Karl Marx e a Rússia

Por André Depa

Uma breve apresentação da relação de Karl Marx com a Rússia, especialmente através de sua Carta à redação da Otechestvenye Zapiski e a correspondência com Vera Zasulitch.

Desde 1869 Marx passou a estudar o idioma russo. Em 1870 ele iniciou a leitura de A situação da classe trabalhadora na Rússia, de N. Flerovski, escrito no ano anterior, também passou a ler Nikolai Tchernichévski e traduziu excertos das Cartas sem endereço para o alemão, e continuou progredindo no estudo dessa língua até o final da vida. 

A Rússia, por sua vez, demonstrava um interesse recíproco pelo Mouro. Marx já tinha contato com a intelligentsia radical da terra dos czares, quando abrigou os fugitivos russos da guerra franco-prussiana em 1870 e quando, durante os eventos da Comuna de Paris, mantinha-se informado dos acontecimentos através do seu contato com a jovem russa Elizabeth Dmitrieff Tomanovskaya. Em 1872, o Velho Nick viu a tradução russa da sua magnum opus esgotar-se em dois meses, quando a mesma tiragem (mil exemplares) na Alemanha só foi vendida completamente em quatro anos. 

A empreitada de tradução partiu de Nikolai Danielson e começou a ser organizada em 1869. Curiosamente, Mikhail Bakunin, notório anarquista opositor de Marx, foi contratado (com um grande adiantamento, mais até do que o próprio Marx recebera de seu livro) por Nikolai Lyubavin, um jovem estudante russo que auxiliava Danielson no projeto, para ajudar na tradução. Contudo, Bakunin avançou somente 32 páginas da tradução. Um associado do anarquista russo, Sergei Nechayev, dirigiu ameaças a Lyubavin, acusando-o de explorar Bakunin e que utilizaria “meios menos civilizados” caso ele não fosse liberado do contrato. Logo ele foi dispensado e a tradução prosseguiu com uma supervisão atenta de Marx. 

Surpreendentemente, finalizada a tradução, em 1872, o livro circulou de forma legal na Rússia, pelo menos num primeiro momento. Os censores do Tsar afirmaram que era um livro difícil demais para ser entendido e que não seria comprado por ninguém. “O livro seria muito matemático e científico”. No entanto, uma leve concessão à censura foi necessária: não exibir uma foto de Marx na capa do livro. As autoridades julgaram que seria uma demonstração de respeito demasiada a Marx. O autor considerou a tradução excelente, recebeu um exemplar em maio e requisitou outro a Danielson a fim de disponibilizá-lo no Museu Britânico. O público russo também julgou a obra bem, esgotando-a rapidamente, como dito anteriormente, e fazendo-a circular até mesmo sob uma capa da Bíblia após a sua proibição.  

Em outubro de 1877, Nicolai Constantinovitch Michailovski publicou um artigo (Karl Marx diante do tribunal de Ju. Jukovski) onde fazia uma defesa de Marx contra o economista vulgar Juli Galactionovitch Jukovski, que havia feito críticas ao Velho Nick em seu artigo Karl Marx e seu livro O capital. A discussão girava em torno da questão da comuna agrária russa. 

A defesa de Michailovski acabou saindo pela culatra quando ele afirmou que o filósofo alemão havia elaborado toda uma “teoria histórico-filosófica”. Tal concepção era inaceitável para o autor d’O Capital. Sobre o artigo do futuro líder do grupo Russkoye Bogatstvo, Marx escreveu que:

Ele […] tem necessidade de metamorfosear totalmente o meu esquema histórico da gênese do capitalismo na Europa ocidental em uma teoria histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, independentemente das circunstâncias históricas nas quais eles se encontrem, para acabar chegando à formação econômica que assegura, com o maior impulso possível das forças produtivas do trabalho social, o desenvolvimento mais integral possível da [sic] cada produtor individual. Porém, peço-lhe desculpas. (Sinto-me tão honrado quanto ofendido com isso.) (MARX, 2013)

Marx procede com um exemplo histórico, citando o caso dos plebeus da Roma antiga: originalmente camponeses livres, mas que acabaram desassociados de suas terras, que acabaram concentradas nas mãos de alguns latifundiários. O meio histórico criou, de um lado, mão de obra livre (da posse dos meios de produção) e, do outro, os donos “de todas as riquezas adquiridas”. Contudo, isso não gerou a produção capitalista com mão de obra assalariada. O autor d’O Capital  apontou que, caso cada situação fosse estudada lado a lado (surgimento do capitalismo na Europa e o caso dos plebeus de Roma), poderia-se entender o porquê disso. Mas adverte: “jamais se chegará a isso tendo como chave-mestra uma teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica” (MARX, 2013).

Marx não enviou a carta, segundo Engels ele temia que isso pusesse em risco a existência da revista. A publicação somente ocorreu postumamente, por volta de 1885. Contudo, Marx retornaria ao tema das comunas agrárias russas e o desenvolvimento histórico em sua troca de cartas com Vera Zasulitch. 

Em 16 de fevereiro de 1881 ela escreveu: 

Vós não ignorais que vosso O capital desfruta de grande popularidade na Rússia. Apesar do confisco da edição, os poucos exemplares que restaram são lidos e relidos pela massa de pessoas mais ou menos instruídas de nosso país – há homens sérios que o estudam. Mas o que vós provavelmente ignorais é o papel que desempenha vosso O capital nas discussões sobre a questão agrária na Rússia e sobre a nossa comuna rural. Vós sabeis melhor do que ninguém o quanto essa questão é urgente na Rússia. Vós sabeis o que pensa Tchernichevski. Nossa literatura avançada, como, por exemplo, os artigos da Отечественныя Записки [Notas Patrióticas], continua a desenvolver suas ideias. Mas, a meu ver, trata-se de uma questão de vida ou morte, sobretudo para o nosso partido socialista (MARX, 2013).

Por conta de um período enfermo, o destinatário somente pode enviar uma resposta em 8 de março de 1881. Contudo, quatro esboços para a carta resposta foram produzidos, um datado conforme a carta final, os outros três sem indicação disso, porém é presumível que Marx ocupou-se do tema desde o momento que recebeu a mensagem de Zasulitch. 

Marx estudava a questão russa há algum tempo. A correspondência dele com Danielson em fevereiro de 1879 está repleta de dados sobre a situação dos camponeses na Rússia. Conforme posto anteriormente, também empreendeu a leitura de Flerovski, Tchernichevski e outros. Ou seja, estava bem munido de material, apesar da distância física do objeto em questão. 

Novamente o Velho Nick foi bastante enfático: transformar a sua tese sobre o desenvolvimento do capitalismo na Europa em uma teoria fatalista de desenvolvimento era um equívoco enorme. O único argumento sério a favor dessa tese, segundo Marx, era o de que a propriedade comunal existiu, de uma forma ou outra, em toda Europa e desapareceu, logo a Rússia deveria seguir o mesmo caminho. Contra isso, Marx afirma que (trecho retirado do primeiro esboço):

na Rússia, graças a uma combinação de circunstâncias únicas, a comuna rural, ainda estabelecida em escala nacional, pode se livrar gradualmente de suas características primitivas e se desenvolver diretamente como elemento da produção coletiva em escala nacional. É justamente graças à contemporaneidade da produção capitalista que ela pode se apropriar de todas as conquistas positivas e isto sem passar por suas vicissitudes desagradáveis. A Rússia não vive isolada do mundo moderno, tampouco foi vítima de algum conquistador estrangeiro, como o foram as Índias Orientais (MARX, 2013).

A análise de Marx nos esboços é muito fecunda. Encontramos as noções de contemporaneidade, diferentes vias de desenvolvimento, desenvolvimento, etc. Em geral, um excelente exemplo do materialismo histórico-dialético. 

Marx comenta que havia prometido um texto sobre o mesmo assunto para o “Comitê de São Petersburgo”. A promessa havia sido feita para Nicolai Alexandrovitch Morosov, da organização narodniki A Vontade do Povo, em dezembro de 1880, quando Lev Nicolaievitch Hartmann intermediou um encontro dele com Karl Marx. Talvez por conta disso e pela turbulência familiar no momento a resposta efetiva de Marx foi bem mais sucinta do que os esboços indicavam. Ele finaliza seu escrito para Zasulitch afirmando que:  

[…] a análise apresentada n’O capital não oferece razões nem a favor nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fiz dessa questão, para o qual busquei os materiais em suas fontes originais, convenceu-me de que essa comuna é a alavanca [point d’appui] da regeneração social da Rússia; mas, para que ela possa funcionar como tal, seria necessário, primeiramente, eliminar as influências deletérias que a assaltam de todos os lados e então assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento espontâneo (MARX, 2013).

Na ocasião descrita acima, do encontro de Marx com Morosov, o revolucionário alemão entregou ao russo alguns livros para serem publicados no território do Czar, numa tentativa de auxiliar os populistas. Morosov levou os livros para a Suíça e nesse movimento o Manifesto Comunista acabou parando nas mãos de Georgi Valentinovitch Plekhanov que, entusiasmado, traduziu-o. Mais tarde, Plekhanov pediu para Piotr Lavrovitch Lavrov, amigo pessoal de Marx e Engels, que conseguisse que os autores escrevessem um prefácio para a segunda edição russa. No dia 23 da janeiro de 1882 os pais do socialismo científico enviaram a Lavrov o manuscrito do prefácio, que foi publicado no dia  5 de fevereiro do mesmo ano, na revista ilegal A Vontade do Povo. Neste texto os autores abordam novamente a questão da comuna agrária russa e seu desenvolvimento. Eles indagam:

[…] poderia a obchtchina russa – forma já muito deteriorada da antiga posse em comum da terra – transformar-se diretamente na propriedade comunista? Ou, ao contrário, deveria antes passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui a evolução histórica do Ocidente? (MARX, 2013).

E então afirmam: 

Hoje em dia, a única resposta possível é a seguinte: se a revolução russa constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra, a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma evolução comunista (MARX, 2013).

Marx permaneceu-se ocupado do tema até o final da vida. Os seus últimos escritos econômicos tratam da reforma de 1861 e suas consequências para a Rússia. Ele produziu uma lista de livros em cirílico, intitulada O russo nas minhas prateleiras, que contava com mais de 120 títulos. 

De volta ao primeiro esboço da carta à Zasulitch, após evidenciar que é do interesse da burguesia russa destruir a comuna, o Mouro afirma: 

Aqui não se trata mais de um problema a resolver; trata-se pura e simplesmente de um inimigo a derrotar. Para salvar a comuna russa é preciso que haja uma revolução russa (MARX, 2013). 

A imagem de Marx não pode ser outra senão a que descreveu Vladimir Maiakovski:

Com as mós de pensamentos

moendo o último,

e com a mão

de cera

terminando de escrever,

sei,

Marx viu uma visão do Kremlin,

a bandeira

das comunas

sobre a Moscou vermelha.

REFERÊNCIAS:

ARICÓ, José (org.). Karl Marx, Nikolai F. Danielson, Friedrich Engels: Correspondencia (1868- 1895). [S.l]: Siglo XXI Editores, 1981.

GABRIEL, Mary. Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013.

MARX, Karl. Luta de Classes na Rússia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.

NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020. 

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