Por Yaron Gilat, via Lacanian Review, traduzido por Daniel Alves Teixeira
No final de 2019, um novo coronavírus desconhecido (2019-nCoV) surgiu na cidade de Wuhan, província de Hubei, China, e agora está causando um surto de doença respiratória em todo o mundo, com sérias conseqüências econômicas e de saúde. Enquanto este artigo está sendo escrito (19.02.20, 08:20), 75.216 casos foram relatados até agora, dos quais 2.012 haviam terminado em morte [1] e o número está aumentando. Até agora, 29 países e territórios ao redor do mundo foram afetados, juntamente com o transporte internacional – o navio “Diamond Princess”, que atualmente abriga e permanece de quarentena em Yokohoma, no Japão. Pânico, ansiedade, cenários catastróficos e especulações paranoicas de conspirações e plano secretos não tardaram a seguir. Parece que o real, mais uma vez, volta, invadindo nossas vidas comunitárias, instigando uma ruptura na civilização.
Lacan definiu o real como “aquilo que sempre volta ao mesmo lugar” [2]. Na experiência psicanalítica, encontramos apenas pedaços, traços e fragmentos do real [3]; contudo, no reino do planeta e da cultura, da tecnologia e da política, podemos encontrar o real em acontecimentos marcantes em larga escala, como as multidões de imigrantes de trabalho e refugiados de guerra que cruzam fronteiras e velejam pelos mares, a antecipada mudança climática devastadora em andamento e também os surtos de vírus como SARS, zika-vírus e agora coronavírus. Essas são todas modalidades diversas, incorporando o retorno do real. O real do que? O real da época. O real do século XXI, essencialmente do capitalismo.
A China, o país outrora pobre, está agora no papel de segunda maior economia do mundo. É responsável por mais de US $ 14 trilhões em produção anual e detém um valor do PIB que representa aproximadamente 22% da economia mundial. Hoje, a China é o fabricante e produtor industrial mais importante do mundo, além de ser o maior exportador da produção mundial, pois vende mais produtos manufaturados do que qualquer outro país. Certamente, e porque não, o Coronavirus é apenas mais um produto fabricado na China, exportado para o mundo juntamente com peças e dispositivos elétricos e eletrônicos, peças e equipamentos para automóveis e motocicletas, acessórios de vestuário e roupas e muitas outras mercadorias. É como se os coronavírus se tornassem objetos circulantes da produção capitalista, retornando do real de nosso tempo e perfurando o delicado tecido da civilização. Mais-gozar (a) em seu estado mais puro.
“No século XXI, é uma questão da psicanálise explorar outra dimensão, a da defesa contra o real sem lei e sem sentido”, afirmou Jacques-Alain Miller [4]. Até agora, ele sugeriu, o real era chamado natureza, e natureza era o nome do real quando não havia desordem nele. O real era ele próprio a garantia da ordem simbólica. Assim, pode-se confiar no retorno anual das estações e confiar no espetáculo dos céus e dos corpos celestes.
Em oposição a isso, Jacques-Alain Miller propôs pensar em uma grande desordem no real no século XXI – um real emancipado da natureza é tão pior que se torna cada vez mais insuportável. Esse real tem a ver o com trauma, mais do que com a natureza. Aparentemente, ao nos encontrarmos com a erupção da atual pandemia de coronavírus, podemos mais uma vez experimentar esse grande distúrbio no real de nosso tempo.