A passagem

Por Joelton Nascimento[1] e Silvia Ramos Bezerra[2]

Presenciamos hoje processos extremos onde alcançamos os limites de nossos modos de vida: limites econômicos, limites ecológicos, limites cognitivos. Sabemos, todavia, que outros modos de vida só podem ser alcançados após um incerto processo de transformação mais ou menos longo, mais ou menos tortuoso, mais ou menos difícil. Marx deu a isso o nome de transição.


É sobre isso que queríamos tratar com vocês.

O comunismo, sustentava Marx, só pode ser algo derivado das condições concretas atuais e não uma idealização qualquer. Ao mesmo tempo que, em relação a uma sociedade produtora de mercadorias, o comunismo é uma alteridade. Sendo que o comunismo é uma alteridade derivada do existente, é preciso dizer da transição, da passagem entre o existente e o comunismo.

Sustentamos o seguinte: estamos em um ponto de transbordo dos limites dos modos de vida existentes, contudo, sem nenhuma garantia de que o futuro resulte em comunismo – pelo contrário – há evidências negativas disso. Estamos, portanto, em um momento histórico sem qualquer garantia de um pouso comunista, sem garantias de que teremos como resposta uma alternativa comunista. Sendo assim, não podemos denominar este momento de transição mas de sim de passagem. Elaboramos três provocações sobre o que chamamos de passagem e que queremos discutir com vocês.

  1. A impotência da ciência ambiental

A primeira provocação diz respeito à ciência ambiental.

Em um curioso opúsculo publicado em 2014, os historiadores da ciência Naomi Oreskes e Erik Conway, escreveram um relatório sobre o colapso da civilização ocidental. O curioso deste relatório é que ele é escrito como se este colapso já tivesse acontecido. A data do relatório é de 2327 em uma comunidade humana que já efetivou a passagem, que se ergueu dos escombros da civilização ocidental.

Oreskes e Conway nesta distopia como que realizam o ideal heroico de Günther Anders. Contava Anders (e recontava Jean Pierre-Dupuy) a seguinte estória[1]: um dia Noé se vestiu com trapos e cobriu-se de cinzas e isso só era permitido para aquele que perdesse sua esposa amada, uma filha ou um filho e foi para o centro da cidade para despertar a atenção dos seus concidadãos. Logo formou-se uma pequena multidão em torno dele. Começaram a lhe fazer perguntas do tipo “quem morreu?”, “por quem se enlutas?” e ele respondeu que eram por todos eles, os que perguntavam, que se enlutava, pois todos eles estavam mortos. Houve excitação geral. “Quando foi que morremos, Noé?” perguntaram eles. “Amanhã”, Noé lhes respondeu. “No dia depois de amanhã” disse-lhes, “o dilúvio é algo que já aconteceu, e quando o dilúvio acontecer é como se nada tivesse existido; será tarde demais para lembrar, pois não haverá ninguém para fazê-lo. Assim, não haverá diferença entre os mortos e os que se enlutam. Se venho antes até vocês é para reverter o tempo, celebrar o luto de amanhã, hoje. No dia depois de amanhã será tarde demais”. Em seguida ele foi para sua oficina construir uma arca de salvação. Alguns carpinteiros foram chegando de quando em quando e cada um ia dizendo ao se juntar a Noé: “vim aqui ajudá-lo para que aquilo que disseste se torne falso”.

É exatamente assim que fazem Oreskes e Conway nesse livrinho. Nele os humanos do futuro que já aconteceu, ou como podemos chamar do futuro já passado – queremos dizer, do futuro que já fez a passagem – reflete sobre por que a ciência ambiental previu e advertiu o tempo todo as pessoas dos desfechos catastróficos das mudanças climáticas e ainda assim isso não evitou tais desfechos.

“Na pré-história da civilização” escrevem os historiadores do futuro na pena de Oreskes e Conway, “muitas sociedades ascenderam e decaíram, mas poucas deixaram tantos registros do que sucedeu a elas e o porquê tal como os estados-nações do século XXI que referiam a si mesmas como civilização Ocidental. Mesmo hoje, milênios depois do colapso dos impérios romano e maia e um milênio depois dos impérios bizantino e inca, historiadores, arqueólogos e paleoanalistas de colapsos não foram capazes de chegar a um consenso sobre as causas primárias das perdas de população, poder, estabilidade e identidade destas sociedades. O caso da civilização ocidental é diferente porque as consequências de suas ações não só eram previsíveis como foram previstas (…). De fato, o aspecto mais saliente desta estória é o quanto as pessoas sabiam e o quanto estavam inaptas para agir a partir do que elas sabiam. Conhecimento não se traduziu em poder” (ORESKES & CONWAY, 2014).

O fracasso da relação entre conhecimento e poder que vivenciamos nisto que chamamos de passagem, remete-nos a repensar esta relação entre ciência e poder como meio para uma transição comunista. Na oportunidade deste evento certamente vamos ouvir reflexões muito pertinentes neste sentido.

Desta forma, por que o saber sobre o ambiente não se converteu em algum tipo de tomada de atitude ou como uma ação coletiva consciente que se preste a intervir neste ambiente?

Isto nos remete ao giro que Slavoj Žižek faz no conceito de ideologia marxista: aqui a questão não mais o “eles não o sabem, mas o fazem”, mas sim o “eles sabem e mesmo assim o fazem” (ŽIŽEK, 1997). E o interessante é que esse giro condiz com a estrutura clínica da perversão para a psicanálise: nessa relação impotente entre o saber e o poder há uma intensa atividade de desmentido, uma poderosa forma de negação.

Um comunismo que se proponha efetivamente como hipótese precisa pensar/atuar sobre esse desmentido, sobre essa negação, assim como o psicanalista intervém na clínica em casos de perversão.

  1. Mal sem malevolência

A segunda provocação é a sobre a violência.

Por que não ficamos felizes ou confortados depois que Steven Pinker mostrou no livro Os anjos bons da nossa natureza (2011), com bastante documentação, que a violência tem diminuído ao longo do tempo?

Sabemos, e principalmente sentimos, que há um grande Mal a solta no mundo, mas não há como discutir com os números por Pinker mostrados de que a malevolência diminuiu, a violência com intenção parece cada vez menor.

Não há contradição aqui. Neste momento de passagem, o Mal se apresenta em uma pujança insondável, o Mal nos aparece cada vez mais presente, parece cada vez mais próximo e invencível, em noutro sentido, a malevolência ou como diz o autor a violência, pode se apresentar em constante diminuição.

Desde Hannah Arendt e o seu conceito de “banalização do mal”, tanto quanto Günther Anders e seu conceito de “vergonha prometeica”, estamos de posse da consciência de que o Mal na contemporaneidade se distancia da malevolência no sentido de que as categorias de socialização realizam o Mal independente da vilania de quaisquer dos envolvidos. Não há vilões para que possamos nos identificar como mocinhos. Daí a origem da nossa culpa.

É na Nova Crítica do Valor que isso ganha seus mais poderosos substrato de crítica da economia política, mais precisamente no conceito de relações de fetiche. As relações de fetiche realizam o Mal sem malevolência e, desse modo, borram a distinção entre catástrofes naturais e catástrofes criadas pelas mãos humanas, borram as divisas entre vilões e mocinhos, entre vítimas e algozes.

Pensemos: os japoneses chamavam as consequências da bomba atômica de “tsunami”; grande parte da imprensa afirmou que o desastre do furacão Katrina em Nova Orleans foi “obra de mãos humanas”, tamanho era o papel desempenhado pelas omissões na contenção emergencial, tamanho fracasso do Estado nas medidas pós-catastrofes. O fato de que o Mal se produz para lá de nossa compreensão de ações malevolentes pertence exclusivamente a nossa época: o Mal sem malevolência é um problema de nosso tempo do mundo.

Algumas imagens podem nos ajudar a entender o que dizemos.

Em 2016 a jornalista húngara Petra László, foi filmada passando uma rasteira em uma criança refugiada que entrava correndo pelas fronteiras de seu país. Sua vilania causou indignação, mas o que é uma maldosa rasteira diante dos 6,3 milhões de refugiados [segundo números do último relatório da ONU] vindos da Síria em uma guerra de ordenamento mundial multicausada e complexa? O que é essa mesquinha atitude diante dos 600 imigrantes mortos na travessia do Mediterrâneo, só no mês passado, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações.

Contudo, ficamos hipnotizados com a maldade de László, uma radical de direita, enquanto permanecemos impotentes diante do Mal do colapso dos estados nacionais que precipitam hoje 68,5 milhões de pessoas na situação de refugiados.

No premiado livro sobre os atingidos por Chernobyl publicado há alguns anos por Svetlana Aleksiévitch, encontra-se o relato das últimas horas de Vassíli Ignátienko narrados por sua esposa Liudmila, que ficou ao seu lado amorosamente enquanto ele, que foi fortemente atingido pela radiação por ser um dos primeiros bombeiros que atenderam ao chamado de emergência, literalmente, se liquefazia. Não há antecedentes históricos que poderiam preparar Liudmila para um Mal tal como esse. Um Mal sem qualquer vilania maldosa ao alcance de nossa compreensão imediata. Chernobyl deu-se sem “maldade” muito embora não fosse de modo algum, por outro lado, um evento “natural”. Esse é o Mal a que nos referimos aqui, esta talvez seja a razão profunda para o subtítulo de Aleksiévitch: “crônica do futuro” (ALEKSIÉVITCH, 2016).

Recentemente, a administração Trump promoveu uma política carcerária que chocou o mundo ao aprisionar crianças separadas de seus pais, imigrantes ilegais. As imagens de crianças enjauladas correram o mundo e fizeram com que o presidente dos Estados Unidos recuasse em sua biopolítica carcerária. Como sabemos desde o relato do jornalista Michael Wolff, Donald Trump é menos um vilão e mais um narcisista megalomaníaco que deseja ser o “homem mais famoso do mundo” por intermédio de técnicas de “reality shows” (WOLFF, 2018). Seu desejo, por mais que tenhamos tendência a não acreditar, não é ser um super vilão, mas tão somente, ser famoso. O recuo indica isso: Trump ganhou uma das mais interessantes capas da Times e deu fim a um “episódio” de seu reality. Eis um triste desfecho para a expressão realpolitik. Contudo, a medida biopolítica de Trump tocou em alguma coisa muito real: deu um spoiler do futuro e é assim que devemos interpretar o choro da jornalista Rachel Maddow, há algumas semanas atrás, que também correu de modo viral as redes sociais, diante do fato de que ela não foi capaz de noticiar os centros de detenção de crianças e bebês. Não é um choro indignado diante de uma vilania, mas um choro semelhante ao de Liudmila Ignátienko diante do marido se liquefazendo: um choro disruptivo de estar diante do Mal, todavia, sem maldade.

  1. Ciência diante de problemas ambientais, problemas não, predicamentos

Assim chegamos, a nossa terceira e última provocação. No romance de Justin Cronin A Passagem, o primeiro de uma trilogia, acompanhamos o drama de uma personagem que pensamos talvez representar o drama da ciência diante da passagem que vivenciamos.

 Depois de um desastre biológico causado pela libertação de um vírus que transforma homens e mulheres em zumbis-vampiros com superpoderes físicos, as comunidades humanas vivem acuadas em pequenos acampamentos militarizados. Uma das exigências destes acampamentos é uma intensa luz noturna para evitar os zumbis-vampiros.

A personagem a que nos referimos é a de Michael, o responsável pelas baterias que sustentam as luzes noturnas captando a energia solar, já que não há mais hidrelétricas em funcionamento. Michael percebe que as baterias estão fazendo um ciclo cada vez menor e que em breve não mais sustentarão a luz noturna por um dia inteiro, condenando o acampamento. Não há mais solução possível para o problema das baterias, não se trata mais de um problema, mas de um predicamento daquela comunidade, na distinção que faz entre problema e predicamento, John Michael Greer[2], pois não estamos diante de um problema cujas soluções devemos escolher, mas um predicamento, de um destino de nosso tempo.

Diante de um problema, uma solução, mas diante de um predicamento, apenas uma resposta, diante de um problema, somos solucionadores, mas diante de um predicamento, somos responsáveis.

O drama de Michael “Circuito” é o seguinte:

“Consertar as baterias era impossível. Elas não haviam sido feitas para serem consertadas, e sim para serem substituídas. Ele podia reforçar a vedação, limpar a corrosão, trocar os fios dos controladores quantas vezes quisesse, mas tudo isso era basicamente um trabalho inútil, porque as membranas já haviam dado tudo o que tinham. As membranas estavam ferradas, seus polímeros condutores irremediavelmente derretidos por moléculas de ácido sulfônico. Era o que o monitor lhe dizia com aqueles pequenos soluços no dia a dia. A não ser que o exército aparecesse com um jogo de baterias novo, recém-saído da fábrica – Ei, desculpe, tínhamos esquecido de vocês! –, as luzes iriam se apagar. Um ano, dois no máximo. E quando isso acontecesse, seria ele, Michael Circuito, que teria que se levantar e dizer: Escutem só pessoal, tenho uma notícia que não é lá muito agradável. Sabem qual é a previsão do tempo para esta noite? Escuridão com gritos generalizados. Foi legal ficar aqui mantendo as luzes acesas, mas agora preciso morrer. Assim como todos vocês” (CRONIN, 2010, p. 332-333).

Esse drama não é o drama da ciência ambiental que descobre a cada dia que já se encadearam processos irreversíveis de intensa mudança climática? E que, portanto, em cada dia mais zonas de interesse humano, passamos de um ponto de não-retorno? Que o momento de alertas para soluções está passando e que agora vai restando apenas momentos de predicamentos, de respostas, de responsabilidades, portanto? Mas aqui também aparece o drama da comunidade de destino, pois o cientista se descobre em uma comunidade de destino com todos os não-cientistas, pois, no final das contas, vivemos em um mundo comum sem que isso possa ser desmentido de nenhum modo, sendo a morte o principal deles – e não é a toa que alguns cientistas acalentam o desejo de “vencer a barreira da morte”. O drama é o de que apenas nos momentos finais fica evidente a comunidade em/no destino, apenas diante de um incêndio terrível a arquitetura do edifício é finalmente compreendida.

Sendo assim, onde existe o potencial de/para uma comunidade de destino, grassa a hipótese comunista.

E dessas conjunções que só podemos atribuir ao Espírito Santo[3], Michael deriva do hebraico Mi-kha-el, quem/aquele (Mi), que é como (Kha) Deus (El). E não é essa a experiência fundamental trazida pelo cristianismo, a de que o filho de Deus, que como filho “é como” o pai, fez-se em comunidade de destino com a humanidade, morrendo como todos e todas?

Uma importante pergunta que permanece em aberto é: poderia a passagem dar ensejo a uma realização histórica da ideia do comunismo? Isso depende do que pensarmos e fizermos na condição de passageiros.

É isso. Assim como Michael e suas baterias do fim do mundo. Tem sido muito bom manter as luzes acesas junto com vocês.

*Conferência proferida no evento “Ciência e a Hipótese Comunista” em 13 de julho de 2018.


[1] Baseamo-nos em Depuy, 2015.

[2] Cf. https://thearchdruidreport-archive.200605.xyz/2006/08/problems-and-predicaments.html

[3] Não podemos esquecer que, para Lacan, o Espírito Santo é a “entrada do significante no mundo” (LACAN, 1995, p. 47) S.4, L. III.

[1] Doutor em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e militante do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia. E-mail: [email protected]

[2] Doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo e militante do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia. E-mail: [email protected]


Referências Bibliográficas

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. A história oral do desastre nuclear. Tradução: Sonia Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

CRONIN, Justin. A Passagem. Tradução: Ivanir Calado. São Paulo: Sextante, 2010.

DUPUY, Jean-Pierre. A Short Treatise on the Metaphysics of Tsunamis. Tradução:  M.B. DeBevoisie.  Michigan: Michigan University Press, 2015.

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 4: as relações de objeto. Tradução: Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M. The collapse of Western civilization. A view from the future. New York: Columbia University Press, 2014.

ŽIŽEK, Slavoj. The Plague of Fantasies. New York: Verso, 1997.

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