de locatários em Berlim para estatizar propriedades das quais seus donos tenham mais de 3.000 unidades habitacionais cada.

Muitos locatários deixarão esta terra tendo pago metade da renda de suas vidas a proprietários que realmente não precisam do dinheiro. O capitalismo é um sistema de desigualdade organizada, que rouba quem tem pouco para pagar quem tem muito. Uma economia planificada democraticamente socialista se torna vez mais a única resposta possível para a conquista de um mundo economicamente estável e sustentável.

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