Argentina: A venalidade e o sumiço das diferenças

Por Eduardo Bonzatto e Luis Gustavo Reis

Como num passe de mágica e pela mesma época, os chaná, os timbu e os cambá desapareceram da paisagem social argentina deixando escassos vestígios.


Na Argentina de hoje, sentimos um estranhamento em relação aos seus habitantes: como se a Europa fosse ali, bem fenotípica. Altos, de rostos angulosos que lembram europeus vistosos e orgulhosos de sua linhagem.

São educados, polidos, civilizados e não há eufemismo aqui. São elegantes, sobretudo. Muito diferentes de nós, seus vizinhos americanos do sul e do meio do mundo, que somos desengonçados, desalinhados e tortos, no sentido que Drummond já alertara: “vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Parece nossa herança comum esse desajeito. Supõe-se que a mistura entre os europeus escorraçados da metrópole, os índios e os negros se juntaram para marcar esse desarrumo. E não há quem escape. Menos os argentinos, eles não; são alinhados, a postura ereta dos nobres, a fleuma.

Também, pudera, se tentar encontrar índios e negros por lá vai estranhar seu desaparecimento, seu ocultamento social. E mesmo quem os estuda fica confuso diante do sumiço, pois sempre procuram uma causa “natural”. Mas ninguém some naturalmente. Pensemos na colônia perdida da Ilha de Roanoke, dos primeiros colonos ingleses, mesmo eles deixaram a palavra croatoan inscrita num tronco de árvore, atestando que havia ali um mistério. É bem verdade que os que lhes seguiram à caça, ao longo dos 400 anos seguintes, exterminaram quase todos os nativos, mas essa é uma outra história.

Na Argentina o sumiço de determinados grupos também é muito estranho. As duas tribos que habitavam grandes territórios de caça e pesca até meados do século XIX, simplesmente desapareceram “sob as águas volumosas do rio Paraná”. Os pesquisadores reconhecem que as inúmeras ilhas submersas podem revelar segredos sobre a pujança dessas culturas, mas para isto será preciso aguardar a seca do gigantesco rio. Estima-se que cerca de dez mil índios viviam na região do norte argentino. Mas são melancólicas as explicações disponíveis em um museu reservado a eles, na pequena cidade de La Paz, fundada em 1835, no coração de Entre Rios, que aguarda o ressurgimento dos cemitérios mantidos seguros sob as águas para revelar outras nuances desses povos.

No mesmo museu, um mapa desenhado pelo jesuíta José Quiroga mostra detalhes do aldeamento em 1749. Consta que eram poligâmicos, o que pode ter contribuído substantivamente para seu sumiço histórico.

Mais a noroeste ainda, na divisa com o Paraguai, resistem na miséria e no abandono cerca de seis mil guaranis, conforme dados do censo oficial. Um grupo silencioso e apartado da sociedade europeia encravada nos territórios abaixo do Prata.

Até 1994, com a Reforma Constitucional, prescrevia-se “o trato pacífico com os índios e sua conversão ao catolicismo”. Contudo, apenas em 2006, com a promulgação da “emergência territorial indígena”, sugere-se a suspensão dos despejos das comunidades. O que não significa efetivação, já que apenas 45 de um total suposto de 120 tekoá ou outras comunidades foram reconhecidas na região de Misiones.

A família extensa é a forma de organização comunitária dos guaranis e que ainda hoje conservam essa tradição. Na família extensa é a tribo, de modo comunal, quem cria seus membros, distinto, portanto, da família nuclear burguesa. Aqui, mais uma vez, o modelo familiar se destaca como forma de resistência, assim como a Aty Ñeichyrõ – Assembleia Tradicional dos Mburuvichá (Caciques) – que congrega as demandas em relação aos governos provinciais.

O sumiço dos guaranis da Argentina parece ser a consolidação da Batalha de Kuruyuki, ocorrida em 1892, que tentou impor uma derrota perpétua para esses povos e riscar seus vestígios da História. Na sua migração da batalha, porém, os que conseguiram fugir, caíram no meio da Guerra do Chaco (1935) e quase foram dizimados. Os que restaram, fugiram para o norte argentino, para as províncias de Salta e Jujuy e se empregaram nas colheitas de cana e banana que haviam se instalado por lá.

O caso dos negros é mais emblemático ainda. Difícil até denominá-los de afro-argentinos, já que têm raras aparições pelo. É questionável como um grupo que compunha metade da população em 1776, constituí atualmente apenas 4% dos habitantes?

Não muito distante do povo guarani Mbyá, na cidade de Corrientes, banhada pelo mesmo Paraná onde desapareceram os chaná e os timbu, se festeja a única manifestação de “negros sem negros” de toda Argentina: a festa de São Baltazar, o rei mago negro que visitou Jesus na manjedoura.

É 6 de janeiro e o bairro Camba Cuá acorda sob o som de tambores. O curioso é que o nome do bairro vem do guarani e significa “caverna de negros”. Consta que pela proximidade do rio esse reduto de negros, tempos atrás, era uma região facilmente inundável. Mais uma vez, águas que fazem desaparecer diferenças, tal qual povos indígenas.

O tambor, uma estrutura de 1,13 metros de largura, montado em uma peça única de tronco escavado, recoberto pelos dois lados com pele de cachorro ou bode dá o tom da charanda, ou zemba, e do candombe, música que traz esse passado perdido dos negros. Mas essa é apenas uma introdução evocativa. A seguir, o chamamé, a alma argentina emerge dos mesmos tambores, soterrando as sonoridades africanas e fazendo o bairro do Boca Juniors balançar.

Em relação a esse misterioso desaparecimento dos negros, a antropóloga María Belén Zaninovich considera que, na Argentina, as políticas de branqueamentos parecem ter surtido resultado: “A pele é um dos traços que mais rapidamente branqueia, mas é preciso olhar os cabelos encrespados – que os guarani chamam de capicha – e os lóbulos das orelhas para reconhecer a herança negra de Corrientes”.

Morador do bairro do Boca Juniors e menos fleumático, Osvaldo Caballero tem uma resposta mais contundente. Ele afirma: “meu sobrenome é muito comum no Paraguai. Em 1820, Artigas deixa o Uruguai, vai para o Paraguai cruzando pela Argentina, com cerca de 40 negros. Entre eles estava minha avó. Corrientes embranqueceu e se você pergunta por que, acha que todo mundo se orgulha quando descende de alemães e franceses, mas ninguém quer dizer que vem dos escravos negros, porque isso não dá status. É por isso que a negritude é muito escondida.”.

Essa negritude é escondida até o tempo presente, deitando raízes nos estertores do século XIX. Nesse período, a Argentina foi atingida por uma grave epidemia de febre amarela que foi responsável por dizimar parcelas significativas da população, especialmente negros desassistidos dos serviços de saúde. Além da febre, foi um tempo marcado por diversas guerras internas e externas onde legiões de soldados escravizados, recrutados à força, foram enviados para serem trucidados nos campos de batalha.

Não bastassem esses horrores, nos idos de 1852, o então presidente Justo José Urquiza decidiu recrudescer a política de branqueamento da população implementada quatro anos antes. Para isso, distribuiu milhares de passaportes aos negros, principalmente homens, e os convocou a deixar o país. A empreitada logrou resultados, e no início do século XX haviam poucos negros no território.

Apesar das sucessivas tentativas de extermínio de negros e das diversas campanhas de apagamento de suas contribuições, são eles os responsáveis pelo elemento central da identidade argentina, o tango.

Desde meados do século XVIII, escravizados de diferentes etnias concentrados em Buenos Aires formaram sociedades de ajuda mútua nas quais praticavam, além de diversas manifestações culturais, cultos religiosos. Dançavam ao toque de tambores, entoavam canções ancestrais, reverenciavam altares repletos de símbolos sagrados e invocavam deuses até entrarem em transe.

Esses grupos deram origem ao chamado candombe (do banto Ka n’dombele, que significa “rezar aos deuses”), existente tanto na Argentina como em outras regiões do rio da Prata. Nos candombes, havia diversos elementos e rituais religiosos relacionados às distintas tradições africanas, além da prática de coroamento de reis e rainhas negros. Ao longo dos anos, o candombe foi se transformando e ganhando diversos significados, combinando períodos de legalidade e proibição.

Após a abolição da escravidão no país, em 1813, os egressos do cativeiro passaram a se reunir em lugares chamados de “casa de tango” (também conhecidas como “casas de tambó” ou “sítios”), substituindo os tradicionais candombes. Nessas casas, faziam reuniões, batucavam e cantavam músicas religiosas e profanas, em um ambiente generoso de sociabilidades. Mas logo essas casas caíram na ilegalidade e as reuniões foram sabotadas.

Para driblar a proibição e se adaptar às contingências, os frequentadores reinventaram esses espaços, rearticularam suas relações e deram origem às “casas de bailes”, onde prevaleciam músicas embaladas por piano, flauta, violino, bandoneón e outros instrumentos, coreografadas por danças que misturavam o gingado do candombe, passos marcados e traços de sensualidade. No alvorecer de 1877, um grupo de negros inspirados no candombe e nas casas de bailes inventaram uma dança que chamaram especificamente de “tango”.

Ao adentrar o século XX, o tango recebeu muitas influências europeias que modificaram não apenas as letras das músicas, mas também as coreografias e os espaços onde era praticado. Dos bailes frequentados por negros, brancos pobres e desafortunados, passou aos salões da alta sociedade, integrando o repertório de casas de espetáculos que iam de Nova York à Paris. Com o avançar dos séculos, acelerava-se também o apagamento da origem africana, na paisagem social e na formação cultural.

As presenças indígena e negra na Argentina poderiam passar desapercebidas em sua imagem mundial. Entretanto, tal como em outras partes da América Latina, não pôde ser silenciada ou escondida. Ali, indígenas e negros estão impregnados nos diferentes símbolos do país, ainda que tentem escamotear suas existências.


* Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)

* Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos


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