Por Alberto Luís Araújo Silva Filho
Remontando aos filósofos anti democráticos da escola grega, Ranciére desvenda a linha que concebe o populus como uma ameaça à estabilidade social, expondo o fato da representação escusa como a resultante de todo um projeto histórico-reflexivo de elevação das distinções sociais que grassam na contemporaneidade.
Ranciére faz uma análise filosófica astuta do quanto o fenômeno da redução da esfera pública nas sociedades capitalistas neoliberais convém ao projeto da “doutrina do choque”: com uma democracia minimalista na qual os cidadãos pouco são chamados a participar, maiores são as prerrogativas das corporações na decisão dos destinos.
A democracia, enquanto regime político, tem sido objeto de estudo secular nas ciências sociais, coincidindo a sua apropriação mesma pelo campo de estudos com a institucionalização das disciplinas inter-relacionadas a esse. Entretanto, para além de forma de governo em discussão desde o seu surgimento nas cidades estado da Antiguidade, a democracia é uma categoria central para se pensar a teoria política formulada a partir do século XX, que ora tem dado centralidade a abordagens mais fechadas do fenômeno democrático ora tem complementado seus aspectos com elementos irrevogáveis que transcendem critérios formalistas e anti participativos, arraigados ao liberalismo antipopular predominante nas formulações de uma gama de autores. Esse conjunto constituído pelo mainstream da teoria política – que tem dado parcela considerável da base reflexiva e justificatória dos mais firmes empiristas da ciência política [1] – por vezes posto em uma mesma linha intitulada e composta “teorias da democracia contemporâneas” (Macpherson, 1978; O´Donnell, 1999; Pateman, 1992) não passou longe de críticas de viés normativo formuladas principalmente a partir dos anos de 1970, que tentavam resgatar o sentido clássico da democracia ou reestruturá-lo de modo mais inclusivo.
A tradição elitista do início do século XX, cunhada pelos célebres Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, que nos anos de 1940 perpassou para a obra do economista austríaco Joseph Schumpeter, o pai do elitismo democrático, e conquistou adeptos nas décadas seguintes, tendo a sua visão prescritiva [2] relacionada à democracia incorporada no senso comum sobre a verdadeira composição de um regime democrático: a garantia de eleições somada à manutenção de algumas liberdades civis e políticas, como o próprio direito de escolher as elites que o irão representar. É esse raciocínio de restrição à ação direta dos governados na tomada de decisões, cujo auge está no relatório estratégico de Samuel Huntington sobre os EUA à Comissão Trilateral (1975) – reduto do projeto político neoliberal em nível global – que Jacques Ranciére ataca frontalmente no seu livro “O Ódio a Democracia”. Huntington, ao apontar a crise de governabilidade das democracias ocidentais de então – relato técnico que habilmente subsumiu com o rearranjo ou solidariedade interna do capital (Harvey, 23/07/2016) frente às ameaças à ordem apresentadas no final dos anos de 1960 – reproduz certa estratégia de redução do projeto democrático a um individualismo igualitário pertinente à lógica da economia capitalista (Ranciére, 2014, p.31)[3].
Para qualificar a sua oposição, o professor francês se vale de dois instrumentos centrais: a retomada minuciosa das considerações realizadas pelos pais do pensamento antidemocrático[4] ou da democracia consubstanciada no esvaziamento participativo – e aqui vou explorar, a título figurativo, o termo democracia sem massas – dissolvida em uma escrita elegante que se associa a uma ironia latente, fazendo com que o leitor muitas vezes confunda a argumentação do contestador Ranciére com a do teórico oponente que está sendo contestado por ele; e a contra argumentação inserida na apresentação do próprio argumento, acompanhada de um conjunto de proposições ontológicas sobre o “político”, o “público”, o “privado” e o “social”, bem como sobre os déficits apresentados pela democracia representativa em seu estado atual, que nada mais é que a racionalização do ódio ao demos que antecede em vários séculos a composição do elitismo avesso ao povo [5], referido acima. Remontando aos filósofos anti democráticos da escola grega, Ranciére desvenda a linha que concebe o populus como uma ameaça à estabilidade social, expondo o fato da representação escusa como a resultante de todo um projeto histórico-reflexivo de elevação das distinções sociais que grassam na contemporaneidade.
O ponto de partida para o autor está na associação entre participação ampliada e totalitarismo, ou seja, de maximização da democracia com tirania da maioria. Essa sinonímia tem dado a tônica desde pelo menos Platão naquilo que se entende como o espaço de reflexões sobre o regime democrático, compartilhado pela filosofia, pela sociologia, pela ciência política e áreas afins [6]. A legitimação das raízes da violência irrestrita ou do terrorismo de Estado, vivenciados com especial fulgor em países como a Alemanha na primeira metade do século XX, se encontram na extensão de princípios democráticos que deram precedência à agitação popular das massas, responsáveis – com certo pano de fundo da psicologia já desacreditada de Le Bon (1895) – pela elevação irracional de lideranças como Mussolini na Europa, às quais o pensamento conservador contemporâneo tenta a todo custo se afastar [7]. A correlação entre democracia e totalitarismo, pode-se dizer, despertou efeitos não só políticos, mas também éticos, que desembocaram na configuração moderna do que é o “político”, e suas arenas adjacentes, e nas significâncias da “representação” moderna, em uma clara retomada da demofobia dos antigos no pensamento dos modernos.
A miscelânea de viés consequencial que emerge no entre guerras, gerando um estado de suspeição na intelectualidade, no entanto, não se encerra na conveniência da adaptação das considerações teóricas. Essa transformação abrupta, que vai de encontro à democratização no seu sentido originário, também serve, segundo Ranciére, para a conformação de fenômenos úteis à extensão do capitalismo neoliberal na contemporaneidade. A indiferenciação entre as esferas pública e privada[8], o consumismo exacerbado, a glorificação do indivíduo sobre o coletivo, a tentativa de produção de uma unidade política que elimine os conflitos próprios à democracia [9] e a geração de uma “representação falseada” a serviço do mercado e contra a opinião pública corrente são aspectos da democracia sem massas que é objeto de abstração do autor. Destarte, o quadro desenhado de contemporização da ação da cidadania serve aos poderes político e econômico estabelecidos, ponto de Ranciére que se assemelha diretamente a uma visão de entrelaçamento entre Estado e capital presente já em meados do século XX na literatura neomarxista [10]. O ódio às massas que é o ódio à democracia – justificativa do título de seu livro –, portanto, se expressa nos destinos tomados pela democracia e pela representação.
Estados idílicos da forma de governo democrática certamente não existiram, mas tem sido inegável que os antigos, dentro de suas definições estreitas de cidadania, reproduziram uma aproximação daquilo que Ranciére acusa os contemporâneos de quererem eliminar; primeiro com a instituição de mecanismos decisórios avessos às massas “irracionais” e depois com a exponencialização da interferência da economia sobre a política, ainda parcamente analisada na ciência política. Primordialmente, o sentido essencial da democracia consistia no exercício anárquico da desfiliação em relação aos comandos (Ranciére, 2014), ou seja, pressupunha para o autor o exercício da autonomia e da responsabilidade políticas (agency, para usar o jargão científico moderno) sem que para isso fosse necessária a autorização das estruturas comunitárias que na Antiguidade regiam a ação dos agentes societários. A partir dessa consideração, o filósofo faz a arriscada indistinção entre democracia e política, que considera como o mesmo elemento. O “político”, fundamentado pela ausência de titularidade, só pode ser concebido em um contexto democrático. A dominação em uma sociedade democrática, estabelecida pelo poder, depende da legitimação, que não se dá naturalmente.
“É isso, sobretudo, que democracia quer dizer. A democracia não é um tipo de constituição nem uma forma de sociedade. O poder do povo não é o da população reunida, de sua maioria ou das classes laboriosas. É simplesmente o poder próprio daqueles que não têm mais título para governar do que para ser governados. E não podemos nos livrar desse poder denunciando a tirania das maiorias, a estupidez dos animais ou a frivolidade dos indivíduos consumidores. Porque então seria necessário nos livrarmos da política” (Ranciére, 2014, p.63)
Para o autor, o fato de que os sujeitos histórico-sociais estejam repletos de certa ignorância em relação aos temas que dominam o campo político (Bourdieu, 2011) mas sejam necessários à sua legitimação externa desperta a repulsa antidemocrática das distintas oligarquias que se apossaram não apenas do capitalismo monopolista falsamente confundido na teoria econômica liberal com o “livre mercado”, em uma ruptura radical entre os moral constituencies e a ação governamental mercadológica, teoricamente justificada e bem aceita sob distintas arguições pró representativas que vão desde a necessidade da “governabilidade”, passando pela garantia da “estabilidade institucional” e chegando até o argumento econômico que tem sido mobilizado no confronto entre liberalismo e democracia. Exemplo crucial desse embate está no uso desmedido do conceito de “populismo” (Ranciére, 2014), que é mobilizado entre os acadêmicos, os jornalistas e as elites de modo geral cada vez que a representação política ousa atravessar os limites estabelecidos pelo consenso dominante. Nesse ínterim, experiências como a do nacionalismo xenófobo europeu ou do novo socialismo latino-americano, que mobilizam, a seu modo, uma série de ressentimentos populares [11], tem sido aglutinados sob uma mesma definição.
Se não é possível romper com o falso espetáculo que significa o acordo entre democracia e mercado nas sociedades capitalistas contemporâneas – e nesse conjunto não há fuga para os mais bem-sucedidos estados de bem-estar social europeus, conhecidos pela marcada consolidação democrática – o filósofo nos faz questionar: vivemos em um Estado democrático de direito ou em um Estado oligárquico de direito? A questão incômoda proposta por Ranciére advém do abandono da democracia em nome do que alguns articulistas de esquerda tem chamado de mercadocracia[12], neologismo que bem se encaixa ao cada vez maior domínio da economia financeira e transnacional sobre as decisões tomadas pelos Estados nacionais, apartados dos representados pelas instituições políticas, no que diz respeito à condução da “coisa pública” interna. O lócus de atuação cada vez mais expandido das elites elimina a ação política dos subalternos, em uma divisão do trabalho intencional que perpetua as desigualdades e restringe as chances de reivindicação e mesmo de contestação civil, na medida mesma em que os aparelhos de repressão estão sempre ativos para desarticular a resistência dos povos. Oligarquia e democracia são antinômicos; a segunda deriva da legitimidade dos que não tem razão natural nem para serem governados nem para governar; a primeira é fruto da dominação conspícua assentada por uma intelligentsia hegemônica que vê nas massas o risco contínuo que Schumpeter e seus predecessores ou contemporâneos apontavam.
A formação de preferências nos regimes democráticos é estritamente problemática, em razão das disparidades de acesso aos recursos – principalmente os informacionais – o que não gera juízo de valor automático sobre as escolhas das cidadãs e cidadãos e nem permite ao menos ontologicamente que a participação política seja eliminada sem mais reservas do espaço público. Ranciére, faz com que a sua metalinguagem seja recorrentemente mobilizada para ilustrar a repulsa aos dominados que de Platão, com suas considerações sobre a democracia enquanto a formação política mais degenerada que pudesse haver (Goyard-Fabre, 1998) a Samuel Huntington e sua pregação liberal-elitista tem constituído parte da argumentação teórica relevante e de influência.
Mas afinal porque os distintos segmentos das elites, a pretexto de um totalitarismo – que na verdade esconde o que já é totalitário nas formas pelas quais se apresenta o capital – rejeita com veemência uma espécie de “democracia de multidões” que Ranciére apresenta como proposta normativa ao final do texto? Arrisca-se aqui a responder que seja o mesmo temor dos liberais ingleses no século XIX quando da extensão do sufrágio universal à classe operária: o de que princípios como a “propriedade”, a lei burguesa ou mesmo a ordem instituída não sejam tão naturalizados assim como se pensa entre as camadas populares. Na verdade, elas estariam subsistindo através dos séculos, por meio da ameaça e da dominação que não tem permitido a construção de formas alternativas de sociedade. E é isso que Ranciére nos deixa como lição: a defesa da democracia, ainda mais de sua radicalização, longe de implicar na advocacia pelo estado de coisas é na verdade a afirmação da mais que necessária e legítima transgressão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bianchi, Álvaro. Trazendo o Estado de volta pra teoria: Poulantzas-Milliband revisitado. 31ª Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Seminário temático 22: O Marxismo e as Ciências Sociais, Caxambu, out. 2007.
Bourdieu, Pierre. O campo político. Revista Brasileira de Ciência Política, n.5. Brasília, janeiro-julho 2011, pp.193-216.
Feres Jr, João. Aprendendo com os erros dos outros: o que a história da ciência política norte-americana tem para nos contar. Revista Sociologia & Política, n.15, Curitiba, nov. 2000.
Goyard-Fabre, Simone. A democracia, forma-constitucional da Cidade-Estado In: Goyard-Fabre, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Harvey, David. Neoliberalism is a political project: an interview with David Harvey. Jacobin Magazine, 23/07/2016.
Huntington, Samuel. The United States. In: Crozier, Michel J.; Huntigton, Samuel; Watanuk, Joji. The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Comission. New York: New York University Press, 1975.
Le Bon, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
Macpherson, C.B. Democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
Michels, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.
Mouffe, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
O`Donnel, Guillermo. Teoria democrática e política comparada. Dados, vol.42, n.4, Rio de Janeiro, 1999.
Offe, Claus. Dominação de classe e sistema político: sobre a seletividade das instituições políticas In Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
Pateman, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
Ranciére, Jacques. 2014. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
Rousseau, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Sartori, Giovanni. Teoria da democracia revisitada (vol.1). São Paulo: Ática, 1994.
NOTAS:
[1] Ao estabelecer considerações sobre o desenvolvimento da ciência política americana, João Feres Jr. (2000) fala da marginalização da teoria política, que tem permitido alguns apontamentos contra hegemônicos no seu interior, dentro da ciência política norte-americana. Entretanto, esse processo de relegação, que tem influenciado algumas configurações do agir dos politólogos na América Latina, não impede que parte da teoria democrática procedimental, pautada na ênfase dos institutos racionais-legais, venha sendo mobilizada com constância nas pesquisas empíricas de viés neoinstitucionalista produzidas no país – haja visto que o institucionalismo per se constitui o quadro histórico da teoria.
[2] Aqui entra em cena uma categoria de outro herdeiro do elitismo democrático, o cientista político Giovanni Sartori, que contrapõe as teorias prescritivas ou positivas às teorias normativas, visão que tenta abarcar uma série de variações e tem tido impulso na teoria política contemporânea. Ver Sartori (1994).
[3] O combate à democracia se justifica por sua tendência à ilimitação – ao menos quando entendida na acepção clássica que se vale da utilização de mecanismos diretos.
[4] Nesse sentido seu exercício reflexivo originário é o de retomar o próprio Platão como a origem de certa racionalidade anti democrática que a pretensa representação política incorpora hodiernamente.
[5] Povo aqui é entendido como aqueles que se encontram desprovidos dos capitais, do ethos e do esprit de corps das elites. Autores do mainstream ao problematizar o conceito de “povo”, tem apontado o mesmo como conjunto dos cidadãos que se encontram fora do governo – concepção que flerta claramente com algumas visões sociais do liberalismo, mas não só (o Estado em contraposição à sociedade).
[6] O que não significa, no entanto, que o ideal democrático greco-romano de participação direta que Platão via de forma degradante não fosse retomado como teorização no século XVIII. Ver Rousseau (1762) e sua descrição elogiosa sobre o funcionamento das assembleias populares em Roma.
[7] Embora sejam distintos, o conservadorismo e as ideologias totalitárias de extrema-direita compartilham de uma plêiade de elementos como: uma visão hierárquica e estamental da sociedade, a idealização acerca do passado, a reificação do legalismo, o anticomunismo e a crítica à degeneração cultural burguesa. Referências do pensamento conservador se aproximaram do fascismo, como é o caso dos próprios Vilfredo e Pareto que conviveram sem muitas reservas com o totalitarismo italiano, e do ex-socialista Robert Michels, que inaugura a “lei de ferro das oligarquias”. Ver Michels (1982).
[8] Dualidade regida pelo que Ranciére chama de “princípio da ordenação”, referente à associação entre o universal e o particular. Para o autor, o universal é continuamente privatizado pelo particular, retroalimentando uma racionalidade mercantil.
[9] Considerações críticas sobre a superação da política, em um mundo globalizado que se pretende pós-político, estão em Mouffe (2015), precursora da teoria democrática radical.
[10] Parte dessa noção foi revisada no debate entre Milliband e Poulantzas, ocorrido entre o final dos anos de 1960 e o início dos anos de 1980, que promoveu a retomada do Estado na teoria política marxiana, inclusive nos EUA, onde historicamente a corrente teve pouca receptividade (Bianchi, 2007). Ver também Offe (1984).
[11] Principalmente aqueles ligados às contradições sistêmicas da globalização, como a exportação de empregos para os países do Sul Global decorrente da livre circulação de capitais e do baixo custo da mão-de-obra nas nações periféricas.
[12] Outro neologismo intitulado “dividocracia”, alusivo às exigências draconianas sobre os países devedores à União Europeia como a Grécia, serviu como título de documentário dirigido pelos cineastas gregos Aris Chatzistefanou e Katerina Kitidi em 2011.
* Mestrando em Sociologia pela Universidade de Brasília e Bacharel em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: [email protected].